Como atrair financiamento para sistemas de saúde nos países mais pobres
Doadores e investidores destinaram bastante dinheiro para o desenvolvimento de medicamentos e vacinas contra a Covid-19, mas faltam recursos para levá-los às pessoas nos lugares mais pobres. Alguns investidores querem mudar isso.
Ao contrário de muitas outras doenças, existe uma vacina eficaz contra a Covid-19. Isso se deve, em grande parte, aos bilhões de dólares canalizados para pequenas empresas de biotecnologia e grandes empresas farmacêuticas. Ainda assim, com cerca de 1% de sua população totalmente vacinada, a África enfrenta um surto de casos de coronavírus em meio à propagação da variante Delta, que é altamente contagiosa.
A Covid-19 destacou a falta de financiamento para sistemas básicos de saúde, infraestrutura e esforços logísticos que garantem que as vacinas e outros medicamentos cheguem à população de países em desenvolvimento.
“Deixamos as populações vulneráveis da África sem a proteção da vacina num contexto em que os sistemas de saúde já são fracos”, afirmou recentemente Mike Ryan, do Programa de Emergências em Saúde da Organização Mundial de Saúde, numa coletiva de imprensa. “Essa é uma consequência da atual distribuição desigual de vacinas.”
Embora a Covax – o mecanismo global de agrupamento de vacinas – tenha como objetivo fornecer vacinas suficientes para 20% da população de aproximadamente 40 países africanos, ela mal toca no cerne do problema. O Banco Mundial estima que 48 países africanos precisarão de pelo menos US$ 12,5 bilhões (CHF 11,6 bilhões) para vacinar 70% de sua população. Desse valor, serão necessários US$ 3 bilhõesLink externo para a cadeia de abastecimento, armazenagem frigorífica e entrega. Num país como a República Democrática do Congo (RDC), o custo estimado é cinco vezes maior do que o orçamento anual do governo para a saúde.
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Enquanto isso, de acordo com números da Fundação KenupLink externo, os governos ao redor do mundo gastaram 93 bilhões de euros (110 bilhões de dólares) no desenvolvimento de vacinas e tratamentos contra a Covid-19 do início da pandemia até janeiro de 2021. Cerca de 95% desse valor foi para empresas de vacinas.
“É importante garantir o fornecimento de vacinas, mas, se houver uma escassez de trabalhadores da saúde e de infraestrutura para administrar essas vacinas, não será possível atingir o objetivo visado”, alertou Maya Ziswiler, que lidera o setor de Finanças Sociais na UBS Optimus Foundation e trabalhou por muitos anos no Fundo Global de Combate à Aids, Tuberculose e Malária, sediado em Genebra.
“Essas barreiras podem ser muito mais críticas do que a disponibilidade do produto em si.”
O elo perdido
Maximilian Martin é responsável por finanças inovadoras e filantropia no banco privado suíço Lombard Odier. Ele acredita que os mercados financeiros e as inovações podem contribuir, ao menos em parte, para resolver o problema da falta de financiamento. O conceito não é novo, a “primeira geração” de mecanismos de financiamento inovadores tem tido várias histórias de sucesso.
O Fundo Global de Combate à AIDS, Tuberculose e Malária – lançado em 2002 para impulsionar o acesso a medicamentos para as três doenças – e a aliança de vacinas Gavi são exemplos disso. Ambas as iniciativas se baseiam no princípio de agrupar as fontes de financiamento e as demandas dos países, a fim de garantir aquisições diretamente com os fabricantes e, em última instância, reduzir os preços dos produtos. Mais de vinte anos depois, essa mesma ideia está na base do mecanismo de garantia de mercado da Covax, denominado Compromisso de Mercado Antecipado (AMC, em inglês).
Outros mecanismos têm sido utilizados para incentivar o desenvolvimento de medicamentos para doenças amplamente disseminadas em países de baixa renda. Esse tipo de parceria possibilitou que o grupo Novartis, com sede na Basileia, e a organização Medicines for Malaria Venture desenvolvessem uma versão facilmente ingerível do Coartem, um dos medicamentos antimaláricos mais utilizados no mercado.
“[Esses mecanismos] sempre visam pensar em como gerar mais certeza, como avaliar o preço do risco e como utilizar a experiência financeira junto a uma variedade de instrumentos”, disse Martin à SWI swissinfo.ch.
Porém, até agora, quando se trata de cuidados básicos de saúde e desenvolvimento de infraestrutura, esses mecanismos têm tido dificuldade em não apenas disponibilizar vacinas, mas também tornar outros medicamentos disponíveis para os mais pobres.
Existem “excelentes programas e mecanismos filantrópicos que combatem a poliomielite e outras doenças com medicamentos gratuitos ou mais baratos. Mas é difícil investir em serviços básicos de saúde para combater doenças, sejam elas transmissíveis ou não”, disse Florian Kemmerich, sócio da Bamboo Capital – uma empresa de investimentos de impacto sediada em Genebra –, à SWI swissinfo.ch.
“Todos os esforços para derrotar a pandemia de Covid são extraordinários. Mas, infelizmente, eles não resolvem as questões sistêmicas fundamentais do acesso desigual à saúde.”
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Para George Jagoe, do Medicines for Malaria Venture, é mais fácil mobilizar recursos para uma campanha pontual como a vacinação contra a Covid-19. “Quando a campanha termina, ainda é necessário ter um sistema de saúde que possa oferecer, regularmente, cuidados básicos em situações verdadeiramente complicadas. E muitas vezes não é isso que acontece.”
Em 2017, a OMS estimou que metade do mundo não tinha acesso a serviços essenciais de saúde, e que 100 milhões de pessoas caíram na pobreza extrema por causa de gastos na área. Segundo especialistas, a pandemia apenas piorou a situação.
Próxima geração de ideias
Um dos desafios para atrair investidores é a complexidade de trabalhar com governos, afirma Prashant Yadav, especialista em cadeia de abastecimento em saúde no Centro para o Desenvolvimento Global.
“O principal desafio é que, diferentemente do desenvolvimento de medicamentos, no qual os atores são majoritariamente empresas privadas, a distribuição de medicamentos muitas vezes é feita pelo governo dos países e é difícil projetar mecanismos financeiros para eles”, disse Yadav.
O Fundo de Financiamento Global (GFF, em inglês), administrado pelo Banco Mundial, está trabalhando para diminuir o risco de investimentos e atrair mais dinheiro para o cuidado básico de mulheres e crianças. Sneha Kanneganti, responsável pela mobilização do setor privado no GFF, afirma que os riscos políticos e financeiros em certos países podem desencorajar muitos investidores.
“Precisamos apenas encontrar as estruturas certas para dar aos investidores os incentivos adequados e tornar o nível de risco gerenciável do ponto de vista deles”, diz ela à SWI swissinfo.ch.
É exatamente o que alguns investidores estão tentando fazer ao reformular ferramentas financeiras tradicionais.
Há alguns anos, a UBS Optimus Foundation concedeu um “empréstimo de impacto” de US$ 400.000 à Hewatele, uma startup africana que produz oxigênio. O empréstimo foi vinculado a metas bem definidas de impacto: o fornecimento de cilindros de oxigênio para clínicas novas e distantes. Com a crise da Covid-19, a fundação aumentou seu financiamento para permitir que a empresa ampliasse sua produção.
A fundação também desenvolveu o primeiro Contrato de Impacto Social em Desenvolvimento de Saúde, destinado a reduzir a mortalidade infantil e materna numa região da Índia. Se as metas sociais forem atingidas, os investidores serão reembolsados integralmente, com um acréscimo de 8% de retorno.
Da mesma forma, o Lombard Odier fez uma parceria com o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, sediado em Genebra, para criar um Contrato de Impacto Humanitário destinado a construir e administrar três centros de reabilitação física na África. Os investidores privados adiantam o dinheiro e são reembolsados pelos doadores se as metas sociais forem atingidas. Até agora, foram recebidos 22 milhões de euros em investimentos.
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A Bamboo Capital e a Stop TB Partnership (Parceria Contra a Tuberculose) acabaram de lançar o Fundo HEAL, um fundo de US$ 75 milhões destinado a investir tanto no desenvolvimento como na implementação de tecnologias de saúde. Seu objetivo é não apenas tratar doenças respiratórias, mas também modernizar o atendimento comunitário básico. A Bamboo e a StopTB agora estão procurando “investidores âncora”, como doadores, para reduzir os riscos financeiros e, assim, incentivar investidores privados a apoiarem o fundo.
Atraindo os gigantes
As empresas farmacêuticas formam um grupo que parece ter um verdadeiro interesse nesse tipo de investimento, especialmente à medida que a África se torna um mercado cada vez mais atraente.
“As empresas deveriam apoiar o sistema de saúde como uma condição necessária para estimular a demanda e experimentar formas inovadoras de oferecer seus bens e serviços”, disse Ziswiler, da UBS. Muitos grupos farmacêuticos já são ativos no fortalecimento dos sistemas de saúde, mas isso se dá frequentemente através de projetos filantrópicos agradáveis, em vez de investimentos sustentáveis e passíveis de serem expandidos.
Kemmerich disse que a Bamboo tem dialogado com diferentes empresas farmacêuticas, mas que parece ser difícil, para elas, fornecer os CHF 15 milhões em capital de primeira perda necessários para ampliar os programas de acesso à saúde.
Então, por que não desenvolver instrumentos de financiamento para atrair essas empresas? Martin, do Lombard Odier, não acredita que seja uma ideia tão absurda. Os “títulos verdes”, destinados a ajudar as empresas a financiarem projetos de energia limpa, já estão sendo utilizados para arrecadar dinheiro nos mercados de dívida.
“De uma perspectiva financeira, seria interessante reunir as 50 principais empresas mundiais com expertise em saúde, experiência em cadeias de abastecimento e conhecimento de produtos, e pensar em como podemos desenvolver instrumentos financeiros que possam incentivar cada uma dessas empresas a contribuir mais para o bem comum”, disse Martin.
“Se não há medicamentos, é difícil ajudar o paciente. Ao mesmo tempo, não se trata apenas da quantidade de medicamentos que se pode vender.”
Adaptação: Clarice Dominguez
Adaptação: Clarice Dominguez
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