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A Suíça tem agora uma professora de Medicina de Gênero

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Carolin Lerchenmüller é professora de Medicina de Gênero na Universidade de Zurique desde 1º de maio de 2024. Ela é a primeira professora com esse título específico na Suíça. Thomas Kern / Swissinfo.ch

A SWI swissinfo.ch se reuniu com Carolin Lerchenmüller em Zurique logo após ela ter sido nomeada a primeira professora de medicina de gênero da Suíça. Ela afirma que levará algum tempo para entender completamente como e por que as mulheres reagem de forma diferente a algumas doenças e tratamentos – mas acrescenta que isso não é necessariamente algo ruim.

Como a primeira acadêmica a ser nomeada professora de medicina de gênero na Suíça, Carolin Lerchenmüller não quer ser vista como uma “mascote” ou uma figura simbólica. Seu principal desafio é aumentar a conscientização sobre a importância da medicina de gênero, garantir que sua pesquisa seja confiável e que seu legado persista para além da publicidade. 

“Tenho estado extremamente ocupada com a mudança para Zurique, lidando com solicitações da mídia e convites para apresentações, visitando inúmeras conferências, formando minha equipe, preenchendo vagas e desenvolvendo nossos programas de pesquisa e ensino”, disse ela à SWI swissinfo.ch na Universidade de Zurique, onde agora é professora.

Foram necessários três meses para conseguir marcar um encontro com Lerchenmüller, que começou seu novo emprego em 1º de maio. Seu escritório ainda não estava totalmente mobiliado, então a entrevistamos em uma sala de reunião no campus. 

A medicina de gênero fez uma longa viagem para chegar à Suíça

A medicina de gênero, também conhecida como medicina específica de sexo e gênero, é o estudo de como as diferenças baseadas no sexo e no gênero influenciam a saúde das pessoas. Ela busca entender melhor as diferenças específicas de gênero na biologia e no comportamento social e incorporá-las ao atendimento aos pacientes, ao ensino e ao desenvolvimento de tratamentos.

A disciplina surgiu nos Estados Unidos há mais de 40 anos, quando feministas se uniram a cardiologistas para estudar como as doenças cardíacas afetam as mulheres de forma diferente. Em 1993, o congresso dos EUA determinou que estudos clínicos de Fase III (a última fase antes de solicitar a aprovação para a disponibilização do medicamento no mercado) deveriam incluir um número suficiente de participantes de ambos os sexos para garantir que os dados pudessem ser analisados de acordo com o gênero.

Foram necessários mais 20 anos para que a medicina de gênero ganhasse força e chegasse às faculdades de medicina da Europa.

A Suécia tomou a dianteira em 2001, quando a faculdade de medicina da Universidade de Umeå decidiu integrar as perspectivas de gênero em seu currículo médico.  O Instituto Karolinska, também da Suécia, foi o primeiro da Europa a estabelecer um curso educacional online sobre saúde e doença com base em uma perspectiva de gênero.

Em 2003, a cardiologista alemã Vera Regitz-Zagrosek fundou o Instituto de Berlim sobre Gênero na Medicina (GiM), o primeiro centro de pesquisa interdisciplinar da Europa a adotar uma abordagem sistemática com o intuito de integrar a medicina de sexo e gênero à educação médica e interprofissional.  

Em comparação aos demais países europeus, a área na Suíça tem se estabelecido de forma relativamente lenta. Foi somente em 2019 que o Centro de Medicina Geral e Saúde Pública (Unisanté) da Universidade de Lausanne se tornou o primeiro no país a introduzir disciplinas sobre a influência do sexo e do gênero na saúde.

O país também não tem um bom histórico de promoção de mulheres na área médica. Em 2017, a Suíça lançou o grupo Mulheres na Cardiologia, uma plataforma para mulheres cardiologistas compartilharem seus conhecimentos. Plataformas similares já haviam sido estabelecidas nos EUA em 1994 e no Reino Unido em 2005.

Encontrando inspiração para uma medicina de gênero nos EUA

Lerchenmüller teve seu primeiro contato com a medicina de gênero como cardiologista durante seus estudos no Hospital Geral de Massachusetts e na Escola de Medicina de Harvard entre 2013 e 2017. Uma de suas inspirações na época era Marianne Legato, uma cardiologista americana que foi a primeira a reconhecer e descrever sistematicamente as diferenças entre homens e mulheres nas doenças cardiovasculares.

“As diferenças entre os corações das mulheres e dos homens eram bem reconhecidas e ativamente pesquisadas onde eu trabalhava”, diz ela sobre sua experiência nos EUA.

Enquanto os homens geralmente sofrem de dor torácica com irradiação para o braço esquerdo, muitas pacientes do sexo feminino apresentam sintomas completamente diferentes, incluindo falta de ar, sudorese, dor de estômago, náusea, vômito e dor de cabeça ou pescoço.

Essa diferença na percepção dos sintomas pode ser fatal: “Os médicos, às vezes, ignoram condições graves nas mulheres e as mandam para casa”, aumentando significativamente o risco de não diagnosticar um ataque cardíaco em mulheres, diz Lerchenmüller.

Determinada a deixar sua marca nessa nova área de estudo, ela retornou para sua terra natal, a Alemanha, para liderar um grupo de pesquisa no Departamento de Cardiologia da Universidade de Heidelberg, com o objetivo de estudar e incorporar as diferenças de gênero em seu trabalho.

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Thomas Kern / Swissinfo.ch

“Eu estava muito motivada. Pensei: este é o meu nicho! É aqui que eu realmente quero utilizar meus novos conhecimentos”, diz Lerchenmüller. Mas ela logo se decepcionou. Pouco depois de retornar à Europa, ela notou um grande desequilíbrio de gênero na cardiologia da Alemanha. Por exemplo, na época, pouquíssimas mulheres foram convidadas para palestrar no congresso anual da Sociedade Alemã de Cardiologia. “Isso não era um bom sinal, pois acabaria influenciando nosso foco científico”, diz ela.

Por isso, ela lançou uma iniciativa para mulheres na Sociedade Alemã de Cardiologia a fim de promover uma maior representação de mulheres na área, especialmente em cargos de liderança. Ela passou a liderar o grupo Mulheres e Família em Cardiologia dentro da Alemã de Cardiologia com o intuito construir uma base para a igualdade de gênero baseada em evidências e para promover a diversidade.

Carolin Lerchenmüller é professora de Medicina de Gênero na Universidade de Zurique desde 1º de maio de 2024. Ela é a primeira professora com esse título específico na Suíça. Ela trabalha como médica no Departamento de Cardiologia do Hospital Universitário de Zurique.

Anteriormente, ela foi líder de um grupo de pesquisa e chefe do Laboratório de Remodelação e Regeneração Cardíaca no Hospital Universitário de Heidelberg, onde também trabalhou como cardiologista. Lerchenmüller também atuou como pesquisadora principal no Centro Alemão de Pesquisa Cardiovascular.

Desenvolvendo a medicina de gênero enquanto área de estudo

Quando o cargo de primeira professora de medicina de gênero da Suíça foi anunciado, Lerchenmüller foi uma das poucas pessoas que se candidataram à vaga na Universidade de Zurique. O cargo era voltado para desenvolver diagnósticos e terapias individualizados para homens e mulheres, a fim de entender melhor as necessidades de homens e mulheres na comunidade médica e as estruturas correspondentes para tratá-los. 

Para auxiliar o trabalho, Lerchenmüller está contratando vários estudantes de pós-doutorado e um técnico para realizar pesquisas fundamentais. Ela também pesquisará como gerar dados confiáveis e de alta qualidade com base em uma revisão sistemática de evidências empíricas por meio de colaborações internacionais.

Lerchenmüller diz que seu primeiro desafio será ir além do hype em volta da medicina de gênero e estabelecer sua área de estudo como uma disciplina acadêmica oficial e completa que poderá continuar evoluindo.

“É fácil criar uma nova área de pesquisa ou um cargo de professor em medicina de gênero, mas é muito difícil tornar esse trabalho sustentável”, diz ela. 

As perguntas postas por Lerchenmüller não têm respostas fáceis. Por que algumas doenças afetam homens e mulheres de forma diferente? E por que eles às vezes respondem de forma diferente aos medicamentos?

“Atualmente, não há dados suficientes sobre essas diferenças”, diz ela. “Esse é o desafio que a academia, a medicina clínica e a indústria farmacêutica enfrentam”. Ela destaca que há muitas lacunas nos dados, resultado de décadas de pesquisa, que precisam ser preenchidas.

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Um dos motivos é a sub-representação das mulheres nos testes clínicos. Esse viés permanece durante o desenvolvimento e a fabricação dos medicamentos. “Provavelmente é correto afirmar que, geralmente, os medicamentos que usamos são projetados para o homem branco de 80 quilos”, diz Lerchenmüller.

A produção de evidências de qualidade é ‘um processo necessariamente lento’

Lerchenmüller diz que serão necessárias décadas para superar a lacuna existente nos dados. Como exemplo, ela cita o fato de que as diferenças nos sintomas de ataque cardíaco entre homens e mulheres eram conhecidas desde a década de 1990, mas foram necessários cerca de 20 anos para que elas fossem mencionadas nas diretrizes europeias para a prevenção de doenças cardiovasculares na prática clínica.

“É preciso ter dados sólidos para confirmar e explicar as diferenças que observamos, para que essas diferenças sejam reconhecidas nas diretrizes”, explica Lerchenmüller.

Embora muitos tenham reclamado que o ritmo das mudanças na medicina de gênero é lento, Lerchenmüller discorda. Ela acredita que é preciso tempo para produzir evidências confiáveis e de alta qualidade a fim de criar diretrizes que possam ser traduzidas em tratamentos e aplicadas em todo o mundo. “É necessariamente um processo muito lento e muito cuidadoso”, diz ela.

Uma das histórias mais impressionantes de disparidades de gênero causadas por dados insuficientes e por uma prática científica imprecisa é a controvérsia em torno do Zolpidem, vendido sob o nome comercial de Ambien nos EUA. 

O medicamento, normalmente prescrito como uma solução de curto prazo para pessoas que sofrem de insônia, também é conhecido por causar acidentes de carro fatais que viraram manchete. Em 2013, numa decisão histórica, a Administração de Alimentos e Medicamentos dos EUA (FDA) recomendouLink externo que as mulheres tomassem metade da dose recomendada para homens. A FDA citou novos dados publicados pelo Centro de Avaliação e Pesquisa de MedicamentosLink externo, que indicavam que as mulheres apresentavam maior risco de efeitos colaterais cognitivos no dia seguinte, o que afetava sua capacidade de dirigir. Os dados mostraram que isso ocorria porque as mulheres metabolizavam o medicamento mais lentamente do que os homens. Esse foi o primeiro e, até o momento, o único medicamento específico para cada sexo autorizado pela FDA nos EUA.

No entanto, desde então, vários pesquisadoresLink externo questionaram o raciocínio por trás da recomendação da FDA, dizendo que faltavam “evidências concretas”. Eles afirmam que as recomendações da FDA podem levar à sub-medicação de muitas mulheres que sofrem de distúrbios do sono.

Uma das principais tarefas de Lerchenmüller e sua equipe será conectar bancos de dados e encontrar mais colaborações em nível nacional e internacional para coletar dados sobre diferenças de gênero.

A Suíça está se atualizando

Há três meses em seu trabalho, Lerchenmüller diz que está positivamente surpresa com a qualidade da pesquisa na Suíça. “O trabalho de pesquisa e assistência médica em medicina de gênero que está sendo feito aqui é realmente excelente – muito além das minhas expectativas”, diz ela. 

Nos últimos dois anos, a Suíça vem se atualizando no desenvolvimento da área em seus currículos médicos.

Em 2020, as universidades de Berna e Zurique lançaram o primeiro treinamento avançado do país em medicina específica para sexo e gêneroLink externo. Seu objetivo é apresentar ferramentas, conceitos e ideias sobre como a assistência e a pesquisa médica em diferentes disciplinas médicas podem ser equitativas em termos de gênero.

No final de 2023, a Fundação Nacional de Ciência da Suíça (SNSF) publicou uma chamada para o Programa Nacional de Pesquisa da Suíça para pesquisar “Saúde e Medicina de Gênero”Link externo, com um orçamento de CHF 11 milhões, de um orçamento anual total de CHF 47 milhões. Aproximadamente 140 pré-projetos foram enviados por 389 pesquisadores, quase metade de todas as inscrições enviadas para todos os programas nacionais de pesquisa. A próxima fase de avaliação ocorrerá ainda neste ano.

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Thomas Kern / Swissinfo.ch

Como outras mulheres médicas e pesquisadoras, Lerchenmüller diz que sua vida pessoal é examinada de forma diferente da de seus colegas homens. Ela não deseja falar sobre como está conciliando a criação de três filhos com um trabalho desafiador. Seu desejo é manter o foco da entrevista em seu trabalho e em sua visão, e não no fato de ser a primeira mulher – e a primeira pessoa – na Suíça a ocupar esse cargo.

Ela acredita que o verdadeiro progresso para promover as mulheres na área da saúde e da medicina depende de tornar toda a área mais diversificada e equitativa. 

Edição:Virginie Mangin/fh

Adaptação: Clarice Dominguez

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