Partir ou ficar? O dilema das empresas suíças na Rússia
Após o início da guerra na Ucrânia, várias empresas suíças suspenderam suas atividades no mercado russo por causa do significativo risco para sua reputação. Mas a escolha de deixar o país nem sempre é fácil. Apresentamos aqui nossa pesquisa.
Junho de 2019, Ignazio Cassis e Sergei Lavrov (respectivamente, ministros das Relações Exteriores da Suíça e Rússia) brindaram a nova embaixada suíça em Moscou. A festa custou cerca de 700 mil francos, uma grande parte dos quais foi paga por patrocinadores privados. Entre eles estão empresas controladas por oligarcas russos sediadas na Suíça como Eurochem, a gigante dos fertilizantes com sede na cidade de Zug liderada por Andrey Melnichenko, o Grupo Volga de Gennady Timchenko, assim como Sulzer e OC Oerlikon, duas empresas industriais suíças tradicionais das quais Viktor Vekselberg é acionista.
Os apoiadores também incluem Nord Stream 2, uma empresa sediada em Baar, Cantão de Zug, que opera o gasoduto da Rússia para a Alemanha e tem como principal promotor Gazprom, a gigante do gás do Kremlin. Além disso, vários grandes grupos suíços aparecem na lista que a swissinfo.ch foi capaz de consultar: Glencore, Sika, UBS, ABB, Philip Morris, Schindler, Nestlé, Lafarge Holcim, Omya, e MSC entre outros. Na época, as empresas suíças tinham uma forte presença na Rússia, investindo na abertura de novas fábricas, adquirindo empresas locais, ou se lançando com força total na corrida pelas matérias-primas.
Menos de três anos depois, a guerra da Rússia com a Ucrânia misturou mais uma vez as cartas do baralho. A Europa e os Estados Unidos, seguidos pela Suíça, impuseram uma série de sanções tanto contra as empresas russas quanto contra os bens dos oligarcas e suas famílias. Sanções estas que têm pressionado os oligarcas sediados na Suíça, enquanto a Nord Stream 2 declarou falência.
E as empresas suíças? Enquanto a Rússia continua sendo um parceiro relativamente menor para a Suíça em termos de importação e exportação de mercadorias, em algumas áreas os interesses econômicos cruzados são mais importantes. Este é particularmente o caso no comércio de matérias primas. Uma grande parte do comércio russo de petróleo e grãos é feita por empresas sediadas em Genebra, Zug ou Lugano. Os investimentos suíços na Rússia também são significativos. Eles são estimados pelo jornal 24HeuresLink externo em 28 bilhões de francos suíços (cerca de 2% do montante total detido no exterior por empresas suíças). De acordo com a Secretaria de Estado para Assuntos Econômicos (SECO), isto representa cerca de 200 empresas que empregam quase 40.000 pessoas nos setores alimentício, farmacêutico, logístico, de construção e de matérias-primas na Suíça.
É claro, todas as empresas condenam a guerra. Diante da indignação do público, permanecer no mercado russo parece indecoroso do ponto de vista da imagem de marca. Nas semanas seguintes ao início do conflito, muitas multinacionais anunciaram sua intenção de deixar a Rússia.
Mas deixar um país onde tanto dinheiro foi investido e onde às vezes se tem centenas de funcionários não é tão fácil; notadamente porque as autoridades russas não estão inativas e pretendem promover uma lei para confiscar bens abandonados. Entramos em contato com cerca de vinte empresas. Em geral, as respostas que recebemos foram mais ou menos as mesmas: somos contra a guerra, paramos os investimentos e estamos monitorando a situação, levando em conta tanto as sanções como as obrigações contratuais.
A lista do professor Sonnenfeld
Seu nome é Jeffrey Sonnenfeld. Desde o início da guerra, o professor na Universidade de Yale se tornou uma espécie de espantalho, não tanto para seus alunos, mas para os líderes de dezenas de multinacionais ao redor do mundo. Com sua equipe, o professor publica uma lista de empresasLink externo que se retiraram ou permaneceram na Rússia durante os meses de conflito.
A lista é constantemente atualizada e apresenta um raio X de mais de mil empresas classificadas em cinco grupos: desde aquelas que abandonaram completamente o país até aquelas que não tomaram medida alguma. “Pensei”, explicou o professor, “que a universidade poderia oferecer sua experiência e objetividade para separar significativamente as empresas que realmente estão deixando a Rússia daquelas que estão apenas fazendo uma operação cosmética, um pouco como ‘greenwashing’ no contexto da mudança climática”.
A lista causou tanta agitação que o professor está sendo perseguido por pelotões de especialistas em comunicação e advogados que estão tentando tirar suas empresas da lista: “Em todos os casos, nossa extensa pesquisa nos fornece fatos sólidos e irrefutáveis”, diz Jeffrey Sonnenfeld. Ele acrescentou: “Não há nenhuma justificativa ética para permanecer na Rússia. As indústrias farmacêutica e alimentícia continuaram a fornecer produtos não essenciais. Precisamos contrariar a propaganda de Vladimir Putin para trazer a sociedade civil à razão e mostrar aos russos comuns que eles se tornaram uma nação criminosa aos olhos do mundo. A complacência dos cidadãos russos os torna cúmplices de Vladimir Putin e eles devem ser alcançados para evitar a terceira guerra mundial”.
Bancos entre os bons alunos
Entre as empresas da lista da Universidade de Yale estão várias empresas suíças. Algumas delas estão deixando a Rússia, ou pelo menos limitando sua presença lá. Jeffrey Sonnenfeld está satisfeito: “Embora haja alguns atrasados, UBS e Credit Suisse, os dois maiores bancos helvéticos, assim como a gigante industrial ABB, estão tentando fazer a coisa certa suspendendo novos negócios, interrompendo algumas operações e serviços em andamento e ajudando os clientes a reduzir sua exposição à Rússia. É claro que as sanções têm encorajado isto, mas existe um imperativo moral (e também econômico) para encerrar os negócios na Rússia antes que seja tarde demais. O capital financeiro e os ativos industriais têm um efeito significativo na economia e quanto mais essas empresas e outras como elas atuarem, mais cedo veremos uma mudança”.
Outras empresas têm tergiversado mais. Entre aquelas que continuam como se nada tivesse acontecido está a Ems-Chemie, a empresa multinacional presidida por Magdalena Martullo Blocher, que é deputada pelo Partido do Povo Suíço (SVP, na sigla em alemão). A empresa não diz muito, apenas que tem duas pequenas subsidiárias russas com cerca de 30 funcionários cada e que “o negócio entrou em colapso”.
As atividades da Swiss Krono na Rússia, por outro lado, são mais consistentes. O principal produtor mundial de materiais à base de madeira emprega cerca de 1000 pessoas na cidade de Sharya, a leste de Moscou. A empresa optou por manter a fábrica em funcionamento, onde a construção de uma nova linha de produção começou em 2021: “Com o início da guerra, paramos todas as exportações de nossos produtos para a Rússia e Belarus. Entretanto, após uma avaliação cuidadosa, chegamos à conclusão de que continuaremos a operar nossa fábrica na Rússia por enquanto”, nos disse a empresa sediada em Lucerna.
A Sika também está na lista de empresas que nada fizeram desde o início do ataque russo na Ucrânia. O grupo originário da cidade de Zug, que é ativo no campo da construção e dos produtos químicos industriais, não respondeu às nossas perguntas. No ano passado, ele adquiriu uma empresa russa com instalações de produção em São Petersburgo e Ekaterinburg.
Bens essenciais?
O caso que tem suscitado mais críticas é o da Nestlé. No final de março, o presidente ucraniano Volodimir Zelenski esteve praticamente presente em uma manifestação em Berna, onde apontou o dedo para o gigante dos alimentos da cidade de Vevey, que ainda está presente na Rússia. “Os negócios na Rússia estão indo bem mesmo que nossos filhos estejam morrendo e nossas cidades estejam sendo destruídas”, exclamou o presidente ucraniano.
Estas palavras fortes foram seguidas por um apelo da Actares, uma organização de acionistas que faz campanha para que as empresas suíças levem em conta não apenas critérios econômicos em suas ações, mas também critérios como os direitos humanos e o respeito às normas ambientais.
Enquanto isso, a multinacional anunciou que reduziu sua presença na Rússia, por exemplo, abandonando a comercialização das marcas KitKat e Nesquik. A Nestlé emprega mais de sete mil funcionários na Rússia e tem seis fábricas que geram vendas de cerca de CHF 1,7 bilhões, menos de 2% da receita total da multinacional. Um porta-voz explicou que “nosso negócio agora está focado no fornecimento de alimentos essenciais e não na obtenção de lucro”.
“A Nestlé tem sido lenta em aceitar que precisa reduzir seus negócios e se limitar a alimentos para bebês e nutrição hospitalar. A multinacional percebeu que produtos como KitKat e Nesquik não são realmente ‘alimentos essenciais'”, diz o professor Jeffrey Sonnenfeld.
O especialista de Yale aponta em seguida o dedo para Barry Callebaut, que gera cerca de 5% de seu faturamento na Rússia. O grupo de confeitaria sediado em Zurique emprega cerca de 500 pessoas em três fábricas na Rússia, uma das quais, em Kaliningrado, foi aberta há menos de um ano. Barry Callebaut suspendeu seus investimentos, mas em resposta a nossas perguntas, a empresa confirma que continua a produzir localmente: “Queremos estar presentes para nossos funcionários e nossos clientes que fornecem alimentos essenciais para a população. Continuamos a fornecer alimentos à população russa e o chocolate faz parte da dieta diária de muitas pessoas”.
A noção de bens essenciais é um conceito relativo. O argumento também é utilizado pela indústria farmacêutica. “Nossos colegas na Rússia desempenham um papel vital para garantir que os pacientes naquele país continuem a ter acesso aos medicamentos essenciais e que salvam vidas e aos diagnósticos de que necessitam. É por isso que estamos mantendo nossas operações na Rússia, que estão focadas na entrega de nossos produtos aos pacientes”, diz um porta-voz da Roche, que não tem instalações de produção, mas emprega 810 pessoas na Rússia.
Nas mesmas linhas, Novartis afirma que: “Nosso compromisso é garantir o acesso a medicamentos para pacientes em todos os países onde operamos”, diz a empresa, que emprega dois mil funcionários e tem uma fábrica em São Petersburgo, na qual anunciou um investimento de 500 milhões de dólares em 2010. Os dois gigantes farmacêuticos disseram ter bloqueado seus investimentos.
O grande dilema
Naturalmente, há também aqueles que anunciaram que estão deixando o mercado russo para sempre. Entre os exemplos está Holcim, que controla três fábricas de cimento e emprega cerca de mil funcionários. “Holcim decidiu iniciar o processo de retirada do mercado russo, de acordo com os valores da empresa de operar da maneira mais responsável possível”, lê-se em uma declaração do grupo. Entretanto, a gigante do cimento também deixou recentemente a Índia. Portanto, é possível que uma nova estratégia de reposicionamento global esteja por trás da decisão de deixar a Rússia. Os últimos anúncios de partida vieram da seguradora Zurich e do banco Julius Baer.
O fato é que a transição para deixar a Rússia certamente não será fácil. “É muito difícil tomar decisões estratégicas sobre o que fazer no momento”, disse à imprensa Frank Rust, chefe da tesouraria da Bucher Industries, um grupo de engenharia sediado em Zurique. “Construímos nossas instalações de produção na Rússia há cinco anos e não há muito que possamos fazer para mudar a situação. No máximo podemos fechá-los se as tensões do mundo ocidental com a Rússia aumentarem”, disse ele no início da guerra. O porta-voz do grupo nos diz agora que o grupo “reduziu significativamente suas atividades comerciais na Rússia”.
A ABB investiu fortemente na Rússia nos últimos anos, empregando 750 pessoas e gerando entre 1 e 2% de seu faturamento lá. A empresa optou por dar um passo atrás, o que envolve levar em conta vários fatores: “Após uma avaliação cuidadosa caso a caso, teremos que cumprir um pequeno número de obrigações contratuais existentes com os clientes, sem violar as sanções impostas”, explica um porta-voz.
Em resumo, uma coisa é cessar temporariamente com o trabalho, outra é enfrentar as dificuldades reais. “Para muitas empresas, a permanência na Rússia acarreta um grande risco de imagem e danos à reputação. Mas a escolha não é tão óbvia quanto parece. Pense no dinheiro e no tempo investidos neste país para ganhar uma fatia de mercado na Rússia “, diz Dimitri Lavrov.
O advogado, sócio da NexLaw em Genebra, está familiarizado com o setor de comércio de commodities russo e sua legislação. Ele também indica outro desafio espinhoso enfrentado pelas empresas estrangeiras que operam na Rússia: “Desde março de 2022, a Rússia tem um projeto de lei que visa colocar as empresas estrangeiras que deixam o país sob administração pública, e depois vender essas empresas e seus ativos a quem fizer a maior oferta se elas não retornarem ou se recusarem a ser colocadas sob administração pública.
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Medo de expropriação
A lei ainda não está em vigor, mas como o advogado aponta, “o processo legislativo na Rússia pode ser muito rápido se houver vontade política”. Para Dimitri Lavrov, o medo deste tipo de confisco levou várias empresas a fazer uma escolha híbrida: “Por um lado, por razões de imagem, elas anunciaram que estão deixando a Rússia, mas por outro lado continuam a pagar seu pessoal, impostos, aluguel e contribuições à previdência social para não serem expropriadas e perderem partes de mercado que poderiam ser penetradas por empresas de países que a Rússia considera amigáveis, como a Índia ou a China.
Por sua vez, as autoridades dizem estar em contato com as empresas e estão monitorando a situação de perto: “A SECO e a Embaixada da Suíça na Rússia estão coordenando estreitamente seus esforços para proteger os interesses das empresas suíças na Rússia. Com relação às muitas incertezas e medidas regulatórias resultantes da difícil situação atual, a embaixada e a SECO estão em estreito contato com empresas na Rússia”, explica a porta-voz Livia Willi.
Desde fevereiro, houve cerca de 60 contatos com empresas interessadas, incluindo aquelas que estavam se indagando se permaneceriam no mercado. Entretanto, a decisão não cabe às autoridades: “A administração pode oferecer apoio para colocar os eventos políticos e econômicos em perspectiva, mas não dá conselhos sobre se deve ou não permanecer no mercado. Essa é uma decisão empresarial que as empresas tomam por conta própria”, conclui Willi.
Para Dmitri Lavrov, um papel crucial é agora desempenhado pelos bancos: “As instituições financeiras têm muito medo do papel de polícia global desempenhado pelos EUA, graças ao uso do dólar como a principal moeda mundial”. No passado, várias instituições bancárias como o BNP Paribas foram sancionadas por financiar atividades comerciais ou outras atividades relacionadas a países sob as sanções dos EUA.
Hoje, os bancos estão indo além das exigências legais e não financiam mais nenhum negócio com a Rússia. Para o advogado, esta situação coloca muitas empresas suíças em dificuldade: “Se elas são ativas na Rússia, correm o risco de terem problemas com os bancos, que temem represálias americanas. Por esta razão, além de declarações de fachada, muitas empresas decidiram pelo menos ‘congelar suas atividades na Rússia’”. Em resumo, permanece o dilema da melhor linha de ação a ser adotada.
Adaptação: DvSperling
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