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A Rússia se diz a ‘última defensora dos valores tradicionais’

police at a demonstration in St Petersburg
Pessoas presas em uma manifestação em 2013 em São Petersburgo, após a proibição da "propaganda gay". Keystone / Anatoly Maltsev

Na Rússia, a comunidade LGBTQ está enfrentando uma pressão cada vez maior. Leandra Bias, cientista política da Universidade de Berna, explica a relação entre esse fenômeno, a geopolítica e o autoritarismo.

SWI swissinfo.ch: Recentemente, o Supremo Tribunal da Rússia classificou o “movimento LGBTQ internacional” como uma “organização extremista”. O que isso significa e qual a importância da decisão?

Leandra Bias: Ainda não temos como saber o que isso significa concretamente para a comunidade queer na Rússia. Mas já vemos os impactos iniciais, como o fechamento de associações e bares gays, cujo funcionamento poderia ser interpretado como uma forma de ativismo.

Na Rússia, a homossexualidade e a transexualidade não são proibidas por si só, mas a expressão pública de ativismo, em qualquer formato, não é mais permitida. A forma como isso será interpretado individualmente permanece em aberto.

No entanto, analisando o significado estratégico, trata-se claramente de um avanço na radicalização do país. Ele é consequência da guerra cada vez mais arrastada [na Ucrânia]: internamente, o regime russo está se tornando mais autoritário para exercer um controle mais eficaz.

Essa estratégia também se encaixa na narrativa que vem circulando desde 2014 em relação à Ucrânia. De acordo com esse discurso, a Rússia é a última defensora dos valores tradicionais. E essa narrativa não pode permanecer apenas retórica, ela também precisa ser implementada.

Leandra Bias
A pesquisa de Leandra Bias concentra-se no campo sobreposto de ciência política e gênero, com foco na Rússia e nos Bálcãs. Gian-Berno Fark

SWI: O presidente russo, Vladimir Putin, faz inúmeras referências a esses “valores tradicionais”. O que isso significa?

L.B: O mais interessante é que eles nunca são claramente definidos. Essa também é a sua maior força: qualquer pessoa – ou qualquer governo – pode projetar neles o que for mais vantajoso. Também é interessante notar que, antes da invasão definitiva da Ucrânia, Putin sempre jogava com o significado [desses valores], dependendo do grupo ao qual se dirigia.

Com o tempo, esses valores passaram a influenciar a estratégia oficial do país. A partir de 2013, eles se tornaram parte da política externa e de segurança da Rússia, assumindo um tom cada vez mais combativo. A partir de 2016, a Rússia indicou claramente que a concorrência geopolítica não era apenas política ou tecnológica, mas também orientada por valores.

O próprio Putin costumava se mostrar reservado em relação ao assunto, mas isso mudou nos últimos anos, como sabemos. A invasão da Ucrânia foi acompanhada de referências explícitas a esses valores tradicionais.

O próprio termo continua sendo eficaz. Os pesquisadores o chamam de “significante vazio”: um termo sem um significado claro que pode ser definido como se desejar. Quanto às políticas concretas que podem resultar do seu uso, elas se tornaram claras desde a invasão da Ucrânia. Estamos vendo os direitos das mulheres, especificamente os direitos reprodutivos, sendo contestados na Rússia. O direito ao aborto tem sofrido vários ataques, inclusive do próprio Putin. Recentemente, ele tem mostrado entusiasmo com mães férteis. Medalhas serão concedidas às mulheres que tiverem vários filhos. Tudo isso ocorre paralelamente a um ataque explícito à comunidade queer.

SWI: No discurso político e midiático, há muitos termos com significados pouco claros, como “ideologia de gênero”. Qual é o objetivo do uso desse termo e como ele permite o desenvolvimento de certas formas de política?

L.B.: Os “valores tradicionais” são o outro lado da “ideologia de gênero”. Os valores tradicionais são, por assim dizer, o que está sendo propagado na Rússia. Mas não há nada de especificamente russo nisso: essa tendência também é vista em muitos outros países que são autoritários ou que estão se inclinando para o autoritarismo.

Eles são utilizados como ferramenta: uma postura antiliberal em relação ao gênero faz parte dos esforços para manter um sistema político antiliberal de forma geral. Ao longo da última década, vimos ataques diretos à democracia ocorrendo paralelamente a ataques à igualdade de gênero. Há uma correlação clara.

SWI: O que os defensores dos “valores tradicionais” criticam concretamente?

L.B.: Eles veem a “ideologia de gênero” como uma forma de perversão que ameaça a existência humana. Resumidamente: se a igualdade de gênero fosse alcançada, a humanidade desapareceria – ninguém mais se reproduziria, todos seriam homossexuais ou feministas que se divorciam e fazem abortos. É exatamente isso que está acontecendo atualmente no Ocidente, segundo o argumento deles.

Desde 2013, a ideia de que o Ocidente tenta exportar e promover essa “ideologia perversa” foi integrada à doutrina estatal russa. Na Rússia, a ideologia é supostamente disseminada pelas feministas e pelo movimento LGBTQ.

A última consequência dessa lógica é a afirmação de que não é apenas a igualdade de gênero que é uma ferramenta cínica do poder ocidental, mas tudo relacionado aos direitos humanos e à democracia. Todos são exportações ocidentais que servem para estabelecer e consolidar o domínio ocidental.

Como resultado, a Rússia sente que, para manter sua posição, ela precisa não apenas lutar contra o feminismo e a igualdade, mas contra toda a ideia de democratização.

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SWI: Em que medida a misoginia e as políticas anti-LGBTQ impulsionam o autoritarismo? Ou em que medida elas são uma consequência dele?

L.B.: A mesma pergunta poderia ser feita em relação à democracia: em que medida a democracia promove a igualdade ou em que medida a igualdade promove a democracia? A verdade é que ambas agem uma sobre a outra de forma recíproca. Quanto mais um movimento social e democrático incluir um compromisso com a igualdade, maior será a probabilidade de ele resultar em uma democratização sustentável.

E, para um autocrata que deseja manter ou consolidar o poder, as táticas repressivas não são motivadas unicamente por uma perspectiva antifeminista ou anti-LGBTQ. Elas também são estratégicas, pois esses movimentos comprovadamente impulsionam e catalisam a democratização.

SWI: Essas guerras culturais não se limitam à Rússia. Até que ponto elas são coordenadas em escala global? Existe um “movimento global anti-LGBTQ”?

L.B.: Sim, eu o chamo intencionalmente de movimento internacional “antifeminista” ou “antigênero”. Acho importante enfatizar que os dois aspectos estão combinados: o movimento combate explicitamente, e de forma coordenada, os direitos estabelecidos das mulheres e da população LGBTQ.

Um exemplo é o World Congress of Families (Congresso Mundial das Famílias), fundado em 1997. Essa ONG transnacional foi impulsionada principalmente por evangélicos americanos, mas seus fundadores foram um americano e um russo, o que mostra que a conexão vem de longa data.

A organização declarou explicitamente que seu objetivo era defender a família nuclear heterossexual como um pilar da humanidade e como protetora da vida humana desde o momento da concepção. Por isso, ela busca criminalizar o divórcio, o aborto e o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Ela faz lobby por essas demandas tanto publicamente quanto junto aos políticos.

Desde sua fundação, ela tem realizado congressos regionais e globais regularmente, e tem atraído cada vez mais convidados de prestígio – Viktor Orbán, por exemplo, é muito bem-vindo. O segundo congresso foi realizado em 1999, em Genebra. E, mesmo que suas iniciativas para restringir o aborto não tenham dado em nada, organizações suíças como a Pro Life e a Swiss Aid for Mother and Child usam argumentos e estratégias baseadas diretamente no que aprenderam nesses congressos.

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SWI: Isso não parece exatamente uma coordenação global.

L.B.: Claro, não estamos falando de uma única estratégia global. Esses grupos operam aprendendo uns com os outros sobre o que funciona ou não, já que as questões de igualdade diferem de acordo com o contexto. Pode ser melhor atacar programas de educação sexual ou eventos de drag queens.

Na Rússia, cogitou-se que aqueles que fizessem uma tatuagem LGBT deveriam poder ser processados. Na Itália, os médicos que se recusam a realizar abortos por motivos de consciência e que são posteriormente processados recebem apoio financeiro. É uma questão de comparar argumentos e métodos, o que também tem implicações práticas.

(Adaptação: Clarice Dominguez)

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