“A Suíça e sua neutralidade enfrentam grandes desafios”
A União Europeia poderia também adotar a neutralidade? A ex-ministra suíça das Relações Exteriores, Micheline Calmy-Rey tenta responder essa questão no seu recém-lançado livro.
A neutralidade suíça alimenta muitos debates acadêmicos e políticos. No livro intitulado”A Neutralidade – entre mito e modeloLink externo“, Calmy-Rey, a estadista que cunhou o termo “política externa ativa”, reúne a história, a teoria e a prática da neutralidade suíça e chega a novas ideias, algumas delas deveras polêmicas.
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Qual é o futuro da neutralidade suíça?
swissinfo.ch: A Suíça concorre a um assento não permanente no Conselho de Segurança da ONU. Por que a Senhora considera esta candidatura compatível à neutralidade do país?
Micheline Calmy-Rey: Na grande maioria das situações, o Conselho de Segurança não age militarmente, mas politicamente. Esse órgão tomou decisões militares em quatro situações: Coréia, Iraque, Kosovo em 1999 e Líbia, em 2011. Em todos esses casos agiu em uníssono, ou seja, em nome da comunidade mundial.
E é exatamente isso que faz a diferença essencial quando, em disputas entre países, se aplica a neutralidade. Nos casos que acabamos de mencionar, a questão da neutralidade não se aplicava. Por quê? Pois foram intervenções feitas à pedido da comunidade internacional.
swissinfo.ch: Mas a Suíça não teria de se posicionar dentro do Conselho de Segurança? E não estaria, dessa forma, exposta a pressões?
M.C.: A Suíça já é ativa dentro da ONU. Ele toma posições, se pronuncia e não fica sentada, em silêncio, na sua cadeira. Ter um assento no Conselho de Segurança ampliaria sua capacidade ação e daria mais influência ao país.
swissinfo.ch: Estaria o país defendendo assim seus próprios interesses? Os de um pequeno país que quer dar a sua opinião no mundo?
M.C.: Sim, graças aos intensos contatos internacionais, costurados através da sua participação no Conselho de Segurança, a Suíça poderia expandir sua rede de contatos, o que é essencial à eficácia da nossa política externa. Isto daria à Suíça acesso aos grandes atores da política internacional e lhe ajudaria a defender seus próprios interesses.
Na Suécia também houve esta discussão. O debate era saber se a posição de neutralidade seria compatível com um assento no Conselho de Segurança. No final, o país assumiu o papel de mediador. Como você sabe, não é fácil chegar a acordos no Conselho de Segurança. A Suíça também poderia assumir um papel semelhante, pois estamos acostumados a encontrar soluções consensuais. Além disso, temos bons diplomatas. Seria um papel ideal para nós.
swissinfo.ch: O livro menciona Jean Ziegler (n.r: escritor e político suíço), que uma vez descreveu a Suíça como um país hipócrita. Como ela teria de mudar para não ser mais criticada dessa forma?
M.C.: A questão é saber: como é compatível manter relações políticas e econômicas países que violam sistematicamente os direitos humanos – ou estão envolvidos em conflitos – e, ao mesmo tempo, se declarar neutro?
Dou o exemplo da Arábia Saudita: na primavera de 2019, a Suíça se recusou, junto com outros trinta países, a assinar uma declaração conjunta pedindo a libertação de ativistas de direitos humanos e uma investigação da ONU sobre assassinatos extrajudiciais no caso Jamal Khashoggi. A Suíça se absteve de votar.
Isso me leva então à pergunta: nossa tradição humanitária foi esquecida? Seria interesse da Suíça se expressar com tanta cautela, querendo, ao mesmo tempo, aumentar sua influência no mundo?
Nossa credibilidade – e capacidade de persuasão – estão em jogo. Não acho que a gente precise escolher entre os interesses econômicos e a neutralidade, mas agir coerentemente no cenário internacional.
swissinfo.ch: A lei não obriga a Suíça a ser neutra. Por que o país é tão rigoroso em colocá-la em pratica?
M.C.: A neutralidade suíça evoluiu. Não é mais o que era no século 16. Seu nascimento ocorreu em uma época que o país tinha necessidade de segurança. Agora passou à neutralidade ativa com base no direito internacional.
A neutralidade evoluiu para enfrentarmos riscos e desafios em um mundo globalizado. Eles poderiam ser uma pandemia ou a necessidade de termos um desenvolvimento sustentável. A prevenção e solução de problemas globais constituem uma grande parte da segurança nacional da Suíça – e a defesa de seus interesses no mundo.
Mas concordo: as regras de neutralidade só se aplicam nos conflitos entre países. A política de neutralidade não é regulamentada por lei, mas sim expressa a vontade de um país neutro de não tomar posição em um conflito entre países. O valor político concreto da política de neutralidade é, portanto, aberto e deve levar em conta a política externa e os interesses de segurança do país.
swissinfo.ch: A Suécia e a Áustria deixaram de ser neutras. Somente a Suíça mantém essa posição tradicional. O país seria ingênuo? Acredita que a neutralidade pode protegê-lo?
M.C.: Eu defendo uma política de neutralidade ativa. Minha reinvindicação não é que o país desista da sua neutralidade.
Uma política de neutralidade ativa significa: a Suíça está do lado do direito internacional, não escolhe um dos lados em um conflito, mas sim o lado da lei. É claro que é apropriado se posicionar e condenar as violações do direito internacional. Permanecer em silêncio não basta.
swissinfo.ch: Mas a Suíça não deveria avançar e se colocar sob o escudo protetor dos Estados Unidos através de uma adesão à OTAN, especialmente neste momento de crise?
M.C.: É o que escrevo no meu livro: a Suíça e sua neutralidade enfrentam grandes desafios. O sistema de segurança coletiva da ONU está enfraquecido. Novas formas de conflito surgem.
Outro desafio é a capacidade de defesa do Exército suíço. Um dos objetivos da neutralidade armada é poder defender o nosso território. E a exportação de armamentos desqualifica a credibilidade da Suíça ao exercer sua neutralidade.
Portanto, a neutralidade suíça enfrenta desafios, mas isso não significa que ela não seja mais útil. Ainda hoje a neutralidade é um trunfo para o país, pois confere um papel especial na comunidade internacional através de seu compromisso humanitário, dos bons ofícios e da política de “soft power”, ou seja, a diplomacia e promoção da paz.
swissinfo.ch: Seu livro levanta a possibilidade de a União Europeia também adotar a neutralidade. Uma UE neutra significa que a OTAN teria de ser dissolvida?
M.C.: O modelo suíço de neutralidade não é aplicável a outros países ou a uma instituição como a UE. Não é isso que defendo.
Talvez tenha me expressado de forma infeliz e não devesse ter usado a palavra “neutralidade” ao tratar da União Europeia. Porém considero que esses fundamentos e os princípios da neutralidade possam inspirar outros atores.
O princípio fundamental da neutralidade é a vontade de seguir uma política não violenta baseada no direito. É uma renúncia ao uso agressivo da força, o que não é incompatível com uma política de defesa europeia ou com uma abordagem transnacional da defesa. Na verdade, defende, sim, um sistema de segurança coletiva da UE.
swissinfo.ch: A Suíça poderia, então, aderir um dia à União Europeia, caso esta adote essa política?
M.C.: No caso de uma adesão da Suíça à UE, a renúncia à neutralidade não seria obrigatória, mas politicamente seria uma decisão bastante sensível. Não podemos esquecer que a política externa e de segurança comum da UE é movida por um interesse de política de defesa comum. Se a UE conseguir implementar essa política, então dificilmente estaria compatível com a nossa neutralidade.
Adaptação: Alexander Thoele
Livro
Micheline Calmy-Rey, “A Neutralidade – entre mito e modeloLink externo” (título original: Die Neutralität, Zwischen Mythos und Vorbild). Editora NZZ Libro, Schwabe Verlagsgruppe AG, Basiléia 2020.
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