OMC deveria quebrar monopólio de vacinas contra Covid-19
A pressão está aumentando nos países para suspender as regras de propriedade intelectual para ajudar as vacinas a alcançar mais pessoas o mais rápido possível, especialmente nos países mais pobres. A nova Diretora Geral da Organização Mundial do Comércio conseguirá sair desse impasse?
Na semana passada, Gana tornou-se o primeiro país a receber doses de vacinas pelo COVAX – o sistema de compartilhamento de vacinas que visa garantir que 20% da população de cada país receba vacinas. As primeiras doses para Gana foram um sinal positivo de que os países ricos não engolirão todas as vacinas antes mesmo que o resto do mundo comece a se vacinar.
Mas o quadro ainda é altamente desigual, pois as doses de vacinas continuam com pouca oferta. Das 8,1 bilhões de doses vendidas, 60% foram compradas por países ricos, que constituem cerca de 15% da população. Nenhuma pessoa havia sido vacinada em cerca de 130 países até a semana passada, enquanto a Suíça comprou mais de 30 milhões de doses – o suficiente para vacinar a população duas vezes e já disse que poderia dar algumas doses se não forem aprovada para uso.
Embora todos concordem que as vacinas precisam ser disponibilizadas para um maior número de pessoas mais rapidamente, os defensores da indústria e da saúde pública estão em desacordo sobre como fazer isso. Em sua primeira semana de trabalho, a Diretora Geral da Organização Mundial do Comércio, Ngozi Okonjo-Iweala, espera quebrar o impasse nas discussões durante as próximas semanas.
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Tempos de crise
No centro do debate, está a propriedade intelectual (PI); mais especificamente uma proposta para renunciar a partes do Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS) que essencialmente dão às empresas o monopólio sobre a produção de medicamentos, testes e tecnologias. Com isso, os países são impedidos de permitir que outros fabricantes produzam e exportem vacinas para outro país sem riscos legais.
A África do Sul e a Índia propuseram a renúncia em outubro passado para que “a propriedade intelectual não servisse como uma barreira para que produtos médicos pudessem combater a pandemia”. Nenhuma vacina havia sido aprovada na época, mas os países já haviam expressado preocupação em atender a demanda.
Mais de 60 países apoiam a proposta junto com grandes defensores da saúde pública e ONGs, como Médicos sem FronteirasLink externo, que têm feito campanha para que as vacinas contra a Covid-19 sejam tratadas como bens públicos mundiais que não são controlados por nenhuma empresa ou país.
O especialista jurídico Yuan Qiong Hu dos Médicos Sem Fronteiras em Genebra disse para SWI swissinfo.ch que a renúncia é particularmente importante porque as matérias-primas e tecnologias das vacinas são de diferentes países com diferentes regras de PI.
A Suíça está entre um grupo de países ricos, muitos dos quais sediam grandes empresas farmacêuticas, que até o momento se opuseram à renúncia. Em uma declaração compartilhada com a swissinfo.ch, a Missão Suíça junto à OMC disse à Diretora-Geral da OMC que está empenhada em alcançar o objetivo comum e ter uma “discussão baseada em fatos” sobre “se há casos em que a propriedade intelectual está impedindo o acesso”.
A indústria tem constantemente repelido qualquer afrouxamento das proteções de propriedade intelectual dizendo que elas são parte da solução, e não do problema. É por causa da forte PI que as empresas “desenvolveram rapidamente vacinas seguras e eficazes”, argumentou a Federação Internacional de Fabricantes e Associações Farmacêuticas (IFPMA) em uma declaração.
Em uma declaração feita no New York TimesLink externo em dezembro passado, o diretor geral da IFPMA, Thomas Cueni, advertiu que a suspensão das regras de patentes poderia prejudicar a inovação médica futura.
Entretanto, Gaétan de Rassenfosse, professor de Inovação e política de propriedade intelectual da Escola Politécnica Federal de Lausanne (EPFL), acredita que a PI é uma barreira ao acesso.
“Os detentores da PI têm capacidade de produção limitada e muitas empresas em todo o mundo, inclusive nos países em desenvolvimento, são capazes de produzir medicamentos, vacinas e dispositivos médicos. Assim, a renúncia à propriedade intelectual certamente aumentaria consideravelmente a disponibilidade desses produtos”, argumentou de Rassenfosse.
Isto é apoiado por uma investigação recente da Associated Press, que encontrou fábricas em três continentes que têm capacidade não utilizada e seriam capazes de produzir vacinas se tivessem o modelo e o know-how técnico.
Mais do que patentes
De Rassenfosse reconhece que existem outras barreiras – uma opinião compartilhada pela especialista em saúde pública Ellen ‘t Hoen, que é a diretora da Medicines Law and PolicyLink externo e ex-diretora executiva do Pool de Patentes de Medicamentos.
“Quando a indústria diz que a PI não é a barreira, ela está sendo um pouco desonesta. A PI não é a única questão. O objetivo é aumentar a capacidade de produção de vacinas contra a Covid-19. Para fazer isso, é preciso ter acesso a registros regulamentares, know-how e tecnologia. Mas você também precisa de acesso à PI, como patentes, onde elas existem”.
Para ‘t Hoen, parte da solução reside no “COVID-19 Technology Access Pool (C-TAP)” – um mecanismo voluntário lançado em maio passado pela OMS para compartilhar conhecimentos, dados e PI sobre vacinas e tratamentos para a Covid-19. Em fevereiro, o Diretor Geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, reiterou o apelo aos fabricantes de vacinas para que compartilhem o know-how através da C-TAP.
Vários países e o Parlamento Europeu apoiaram o mecanismo quando ele foi lançado, mas ele perdeu impulso depois que o CEO da Pfizer, Albert Bourla, chamou a ideia de “bobagem” e “perigosa”.
O IFPMA permanece firmemente contra a ideia porque discorda da premissa básica de que “os direitos de PI são barreiras à P&D, colaboração público-privada e acesso dos pacientes aos produtos Covid-19”.
Patrick Durisch, que lidera a política de saúde na ONG suíça Public Eye, disse que a falta de apoio ao C-TAP “é uma grande oportunidade perdida. Sabíamos em maio que não haveria oferta suficiente para atender à demanda por vacinas. Pensamos que em tal crise, era o momento de fazer as coisas de maneira diferente e não permitir que os monopólios se metessem no caminho”.
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Manter o status quo
O verdadeiro ponto de discórdia no debate, diz de Rassenfosse, é que “os donos de PI estão relutantes em ceder o controle de suas inovações sem contrapartidas”.
Mesmo que as empresas tenham recuperado seus investimentos iniciais em P&D com as vendas nos países desenvolvidos, elas ainda prefeririam licenciar o uso de seus direitos de PI nos países em desenvolvimento a um preço favorável do que cedê-los gratuitamente ou tê-los “apreendidos” por governos estrangeiros, explicou o professor da EPFL.
Isto é exatamente o que as empresas têm feito – assinar acordos de licenciamento ou transferência de tecnologia com os fabricantes em seus próprios termos. Um exemplo é o acordo da Novartis com a Pfizer/BioNtech para aumentar a produção de sua vacina em Stein.
De Rassenfosse diz que acordos voluntários de licenciamento e fabricação são “obviamente insuficientes” quando você vê como a vacinação no mundo em desenvolvimento está ficando para trás. Leena Menghaney, da Médicos sem Fronteiras, argumenta que o recuo da indústria em relação à PI é realmente apenas uma tentativa de “bloquear a concorrência, manter o status de monopólio e manter os preços altos”.
Em vez de mudar as regras do jogo, a indústria está apoiando os apelos para que mais dinheiro seja canalizado em colaborações para desenvolver e distribuir vacinas. Na semana passada, uma aliança de mais de 148 investidoresLink externo com US$14 trilhões de ativos sob gestão instou os países a preencher a lacuna de financiamento de US$22 bilhões para uma “resposta justa e equitativa à Covid-19”. Um apelo que foi apoiado pelo G7, que anunciou que estava colocando mais US$ 4 bilhões na COVAX.
Mas o dinheiro não vai resolver todos os problemas, diz t’ Hoen, que acredita que uma solução deve ser encontrada através da OMC, que deve lidar com esta crise e estabelecer um precedente para potenciais surtos futuros.
“A vacinação global com uma vacina Covid é um bem mundial. Você não pode fazer isso acontecer se cada empresa decidir por si mesma se deve compartilhar seu know-how e seus direitos. Precisamos ter um acordo sobre o desenvolvimento de bens públicos – e creio que isso acontecerá como resultado da crise da Covid”.
A nova Diretora Geral da OMC sugeriu que uma “terceira via” ou um acordo poderia estar a caminho. Durante sua declaração de posse, ela disse aos delegados da OMC que quer trabalhar com empresas para abrir e licenciar mais locais de fabricação. “Temos que fazê-las trabalhar conosco na transferência de know-how e tecnologia agora. Em breve haverá uma convenção mundial de produção onde poderemos procurar construir esta parceria”.
Adaptação: Fernando Hirschy
Adaptação: Fernando Hirschy
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