Juízes politicamente independentes: a Suíça avança com tropeços
Uma proposta de alteração no ordenamento jurídico suíço ameaça colocar de cabeça para baixo o sistema de nomeação de juízes federais. Nas pesquisas, o futuro da proposição permanece incerto, mas na prática o texto lançado pelo multimilionário Adrian Gasser já abre caminho para desdobramentos inéditos.
A Suíça parece não querer sacudir o seu sistema jurídico. Ao menos, os políticos demonstraram que não desejam alterações. O Conselho Federal (Governo), o Conselho Nacional (Câmara dos Deputados) e o Conselho dos Estados (Senado) votaram contra a proposta popular de alteração. Mas, a última palavra caberá ao povo, já que o texto será encaminhado às urnas.
Todos concordam que a chamada Iniciativa pela Justiça levanta questões legítimas. Mas durante os debates parlamentares, os partidos apontaram que ainda que o sistema atual não seja perfeito, ele funciona bem. No entanto, reconhecem que há potencial para otimização.
Seu objetivo é despolitizar o sistema jurídico. A proposta sugere que os juízes federais só possam ser eleitos com base em suas qualificações – sem considerar a filiação partidária – e por meio de sorteio e análise de uma comissão de especialistas. Atualmente, no ordenamento vigente, a nomeação dos juízes passa pelo Parlamento.
Além disso, a iniciativa popular propõe que os juízes possam concorrer a apenas uma eleição e permaneçam no cargo até a idade de 70 anos. O texto também prevê um procedimento de revogação. Segundo o comité da iniciativa, a proposta de alteração garantirá a independência do poder judicial e, consequentemente, a separação dos poderes.
Apesar de várias propostas – de parlamentares e da Associação Suíça de Magistrados Judiciais – nenhum contraprojeto veio à luz. A designação de juízes do Supremo Tribunal Federal por sorteio é vista como particularmente problemática – muitas vezes qualificada até como “extrema”. Sem o apoio do Parlamento ou do governo, os projetos de lei que vêm da população têm suas chances reduzidas nas urnas. Nove em cada dez iniciativas populares são rejeitadas na Suíça e o projeto de alteração da justiça não começa ganhando, à priori.
Mas, como sempre, os cidadãos que propuseram as mudanças ainda têm motivos para sorrir, mesmo antes da votação. Vários pontos da Iniciativa pela Justiça foram retomados pelo Parlamento. Durante muito tempo, essas questões jurídicas foram alvo de discussões no mundo político e agora, com a pressão da iniciativa popular e as suas 130.000 assinaturas, o debate se impôs no Parlamento.
Um cenário inicial difícil
Oficialmente, na Suíça, os juízes não precisam pertencer a nenhum partido. Mas não é segredo que as vagas são distribuídas de acordo com uma representação proporcional dos partidos, sob um pacto informal. Sem ter conexão com algum partido, quase nenhum juiz é eleito. No país alpino, a última vez que um juiz independente foi escolhido aconteceu em 1942.
A conexão entre os juízes e os partidos foi muitas vezes criticada. Em primeiro lugar, por manter uma negociação considerada questionável do ponto de vista da separação de poderes, em uma barganha que não prioriza qualificações. Em segundo lugar, essa divisão entre as partes não garante uma representação justa dos componentes da sociedade nos tribunais. A proporção de afiliados partidários no eleitorado é estimada em apenas 7% – em uma avaliação aproximada, uma vez que não existe um registro unificado.
As críticas também recaem sobre todos os juízes do país, não apenas os federais. No sistema judiciário suíço, é uma praxe que os juízes doem uma parte de seu salário para partidos políticos. O montante da doação varia de acordo com os partidos e os níveis políticos.
Mas essa contribuição já suscitou críticas em nível internacional. O GRECO (órgão de combate à corrupção do Conselho da Europa) repreendeu a Suíça por esta prática, considerando que havia uma contradição com o princípio da independência do poder judicial.
Atualmente, uma iniciativa parlamentar que quer barrar as contribuições dos juízes federais está tramitando. Seu autor, o deputado liberal-radical Beat Walti, diz que a questão o perturba há muito tempo e que a Iniciativa de Justiça surgiu como um catalisador para seu projeto.
Posteriormente, o Conselho de Estados também discutirá a conveniência de designar um comitê consultivo de especialistas para apoiar o trabalho da Comissão Judiciária responsável pela eleição dos juízes federais, durante o processo de seleção. Assim, fica claro que dois pontos essenciais da iniciativa chegaram ao Parlamento antes mesmo do voto popular.
Uma tese que convence
A Iniciativa da Justiça é obra do empresário Adrian Gasser. A seu ver, a situação atual não é sustentável: o judiciário é uma extensão dos partidos, está politizado e a confiança nas instituições é fraca. O multimilionário lançou (e financiou) um texto que deveria apoiar a separação de poderes e a independência do judiciário.
Nesse estágio, Adrian Gasser continua convencido de que sua iniciativa pode aproximar as pessoas. Questionado sobre os avanços já gerados pelo texto, aplaude: “Sim, mudamos as linhas”. Ele aponta, porém, que as alterações legais realizadas são essencialmente táticas e visam diminuir as chances de seu projeto. Sua campanha terminará apenas quando o veredicto das urnas for conhecido.
Conservadorismo versus consolidação de poder
O advogado Alfio Russo concorda com a observação de Gasser. Para ele, os tribunais suíços são muito politizados. Em sua tese, ele faz uma comparação jurídica com outros países do ponto de vista da nomeação de juízes. Ele conclui que na Suíça existe uma pressão política substancial e vincula essa observação a outra peculiaridade suíça: a reeleição.
Na maioria dos países, os juízes dos níveis mais altos são eleitos de uma vez por todas e por um período relativamente longo. São nove anos para o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (CEDH) e um período vitalício para o Supremo Tribunal dos Estados Unidos. Na Suíça, por outro lado, os juízes federais precisam colocar sua posição em risco a cada seis anos. Como a eleição depende dos votos de seu partido, é provável que surjam relações de dependência.
No que se refere ao procedimento de sorteio, Alfio Russo destaca seu caráter inusitado. Em nenhum outro lugar do mundo a escolha acontece dessa forma. Na França, os juízes seguem uma rota específica para chegar às posições mais altas. No mundo anglo-saxão, os jurados são nomeados por comitês de especialistas. Na Suíça, esse papel é simplesmente transferido para os políticos.
A eleição por sorteio não cai do céu. Existiu na Grécia antiga, nas repúblicas italianas da Idade Média e até mesmo nos cantões da antiga Confederação Helvética. Mas Alfio Russo o considera incompatível com o sistema jurídico atual. Melhor seria apostar em um comitê eleitoral ad hoc, avalia.
A intenção dos partidos e do Parlamento em manter as modalidades atuais é antes de tudo um sinal de conservadorismo, nota o advogado. Ele vê a confirmação disso no fato de que não há tensão esquerda-direita nessa questão. A prática política é amplamente percebida como fiadora da legitimidade democrática. Mas Alfio Russo ainda acredita que o projeto da Iniciativa de Justiça, apesar de ter algumas lacunas, levanta questões legítimas.
Em última análise, o sistema pode muito bem se reformar. No ano passado, a decisão dos juízes do cantão do Jura de não pagar mais a contribuição salarial aos partidos políticos causou polêmica. As partes interessadas não esconderam sua irritação, sabendo que a contribuição dos juízes é muito importante para o seu orçamento. “O sistema eleitoral deve ser revisto”, respondeu um representante do Centro. Ele considera inaceitável que os juízes não paguem nada enquanto exigem o apoio dos partidos em sua eleição.
Adaptação: Clarissa Levy
Adaptação: Clarissa Levy
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