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A suíça de alma indígena

Claudia Andujar em seu apartamento em São Paulo. Guilherme Aquino

Claudia Andujar vive em um apartamento no vigésimo andar de um prédio moderno no centro de São Paulo. Ela é considerada uma das maiores fotógrafas da atualidade. Suas obras das tribos Ianomâmis estão nos principais museus do mundo.  

Essa suíça de voz rouca e fala mansa, recebe swissinfo.ch, vestida de branco, numa sala branca, poucos móveis, com amplas vidraças, paredes cobertas por livros e três grandes fotografias de índios, em meio às plantas e objetos de artesanato indígena. “Eu soube da existência de uma xamã Ianomâmi, mas não cheguei a conhecê-la. Foi uma raridade”, conta Claudia Andujar.

Aos 85 anos, imersa na selva de pedra da capital paulista, ela continua a proteger os povos da floresta amazônica. Difícil dissociar Claudia Andujar da sua razão de viver: os índios. Mas uma conversa com ela significa ainda um mergulho na sociedade brasileira. Como atenta observadora, ela registrou os hábitos e os costumes da nação eleita para ser sua pátria. 

 A viagem para o Brasil foi de navio, em 1955 “Eu vim para visitar a minha mãe que tinha vindo para cá atrás do namorado húngaro com quem se casaria aqui… e acabei ficando. Gostei muito do país, muito mais do que dos Estados Unidos”, diz ela, com um leve sotaque estrangeiro que o tempo não conseguiu apagar. 

De cultura cosmopolita, Claudia Andujar, antes de seguir as andanças dos índios pela floresta, tinha passado pelas cidades de Nagyuárhd (Oradea, na atual Romênia), na Hungria, e Nova York, incluindo estadias alternadas na Suíça, em Neuchâtel, onde nasceu. A infância e a adolescência foram marcadas pelos horrores da Segunda Guerra Mundial, na Hungria. “Estávamos sempre fugindo. Meus pais se separaram antes da guerra. Meu pai e toda a família dele eram judeus da Transilvânia e, em 1944, foram levados para um campo de concentração e todos morreram”, lembra ela que somente escapou porque o namorado da mãe era um policial e alertou sobre a chegada dos nazistas na Hungria ocupada.

Claudia Andujar conheceu na pele o sofrimento e aprendeu a sobreviver e a conviver com ele. Ali, nasceria sua curiosidade pelo ser humano e, mais adiante, sua batalha pelos direitos dos índios pela demarcação das terras. “ Não tive uma infância simples. Eu aprendi a lutar através de tudo o que me aconteceu na infância e na adolescência. O líder Davi Kopenawa me disse que eu o ensinei a lutar quando tentávamos a demarcação das terras indígenas, o peguei pelo braço e corremos o mundo em busca de apoio”, conta ela. 

 Fotografia poética

Autodidata, ela começou com a pintura. “Eu nunca estudei em escolas de belas artes ou de fotografia. Em Nova York, para onde eu fui a convite de um irmão de meu pai, visitava os museus e galerias. Quando chegava em casa, começava a desenhar e a pintar quadros abstratos”, relembra. Lá, ainda trabalharia como intérprete na ONU.

Do interesse artístico para a fotografia foi um pulo. “Eu comecei a fotografar no Brasil. Estava muito interessada em conhecer o Brasil, o povo brasileiro. Eu viajava bastante para o litoral, por exemplo, onde era possível eu ir. Não era apenas ligada ao pessoal de São Paulo. E ali começou o meu interesse pelos índios, que também fazem parte do povo”, diz Claudia Andajur. 

Como todo estrangeiro em terras distantes, a suíça frequentava muitos “vizinhos de casa europeus e americanos”. Um desses amigos, em 1958,  a apresentaria ao antropólogo Darcy Ribeiro (1922-1987). Esse encontro marcaria a sua vida. “Ele viu o meu trabalho de fotografia e me sugeriu uma visita aos índios Karajá. Não fui em nenhuma missão oficial, foi mesmo uma visita para mim. Estive com eles um mês na primeira vez e dois na segunda. Depois fui aos Bororós e sempre era bem recebida”, recorda. 

 Pouco antes, Claudia Andujar tinha fotografado povos indígenas na Bolívia. E por que não conhecer aqueles brasileiros?! Naquele período, ela dava aulas de inglês e começava a colaborar com revistas internacionais e nacionais como Look, Life, Aperture, Claudia, Quatro Rodas, Setenta. O fotojornalismo era perfeito para “mergulhar” no Brasil. Intuitivamente, ela já apontava as lentes principalmente para grupos fechados, de alguma maneira ligados à cultura da terra e suas crenças.

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Uma suíça que se revelou fotógrafa no Brasil

Este conteúdo foi publicado em Aos 84 anos, ela continua a morar em São Paulo, onde chegou em 1955. “Eu vim para visitar a minha mãe que tinha vindo para cá atrás do namorado húngaro com quem se casaria aqui… e acabei ficando. Gostei muito do país, muito mais do que dos Estados Unidos”. A infância e a adolescência foram marcadas pelos…

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O começo foi difícil. Nem todos os projetos emplacavam nas revistas. Entre1962 e 64, ela registrou o cotidiano de quatro famílias de contextos diferentes, com as quais viveu semanas a fio: uma rica dona de fazenda de cacau, no sul da Bahia; uma de classe média da capital paulista; outra isolada de pescadores caiçaras de Ubatuba; por fim, uma religiosa, no interior de Minas Gerais.

“Eu era filha de judeu com uma evangélica, vivia num país católico. Na Suíça, meus avós maternos eram protestantes e se esforçaram para me integrar a uma religião, até chamaram um pastor para me dar aulas”, lembra Claudia Andujar que, ao final, ganharia a sua religiosidade no sincretismo brasileiro e na pajelança indígena.

 Vanguarda

O trabalho somente veria as luzes meio século depois, com a recente mostra “No Lugar do Outro”, no Instituto MoreiraLink externo Sales, no Rio de Janeiro. As imagens não chegariam a ser compradas por nenhuma publicação da época. Mas fizeram um grande sucesso na exposição sobre os 60 anos fotógrafa no Brasil. 

Claudia Andujar estava à frente do tempo. O encontro dela com revista Realidade, um marco no fotojornalismo nacional, aconteceria apenas dois anos depois. Nela, ela trabalharia entre 1966 e 1971. Temas em debate como as sessões espíritas do médium Zé Arigó, a vida das prostitutas, o retorno de trem dos sertanejos, a emancipação da mulher além de ensaios urbanos e nus artísticos estavam na pauta da fotógrafa.

Esses trabalhos levaram Claudia Andujar a explorar novas linguagens e perspectivas no campo da fotografia, deixando-a na vanguarda. “Eu experimentava muito. Algumas imagens eu tirava e depois sobrepunha umas às outras, como no caso deste nu ou a série Sonhos onde eu criei a mitologia dos Ianomâmi”, explica ela sobre algumas imagens que tratam da queda do céu, o fim do mundo, segundo os índios.

Os serviços fotográficos de Claudia Andujar representam verdadeiros tratados de antropologia e sociologia. O olhar estrangeiro captura cenas e detalhes que escapam ao nativo de um determinado local. As imagens atraem a atenção do leitor como imãs.  O aguçado senso da estética e o humanismo de Claudia Andujar também se revelam com os negativos das imagens.

O toque abstrato de suas primeiras pinturas se transformou em impressionismo no campo da fotografia. A personalidade de Claudia Andujar interpreta-se em suas fotos, coloridas ou preto e branco. “Sim, concordo e sei que o meu trabalho não é descritivo, mas subjetivo. Faz parte do meu caráter. Não é que me esforcei para isto”, afirma ela diante do catálogo da exposição.

E lembra: “fui chamada pelos filhos das pessoas fotografadas. Queriam saber se eu poderia levar parte da mostra para o lugar onde moravam, na época. Sabe, algumas vezes eu levava as imagens para eles depois que as revelava”, conta Claudia Andujar.

A espiã que veio do frio

 A vida da fotógrafa dá uma guinada quando ela encontra um outro suíço baseado no Pará, em fins da década de 60. Foi o etnólogo René Furst foi quem primeiro pronunciou a palavra mágica aos ouvidos de Claudia Andujar: Ianomâmi. “Ele vive em Genebra, mas o conheci aqui no Brasil. Primeiro, me levou até os Xikrim Caiapó, com quem estava ligado. Depois me sugeriu os Ianomâmi pois já tinha estado na região do rio Catrimani e conhecia o Carlo Zacquini, missionário italiano que até hoje luta em defesa das tribos”, recorda ela para swissinfo.ch.

A chegada de Claudia Andujar foi uma aparição para os índios. “Não, eles nunca viram uma máquina fotográfica, nem uma fotografia, eu diria, nem uma imagem de qualquer lugar, nunca viram. Por exemplo, uma revista, nunca viram. Para eles (os Ianomâmis) era algo completamente desconhecido. Quando cheguei lá eles ficaram muito curiosos para saber quem eu era …a primeira coisa se eu era homem ou mulher. Usava uma calça jeans. Vieram as mulheres que me apalpavam para ver se eu tinha seios”, lembra ela.

 Ela não bateu nenhuma foto antes de conquistar a confiança dos índios. Foi quase como o começo de um namoro. “Foi assim mesmo. Depois comecei a segui-los pelas andanças no mato e depois me interessei pelos rituais. Eu quis entender a maneira de pensar deles, isso para mim era fundamental”, lembra Claudia Andujar, que depois passou a reproduzir em fotografia suas descobertas com os índios. “Eu tinha uma intimidade muito grande com os índios. Eles não prestavam mais atenção em mim. Ninguém fugiu porque eu tirava foto, ou reagiu de maneira negativa. Mas me deixaram fazer como se eu não estivesse lá”, diz ela.

A edição especial da revista Realidade, com o trabalho sobre os Ianomâmis, foi publicada em 1970. O enorme sucesso tornou conhecido o nome de Claudia no meio da fotografia. Pouco tempo depois, ela abandonaria tudo para viver e defender os índios, com os quais viveu ao longo da década de 70. E que até hoje tenta proteger: “É muito negativo. Este governo atual, para os índios é terrível, não tem dúvida”, afirma Claudia Andujar sobre o projeto de lei que transfere os poderes de demarcação das terras da Funai para o Congresso Nacional.

Hoje como ontem

O projeto do governo militar de construir a Perimetral Norte, rodovia que cortava as terras onde viviam os Ianomâmis representou uma tragédia. Na linha de frente, Claudia Andujar viu os trabalhadores contaminarem os índios com doenças contra as quais eles não tinham defesa. “Para mim foi muito complicado. Olha, eu me naturalizei brasileira para poder continuar a trabalhar com os Ianomâmis. E também porque me sentia brasileira e me identifiquei com o Brasil”, recorda ela. 

Na virada dos anos 1980, ela seria expulsa da região pela Funai: “eles me acusaram de manter fora do Brasil ligações, não sabiam bem com quem, mas com os governos. Isso mesmo, e um dia uma pessoa da Funai, de Boa Vista, veio de avião e me disse: ”agora a senhora vai sair, na hora” …eles falaram muito dos Estados Unidos, que queriam entrar e ocupar a Amazônia, então eu era considerada uma espiã”, diz a fotógrafa.

Mãe dos Ianomâmis

O casamento entre a vida de Claudia Andujar e a existência dos Ianomâmis foi celebrado pelo Instituto InhotimLink externo, em Brumadinho, Minas Gerais. O célebre museu inaugurou uma galeria permanente e expões 400 fotografias. O espaço arquitetônico remete à disposição natural das aldeias Ianomâmis. Boa parte das imagens é inédita. “A própria construção tem uma integração com a cultura indígena. As paredes são revestidas de tijolo, mas a divisão interna não tem portas nem janelas”, conta entusiasmada Claudia Andujar.

 O curador da mostra, Rodrigo Moura, quis conhecer de perto o mundo dos Ianomâmis. Claudia Andujar o levou para a assembleia que ocorre a cada dois anos. “A última vez foi no começo do ano passado. Foi uma surpresa para mim, pois nesse encontro todos me chamavam de mamãe. Tinha muita gente que eu tinha visto criança e que eu conhecia do passado. Eu que não tive filhos posso dizer que tenho cerca de 20 mil”, diz ela.

E como toda a mãe que se preze, Claudia Andujar se preocupa com o futuro de seus ‘meninos’. “Eles deixam as aldeias e estão se dando conta do valor das coisas, do dinheiro, do comércio…então não sei o que dizer, vai depender muito de ter indivíduos que, apesar disso, querem manter seu povo; não é que todos se afastam, tem que chegar a uma convivência de respeito pelo outro…é complicado, os Ianomâmis que vão para cidade estão numa situação complicada e como isso vai acabar eu não posso dizer”, reflete Claudia Andujar.

Seu acervo completo tem cerca de dez mil imagens. “Tenho que digitalizar o meu trabalho. Tenho alguma coisa porque estou trabalhando com isso, mas tem o que não foi publicado, farei isso em 2016, agora, vamos ver como farei isso”, afirma a fotógrafa que quer a permanência das fotografias no Brasil como um legado pessoal da história desses índios. A chance deles conhecerem de perto como viviam seus antepassados, através do olhar de uma cacique suíça.

Biografia breve

Claudia Andujar nasceu em Neuchâtel e herdou o sobrenome do ex-marido espanhol de quem se separou pouco antes dele servir na Guerra da Coréia. 

Ela era filha de Siegfried Haas e Germaine Guye.

Uma bolsa da Fundação Guggenheim possibilitou que ela deixasse o fotojornalismo para mergulhar na cultura Ianomâmi.

O pavilhão permanente Claudia Andujar, em Inhotim, tem 1.600 metros quadrados.

O diretor artístico de Inhotim, Rodrigo Moura, afirma que Claudia Andujar “construiu um trabalho com um poder efetivo de intervenção no real, porém feito de costas para o sistema de arte do Brasil”.

Claudia Andujar publicou vários livros de fotografia, entre eles uma “autobiografia”, A vulnerabilidade do ser e Marcados sobre o atendimento médico aos Ianomâmis.

 Nesse livro, os Ianomâmis aparecem marcados com algarismos pelo simples fato de ter uma melhor identificação, pois eles não se chamam por nomes.

Em 1978, ela formou a Comissão pela Criação do Parque Ianomâmi. Essa entidade foi fundamental na demarcação das terras dos Ianomâmis, em 1992.

Segundo os Ianomâmis, o mundo vai acabar porque não se respeita a natureza. Seus ancestrais desceram da primeira camada abaixo do mundo superior. Estamos todos na segunda camada, correndo o risco de cair para a terceira e derradeira.

O etnólogo suíço René Furst está organizando uma mostra de Claudia Andujar, em Genebra, prevista para julho de 2016.

Do total de seu acervo, de cada cem fotos que fez dos Ianomâmis, 98 eram para ela própria e duas para outros fins (inclusive, os jornais).

 

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