Quebrando o silêncio no mundo da dança
No último ano, três companhias de dança suíças foram acusadas de cometer abusos psicológicos e assédio sexual contra bailarinos. O problema, que atingiu até o Béjart Ballet Lausanne, não ocorre apenas no país alpino.
Em 2017, o #MeToo tomou conta das redes sociais, trazendo casos de assédio e abuso sexual para o centro do debate e das manchetes dos jornais. O movimento, que começou nos Estados Unidos, após mulheres acusarem Harvey Weinstein – um influente produtor de cinema americano – de praticar abusos sistemáticos, não demorou para atravessar as fronteiras. Novas denúncias e relatos de assédio pipocaram na internet e mulheres de muitos países tomaram coragem para denunciar assédios sofridos, se juntando ao #MeToo.
Na Europa, no mundo das artes e das letras (cinema, televisão, teatro, dança, literatura, etc.), apareceram vários casos que haviam sido varridos para baixo do tapete, até então. Na França, escândalos foram revelados em livros, como em “Le Consentement” (publicado em janeiro de 2020), onde Vanessa Springora, editora, relata como foi abusada aos 14 anos por uma escritora. Na Bélgica, houve um caso recente em torno do coreógrafo de renome internacional Jan Fabre, que foi acusadoLink externo de abuso sexual por bailarinas. E, nesse cenário, a Suíça não é exceção.
Em 2021, o Béjart Ballet Lausanne (BBL) realizou uma auditoria interna para analisar o comportamento raivoso e abusivo do diretor artístico, Gil Roman, com os bailarinos. A companhia de dança suíça, que tem feito sucesso nos palcos internacionais, não saiu ilesa: apareceram denúncias de casos de assédio sexual.
“Um terreno fértil para predadores”
Meses antes, uma investigação do jornal Le Nouvelliste revelou que o fundador da companhia de dança Interface, no cantão de Valais, exercia um “controle psicológico” sobre os artistas, que eram vítimas de manipulação e abuso sexual. Mais recentemente, o jornal Le Temps publicou depoimentos de dançarinos que disseram ter sido assediados sexualmente pelo fundador e diretor da companhia de dança contemporânea Alias, sediada em Genebra.
Mas por que a dança, particularmente, acumula casos deste tipo de violência? Para Anne Davier, que dirige o Pavilhão ADCLink externo, uma associação que promove a dança contemporânea em Genebra, o abuso sexual pode ocorrer em todos os setores e carreiras profissionais. Mas, segundo ela, a dança está na linha da frente “porque nesta profissão o corpo é a principal ferramenta de trabalho, que muitas vezes acontece com muita proximidade física”.
“Ocorre também que a nudez faz parte do projeto artístico. Existe uma ideia de que os artistas não percebem durante suas performances no palco os abusos que sofrem, as pessoas consideram como os bailarinos estão ali apenas como projeto artístico”. Segundo Anne Davier, são muitos elementos que podem borrar os limites e criar um terreno fértil para o assédio sexual, na dança.
Para Davier, os abusos não devem ser encarados como um fato exclusivo que ocorra apenas dentro do balé de Lausanne, como se restingisse geograficamente ao setor de artes francófono. “O abuso de poder não é exclusivo de uma região. Na parte da Suíça onde se fala alemão não houve casos revelados no mundo da dança, mas isso não significa que não existam”, sublinha.
Na Suíça, a imprensa está investigando casos de abuso, entrevistando as vítimas e dando visibilidade para suas denúncias.
Reação do sindicato
Para responder às violências, o sindicato que representa trabalhadores do setor artístico, o Syndicat Suisse Romand du Espetáculo (SSRS), montou uma unidade de apoio para vítimas, inaugurada em novembro passado. A iniciativa pioneira visa “oferecer um apoio neutro e benevolente (…) em caso de sofrimento ou dificuldade no local de trabalho (assédio psicológico ou sexual e pressão)”.
Composta por médicos, advogados e psicólogos, a unidade está aberta a todas as pessoas da Suíça francófona e oferece apoio com medidas preventivas e orientações para enfrentamento das violências.
Na Suíça, a legislação prevê punição para casos de assédio no local de trabalho, “mas essa lei nem sempre é respeitada, infelizmente! Muitas vezes, sua existência não é suficiente”, diz Anne Papilloud, secretária geral do SSRS.
Até agora, a unidade de apoio montada pelo sindicato já recebeu cinco denúncias. “Aqui resguardamos e protegemos a privacidade das vítimas, totalmente” explica Papilloud.
Medo de se expor
Segundo Anne Papilloud, muitos artistas desistem de denunciar as violências por medo. “No caso da [companhia] Alias, por exemplo, alguns bailarinos assediados não expuseram o que sofreram com medo de comprometerem negativamente suas carreiras”, diz ela.
Ainda que o mundo da dança normalmente atraia menos atenção do que o setor esportivo ou cinematográfico, os casos na Suíça alcançaram uma repercussão notória.
“Acho que a notoriedade da pessoa [envolvida] ajuda a criar o brilho [da mídia]”, diz Papilloud. “Mas um abuso é algo escandaloso em si, não importa quem o comete.”
Quando o escândalo no mundialmente famoso Béjart Ballet estourou, Papilloud recebeu notícias da imprensa com múltiplas denúncias de casos similares em outros países.
Para Anouk Van den Bussche, chefe de comunicações da Federação Internacional de Atores (FIA), “a Suíça não é de forma alguma um caso isolado” no mundo artístico. A organização, sediada em Bruxelas, reúne vários membros e entidades ligadas aos palcos de todo o mundo, incluindo o SSRS.
“Compartilhamos muitas informações estratégicas com nossos membros para combater melhor o assédio e o bullying”, diz ela. “O caso do Béjart Ballet teve um grande impacto, principalmente no mundo francófono. Você pode ver isso pelo clamor, especialmente na imprensa”. O caso suíço apresenta semelhanças com o de Jan Fabre na Bélgica”, explica Anouk Van den Bussche.
Capacitação e prevenção
O artista belga foi acusado de assédio no início deste ano, desencadeando um movimento de protesto dentro da comunidade artística de Antuérpia. Após as denúncias, movimentos de apoio às vítimas divulgaram uma plataforma online para receber depoimentos e reclamações.
Mas a luta não passa apenas pela internet e pelos sindicatos. Alguns países abordando mais a fundo o problema e adotando medidas para educar potenciais assediadores. A Suécia, por exemplo, oferece treinamento anti-assédio para seus coreógrafos, diretores e cineastas, diz Van den Bussche. “Artistas que recusam a formação não podem obter bolsas para seus projetos”, explica.
Na Suíça, medidas semelhantes ainda não existem a nível nacional, segundo Anne Papilloud.
Adaptação: Clarissa Levy
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