Como a pobreza afeta a tomada de decisões
O brasileiro Guilherme Lichand, professor assistente da Universidade de Zurique e um dos fundadores da MGOV, consultoria de comunicação para a gestão pública com sede em São Paulo, explica como a tecnologia adequada é capaz de gerar mudanças significativas de comportamento. Uma das frentes de estudos do economista de 31 anos é a participação de pais pobres e sobrecarregados na vida escolar dos filhos.
Professor assistente do departamento de Economia e diretor de pesquisa do Centro para o Bem-Estar e Desenvolvimento da Criança, da Universidade de Zurique, o brasileiro Guilherme Lichand, 31 anos, tem dissecado os impactos da pobreza na tomada de decisões. Os resultados de suas pesquisas, no entanto, não ficam restritos à academia. Lichand é empreendedor, um dos fundadores da MGOV, organização que oferece soluções de comunicação para o desenvolvimento social, considerada pela revista americana MIT Technology Review, em 2014, como uma das iniciativas sociais mais inovadoras, dentre as lideradas por brasileiros com menos de 35 anos.
“Acredito que a ciência é fundamental se quisermos fazer política pública baseada em evidência. Por outro lado, sozinho, ninguém vai mudar o mundo, porque os desafios de implementação são muitos. Mas acho também que o pesquisador tem que se sentir desconfortável, ser provocado a ir além”, explica Lichand.
A importância da participação dos pais no desempenho escolar dos filhos e o impacto da tecnologia para promover mudanças de comportamento são alguns dos temas que o brasileiro, que tem PhD em Política Econômica e Governo pela Universidade de Harvard, vem investigando e testando soluções.
swissinfo.ch: Como é explicar os desafios da pobreza para alunos na Suíça, um dos países com melhor qualidade de vida no mundo?
Guilherme Lichand: Na sala de aula, temos alunos de diversas nacionalidades. Isso facilita o debate. Por outro lado, Zurique é uma cidade com pouca diversidade. O governo diz que existem pobres em Zurique, mas não sei onde estão. Nós quase não vemos negros na cidade. Há histórias de colegas que se forçaram a passar seis meses em países menos desenvolvidos para se expor a outras realidades. A empatia, o saber se colocar no lugar do outro, é o ponto de partida para qualquer processo de compreensão. E isso é quase impossível se você não conhece a situação do outro. Quem mora aqui tem que fazer um esforço extra para conseguir se colocar neste outro lugar.
swissinfo.ch: E qual é o seu ponto de partida?
G.L.: Tentamos ir à raiz do problema. Convido os alunos a pensar, por exemplo, como seria sua realidade se abrissem a torneira de casa e a água não saísse limpinha, pronta para beber. É claro que qualquer pessoa numa situação dessa tem que tomar muito mais decisões do que quem já tem esse recurso disponível. Num país desenvolvido, a criança nasce e já é imunizada, a água que sai da torneira é potável, depois, a criança vai obrigatoriamente frequentar a escola, e por aí vai. Nos países pobres, isso não está pronto. E isso tem uma série de consequências nas decisões que o indivíduo deve tomar.
swissinfo.ch: É possível dizer que a pobreza é uma armadilha? Ou seja, ser pobre faz com que o indivíduo tome más decisões, que o fazem permanecer na mesma situação. Ou a pobreza é algo externo, portanto, sob o qual o sujeito tem pouco controle?
G.L.: As pesquisas mais recentes sobre a psicologia da pobreza mostram que o pobre tende a tomar piores decisões que o rico. Isso acontece, no entanto, não porque ele é diferente do rico, é apenas porque o ambiente de escassez captura atenção, memória e controle de impulsividade, o que leva a piores decisões. A literatura mostra que escassez de qualquer coisa provoca isso. Então o rico, que tipicamente tem escassez de tempo, terá menos atenção, memória e controle de impulsividade em relação a decisões que envolvem locação de tempo. Portanto, é uma combinação dos dois: a escassez leva a piores decisões e o ambiente interfere nas possibilidades disponíveis
swissinfo.ch: No Brasil, você tem desenvolvido pesquisa usando comunicação por mensagem de texto (SMS) e de voz para entender melhor qual as formas mais eficientes de estimular pais de famílias carentes a acompanhar a vida escolar dos filhos. Qual é o maior desafio?
G.L.: De acordo com a Pesquisa Nacional da Saúde do Escolar (PENSE), do IBGE, três de cada quatro pais não sabem se o filho tem lição de casa. Metade dos pais não sabe se o filho tem problema na escola, e por aí vai. Os números são muito altos. Por que esses pais – de filhos que vão a escolas públicas – são desconectados do dia a dia da escola dos filhos? Uma parte da explicação é que esses filhos já avançaram, frequentam a escola há mais tempo que seus pais puderem frequentar. Se fizermos, por exemplo, uma pesquisa sobre satisfação dos serviços de educação no Brasil, a satisfação resulta altíssima porque os pais estão felizes pelo simples fato de os filhos estarem matriculados. A segunda explicação é a armadilha da pobreza, ou seja, se os pais dos pais também eram pobres, desconectados com o dia a dia da escola, a história tende a se reproduzir na geração seguinte. O terceiro motivo, que é o mais interessante e dialoga com os outros, é o fato de que o pobre tende a trabalhar mais horas, se desloca por mais tempo para chegar ao trabalho, faz, muitas vezes, trabalho físico mais pesado, além da preocupação constante com as contas que não fecham. Ao chegar em casa, esgotado, esse pai funciona como um zumbi. Senta em frente à televisão e fica ali vencido pelos seus impulsos. Esses estímulos via SMS tentam capturar a atenção desses pais, cuja atenção está capturada pela pobreza.
swissinfo.ch: E quais os resultados desse ‘presta atenção’ virtual?
G.L.: Uma vez que percebemos que o ‘presta atenção’ tem um impacto significativo, começamos a mandar mais mensagens combinadas, com interatividade, usando vários artifícios. O dado mais forte é que com essa estratégia conseguimos reduzir repetência em 3 pontos percentuais. É muito? Cada aluno que repete no nono ano custa 4 mil reais para o governo. Então se eu reduzo em 3 pontos percentuais quer dizer uma economia esperada para o governo de 125 reais para cada aluno. Como o produto custa 10 reais aluno/ano isso significa uma taxa de retorno de 1000% para o setor público por real investido. Pode parecer absurdo: como é que pode duas mensagens por semana conseguem reduzir repetência em 3 pontos percentuais? Isso só faz sentido num contexto em que de fato há um problema muito grave de participação dos pais. No entanto, são questões comportamentais relativamente fáceis de se lidar. No Brasil temos muitas oportunidades prontas a serem exploradas. Se eu fizer a mesma coisa na Suíça, suponho que não tenha o mesmo efeito, porque aqui esses problemas mais básicos já foram superados ou nunca existiram.
swissinfo.ch: Como entra a tecnologia nessa equação?
G.L.: Não é tecnologia, é a tecnologia certa. Impacto social significa ter uma solução concreta para um problema real. Parece simples, mas falha por vários motivos. Em comunicação, que é a área em que a trabalhamos, falha quando, por exemplo, não chego ao meu usuário pelos canais adequados. Aí o problema pode ser muito concreto, mas a solução não é real. Somos obcecados por essa coisa dos canais. No Brasil, mais de 90% dos domicílios têm celular, então parece que o celular é adequado, mas nem 40% do estoque é de smartphone e 70% dos celulares do Brasil são pré-pagos. A conectividade do Brasil é uma das mais caras do mundo. Então, seu considerar todos esses aspectos, um aplicativo, nem sempre é o melhor canal.
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swissinfo.ch: Qual o papel da conectividade?
G.L.: Nosso entendimento é que, por mais que o smartphones ganhem mercado rápido nos próximos cinco anos, a conectividade vai seguir sendo uma barreira fundamental. Mesmo nos Estados Unidos, um dos países mais conectados do mundo, a desigualdade de acesso à conectividade é brutal. E isso se reflete em desigualdade de resultados. As escolas nas regiões mais pobres, por exemplo, são aquelas que têm as piores conexões e não conseguem utilizar recursos educacionais adequadamente. E aí a tecnologia em vez de reduzir a desigualdade, aumenta.
swissinfo.ch: Quanto o celular (ou novas tecnologias, forma de comunicação) pode ter um impacto positivo na vida dos cidadãos da base da pirâmide?
G.L.: Se você olhar a América Latina e África, a adesão é enorme. Isso é verdade mesmo nos lugares mais pobres, rurais e remotos. Num país como o Brasil 92,4% dos domicílios têm celular. Trata-se de uma ferramenta que funciona em múltiplas vias: os pares falam entre si, compartilham informação e recebem informação. O governo também consegue ouvir o cidadão. O potencial é poderosíssimo para se entender as prioridades, informar, apoiar decisões complexas, estimular mudança de comportamento.
swissinfo.ch: O poder público no Brasil tem noção desse potencial?
G.L.: No Brasil, temos uma tendência a pular etapas. Há uma fascinação pelo online, não só entre os empreendedores, mas também por parte do governo. Até porque o custo de entrada é baixo. Por isso, vários aplicativos têm sido lançados no mercado. Um deles é o do Bolsa Família. Acredito que houve 1 milhão de downloads, num universo de 25 milhões de famílias beneficiadas pelo programa. O mais interessante é que do total de 1 milhão de downloads nem 10% foram feitos pelos beneficiários do Bolsa Família. Quem está surpreso com isso? Que beneficiário do Bolsa Família tem smartphone conectado? E quem vai baixar o aplicativo? Para mostrar o contraste, temos um projeto de educação financeira com a Caixa Econômica Federal e o Ministério do Desenvolvimento Social, em que imprimimos pílulas de educação financeira no extrato do Bolsa Família. E se o beneficiário gosta, ele pode mandar um SMS grátis para o 29800 e aí segue recebendo as pílulas. Mas isso é tecnologia certa: às vezes, é o extrato, o papel, porque isso chega a quem precisa.
swissinfo.ch: Que perfil ou características fundamentais precisa ter o empreendedor social para conseguir sobreviver e emplacar suas ideias no mundo de hoje?
G.L.: Em geral, há dois perfis básicos: o empreendedor por opção, que é aquele que tem uma rede de suporte e outras opções caso algo dê errado e o indivíduo que empreende por necessidade. O Brasil é pleno do segundo tipo. Trata-se do empregador bem pequeno, que anda de mão dada com a pobreza. Para esse empreendedor não há plano B. Esse, sim, merece mais destaque porque ele não tem colchão de proteção, ele, sim, toma risco. E existem muitos projetos interessantes saindo desse grupo, como o Saladorama, que vende alimentação saudável na favela com mão de obra local, ou o Carteiro Amigo, um sistema que supera o desafio da falta de endereço na favela, mapeando as áreas e entregando as correspondências aos moradores. Esses são os mais conhecidos. Imagine quantos desconhecidos devam estar pipocando pelo país.
swissinfo.ch: O que é necessário para ser um empreendedor bem-sucedido?
G.L.: Não tenho um bom conselho, mas talvez duas recomendações. A primeira é que você precisa conhecer profundamente aquilo que quer transformar e isso é verdade em qualquer coisa. Você abriria um açougue sem entender nada de carne? Então porque você acha que vai mudar a educação sem nunca ter entrado numa escola pública? O resto é experiência do usuário. Aprender com os usuários e ir refinando o produto. A segunda recomendação é: entenda que uma ideia em si não é nada. Nenhum negócio (seja social ou não) começou com a ideia certinha, amarradinha. É preciso ter um time bom, com as conexões adequadas, com os recursos financeiros, tecnológicos e humanos para poder trabalhar em torno da ideia original. A ideia é importante em vários momentos: para motivar, para, depois, lembrar da proposta, mas entre a ideia e o impacto há um universo.
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