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“Os anos de tranquilidade da União Europeia acabaram”

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Outubro de 2019: Comício eleitoral do partido Alternative für Deutschland (AfD - direita populista) em Bad Langensalza (Turíngia). Keystone / Filip Singer

O bloco europeu enfrenta uma provação dolorosa semelhante à que a Suíça experimentou em meados do século 19, quando disputas políticas internas dividiram o país, segundo um autor suíço-alemão. Para evitar a desintegração, a UE deve ousar mais e pode se inspirar na Suíça, diz o pesquisador Steffen Klatt.

swissinfo.ch: Chegamos ao fim dos anos dourados da Europa?

Steffen Klatt: Após a queda do Muro de Berlim, a Europa experimentou um impulso incomparável em direção à democracia, à liberdade e à prosperidade. Ao mesmo tempo, por duas décadas e meia, ninguém desafiou o continente de fora. Os problemas da Europa, até então, tinham sido criados por ela mesma.

Steffen Klatt nasceu em 1966 na então Alemanha Oriental. Estudou história, filosofia e literatura em Berlim, Basel e Odense (Dinamarca), e ainda economia política em Leipzig. Na década de 1990, mudou-se para a Suíça e tornou-se jornalista. Trabalhou para o St. Galler Tagblatt como correspondente da UE e da OTAN em Bruxelas, correspondente na Suíça e editor. Desde 2005, dirige a agência de notícias suíça Café Europe. Seu novo livro acaba de ser publicado (em alemão) pela Zytglogge: “Ouse mais Suíça, faça mais Europa – Um continente entre a renovação e a ruptura” – em tradução livre.

Mas essa de ouro acabou – desde a invasão da Crimeia pela Rússia em 2014 e agora definitivamente com a crise do coronavírus a partir de 2020. Os anos de crescimento lento e segurança ilimitada da Europa não voltarão tão cedo.

De onde vem o perigo?

Pela primeira vez desde a Guerra Fria, há novamente uma competição entre sistemas políticos. O principal perigo para toda a Europa – e a Suíça se inclui nisto – são os poderes autoritários.

Steffen Klatt
Steffen Klatt. Nascido na RDA, ele vive na Suíça desde os anos 90. Claudia Berger

Vemos governos autoritários na Hungria e na Polônia, mas também na Itália e talvez em breve na França. A política baseada no autoritarismo chegou à Europa e a UE tem poucos meios para impedi-la.

“A Europa tem tudo para ser atraente para potenciais agressores”,  você escreveu. Quem iria querer atacar a Europa militarmente? Rússia, países africanos…?

A Europa convive com dois vizinhos que seguem uma política de vingança: a Rússia, que deseja reconstruir a antiga União Soviética, e a Turquia, que deseja recuperar parte do poder do antigo Império Otomano.

A Turquia tenta há décadas exercer influência nos Bálcãs. Erdogan é provocador no Mar Egeu e corre o risco de começar uma guerra por lá. E sim, é bem possível que as pessoas que fogem da África hoje para a Europa um dia cheguem no velho continente com armas.

A Europa é interessante porque é rica e não tem fronteiras claras, não é protegida por dois oceanos como a América. E ela não está suficientemente armada.

Ao ler o seu livro, ficamos com a impressão de que a UE se encontra numa situação precária não só geopoliticamente, mas também economicamente.

Sim, o desafio econômico é quase maior do que o geopolítico. A Europa não se recuperou desde o fim da Guerra Fria.

A Europa é certamente um continente muito inovador, mas o domínio econômico vem da América. Embora muitos elementos que permitem aos Estados Unidos dominar o mercado mundial tenham sido desenvolvidos na Europa.

No entanto, o PIB per capita quase duplicou em 20 anos em toda a UE.

Após o fim da Guerra Fria, a economia europeia deslocou sua produção para o Leste Europeu e para a Ásia e se submeteu voluntariamente ao domínio financeiro e digital da América. Ela deixou seus concorrentes americanos e chineses tirarem o pão de sua boca. E esse ainda é o caso hoje.

O fato de ainda estarmos indo relativamente bem e até melhor do que nos anos 1990, não muda o fato de que importantes decisões econômicas não são tomadas na Europa, mas nos Estados Unidos e na China. E isso não é bom para um continente que quer garantir sua própria prosperidade a longo prazo.

E depois há outro aspecto…

Qual?

Trinta anos após a Segunda Guerra Mundial, a Europa Ocidental era um meio-continente economicamente forte, a Alemanha Ocidental acabara de realizar um milagre econômico. Por outro lado, trinta anos após a queda do muro, não vemos nenhum milagre econômico no Leste Europeu.

Quando metade de um continente fica para trás, isso pesa na coesão do continente como um todo.

Você quer dizer que a desigualdade entre países dentro da UE são divisivas?

Sim, esta divisão pesa muito na Europa. Os europeus orientais entraram na transição esperando que a liberdade viesse com prosperidade. Toda uma geração – a dos meus pais – ficou decepcionada.

Minha geração também encontrou a felicidade principalmente no Ocidente. Isso pesa muito para os que ficaram. Isso explica por que em partes da Alemanha Oriental, onde muitas pessoas não estão tão mal financeiramente, um partido nacionalista como o AfD pode obter 30% dos votos. Ou por que um partido nacional-conservador pode permanecer no poder na Polônia e um Viktor Orban estender seu reinado autoritário na Hungria.

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Novembro de 2022. Manifestantes seguram cartazes pedindo a saída da Alemanha da UE, entre outras coisas, em Mecklenburg-Vorpommern. Keystone / –

Não é apenas uma questão de números absolutos, como a duplicação do produto interno bruto, mas também de como as pessoas percebem a situação. Você não pode viver muito tempo com a sensação de ser um europeu de segunda classe. E esse é o sentimento que muitas pessoas na parte leste têm.

Você diz que em meados do século 19, a Suíça enfrentou o mesmo problema que a Europa enfrenta hoje. O que você quer dizer?

Na época, há quase 170 anos, a Suíça era uma entidade formada por muitas pequenas sociedades à beira da guerra civil. E elas se encontraram em um breve conflito militar, a Guerra de Sonderbund.

O país enfrentava o desafio de manter unidas sociedades totalmente diferentes linguística, cultural, religiosa e economicamente. Ao mesmo tempo, três ou quatro grandes potências estavam ativas em torno da Suíça e teriam impedido de bom grado seu despertar naquela época.

Como conseguimos reunir tantas culturas e sociedades dentro de um Estado que dura tanto e tão bem? A Suíça tem alguma experiência nesta área, na qual a Europa pode se inspirar.

Por exemplo?

Eu destaco três elementos. Primeiro, o desejo de um novo começo. O estado federal suíço é o resultado de um renascimento liberal-radical, e os radicais dominaram politicamente o país por décadas.

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A capa do livro. Zytglogge

Mas, em segundo lugar, esses radicais tiveram a inteligência de aderir ao federalismo. O estado federal era certamente progressista, mas em seus cantões os conservadores, que haviam sido derrotados na guerra de Sonderbund, podiam permanecer senhores, com algum poder, em casa.

E em terceiro lugar, a democracia direta foi gradualmente introduzida, o que tornou possível envolver as minorias mesmo além das fronteiras cantonais.

Não consigo imaginar que a UE vá ouvir você ou a Suíça. Você mesmo diz que a Europa como ela realmente existe ainda não existe. Então, como será o continente daqui a vinte anos?

A Europa está diante de uma encruzilhada: recomeçar ou ficar paralisada. Ou vai na direção de uma renovação democrática – os cidadãos teriam então mais voz, ou vai na direção de uma ruptura democrática, e então os Erdogans, Orbans, Melonis e Le Pens se tornam a norma.

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Giorgia Meloni, primeira-ministra italiana. Keystone / Fabio Frustaci

Suas propostas de soluções no modelo suíço visam a unidade interna e, portanto, devem evitar a desintegração da UE. No entanto, não li em seu livro sugestões de como a Europa poderia se afirmar contra inimigos externos?

Um país ou bloco é forte quando sua coesão é forte. A Europa não se desintegrará somente se a Rússia ou a Turquia se fortalecerem e a atacarem. O continente já está em perigo quando não está unido por dentro. E de fato esse é o caso atualmente.

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Manifestação pró-europeia e anti-nacionalista em Berlim, em maio de 2019. Keystone / Alexander Becher

A unidade interna é, portanto, muito mais importante do que a força militar. Para poder existir neste mundo, a Europa não precisa de mais armas, mas de uma comunidade interna funcional. Não deve então temer a China, e menos ainda a Rússia ou a Turquia. Militarmente, a China ainda é apenas uma potência regional asiática e, se a ameaça nuclear não for levada em conta, a Rússia e a Turquia são muito fracas em comparação com uma Europa unida.

A falta de unidade interna é o grande desafio da UE. E nesta área, o bloco pode muito bem aprender algo com a Suíça.

Adaptação: Clarissa Levy

Adaptação: Clarissa Levy

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