Gelo de cometas conta a história da vida
O programa espacial europeu se prepara para tentar colocar um robô na superfície de um cometa. Longe de antigas superstições, que os viam como a espada de Deus no céu, os cometas nos contam uma história muito mais intrigante: a da origem dos mundos e da vida. E uma parte dessa história vai ser decifrada em Berna.
“Os cometas são como os primeiros elementos que se agruparam para formar os planetas. Pelo menos é o que temos uma boa razão para acreditar”, diz Kathrin Altwegg, especialista em química cósmica da Universidade de Berna e principal pesquisadora da ESA (Agência Espacial Europeia) na experiência Rosina, o instrumento científico mais pesado embarcado na sonda espacial Rosetta. O aparelho é composto de dois espectrômetros de massa e um sensor de pressão para analisar a matéria e os gases que evaporam dos cometas no espaço.
“Grandes bolas de neve suja”, como diz a expressão, os cometas contêm até 50% de água, sendo o restante composto de poeira. Enquanto o cometa cruza os confins gelados do Sistema Solar, a água permanece no estado sólido. Mas quando se aproxima do Sol, o calor faz a água evaporar e dispersar a poeira, criando sua impressionante cauda, que pode chegar a vários milhões de quilômetros, o que assustava tanto os antigos.
Viajantes sem rumo
Os cometas são os elementos mais primitivos do nosso sistema solar. Os primeiros agregados de gás e poeira que se constituíram há quase cinco bilhões de anos na nuvem original deviam se parecer muito com eles. Essas rochas com algumas centenas de metros a vários quilômetros de diâmetro, muito longe uma da outra para se atraírem e formar planetas, foram gradualmente jogadas para a periferia pelo peso dos planetas gigantes, Júpiter, Saturno, Urano e Netuno. Desde então, elas atravessam a vastidão gelada dos confins do sistema solar e, periodicamente, as forças de maré decorrentes da rotação da galáxia empurram uma ou outra para o centro.
Não é de admirar que estes “blocos de construção” dos planetas contêm muita água, pois ela é abundante no universo. A Terra primitiva necessariamente também tinha. Mas durante sua fase de formação, o planeta era uma bola de lava incandescente, tão quente que toda a água original desapareceu no espaço. No entanto, ainda temos hoje. Então, como é que ela voltou? Justamente, graças aos cometas. Esta é, pelo menos, uma das possíveis explicações.
“A teoria é que os planetas foram submetidos a um bombardeio maciço de pequenos corpos celestes, asteroides e cometas após 800 milhões de anos da formação deles”, explica Kathrin Altwegg. “Se olharmos para a idade das crateras da Lua, vemos que todas elas apareceram mais ou menos há 3,8 bilhões de anos”, conta a pesquisadora. Na Terra, quase todos impactos desse bombardeio já desapareceram devido à erosão. Mas a água dos cometas pode ser a mesma que encheu os oceanos.
E os cometas não teriam trazido só água. Sabe-se que eles também contêm moléculas pré-orgânicas. “Não é ainda algo vivo, mas essas moléculas são como os aminoácidos, cuja presença explica que a vida tenha surgido tão rapidamente após o bombardeio de cometas, 100 milhões anos, o que é nada em comparação com a escala do universo. Porque é muito mais fácil construir uma célula viva a partir desses compostos pré-orgânicos do que a partir de átomos isolados”, diz Kathrin Altwegg.
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A precisão em fotos incríveis
10 anos e 6 bilhões de quilômetros
Será que esses blocos de construção da vida vieram do espaço? Este é um dos mistérios que a sonda Rosetta vai tentar decifrar. A missão leva o nome da Pedra de Roseta, que permitiu a Champollion decifrar os hieróglifos do antigo Egito.
Lançada em 2 de março de 2004, a sonda alcançou no início de agosto de 2014 o cometa 67P/Churyumov-Gerasimenko, mais convenientemente chamado de “Chury”, que atualmente atravessa a cerca de 400 milhões de km da Terra, entre Marte e Júpiter. Para isso, a sonda percorreu mais de 6 bilhões de quilômetros em dez anos. Como o voo em linha reta não existe no espaço (a menos que se tenha os meios de propulsão da ficção científica), Rosetta teve que fazer quatro órbitas em torno do sol e passar perto da Terra três vezes e uma vez Marte, para aproveitar de um “efeito estilingue” e acelerar sua corrida. Quando a sonda alcançou a trajetória de Chury, ela precisou ativar oito vezes seus motores para frear e não errar a órbita em torno do cometa.
“No início de agosto, quando vimos o sinal do cometa, foi fascinante, Ela precisou frear os 24.000 km/h e encontrar um objeto de 4 km na vastidão do sistema solar. Um grande sucesso. Mas com isso foram queimados 600 kg de hidrazina, quase todo o nosso combustível”, conta Kathrin Altwegg.
O cometa que fede
Desde então, as fotos enviadas por Rosetta continuam pasmando o mundo. Contra todas as expectativas, Chury não tem a forma de batata que dava a entender pela luz refletida nos telescópios. Em vez disso, parece mais com patinho de borracha. E é fácil prever que seu “pescoço” acabará derretendo com as passagens perto do forno solar, dividindo o cometa em dois.
Quanto a sua composição, os instrumentos da sonda, que gira em torno de apenas algumas dezenas de quilômetros do cometa, já entregaram uma série de informações. “Vimos muitas moléculas diferentes, algumas que nunca foram detectadas em um cometa e cuja mistura deve fazer Chury cheirar a ovos podres, por causa do sulfeto de hidrogênio que se mistura com alguns odores nada simpáticos, como a amônia”, explica Kathrin Altwegg. “Mas falando sério, existem também moléculas pré-orgânicas em grandes quantidades. E nem todas foram ainda identificadas”.
“Rosina nos envia dados todo dia. Em 1986, quando a sonda Giotto passou perto do cometa de Halley, por uma hora e meia na velocidade de 70 vezes superior à de uma bala de espingarda, precisamos de 10 anos para analisar os dados”, acrescenta a cientista.
Como uma pena
Os dados, os pesquisadores conseguirão muito mais se a sonda Rosetta vencer seu páreo mais difícil: colocar um pequeno robô na superfície do cometa. Dia 12 de novembro, às 08:35 GMT, o “lander” Philae começará sua aterrissagem de 7 horas até a superfície do cometa. A operação, que nunca foi tentada até agora, é muito delicadoa.
Dada a gravidade ínfima na superfície do cometa Chury, Philae não vai pesar mais do que um grama. Ele pode muito bem pular para o espaço, ou o cometa pode começar a soltar gás e soprá-lo como uma pena. Para lidar com essas possibilidades, o “lander” está equipado com arpões para se ancorar à superfície. Mas para isso ele deve encontrar algo sólido que permita a fixação. “Um cometa não é realmente gelo sólido, é um monte de nada, 70% de vácuo, é como a neve bem fofa e você sabe o que acontece com a neve assim…” adverte Kathrin Altwegg.
Mas em caso de sucesso, dá para imaginar a alegria dos responsáveis de missão. E a curiosidade dos cientistas diante das amostras colhidas diretamente da superfície do cometa.
A serviço do conhecimento
E tudo isso para quê? Para saber como se formou o sistema solar, a Terra e a vida. Kathrin Altwegg admite: “Isso não serve para nada. A fome no mundo continuará existindo, assim como os problemas com o meio ambiente. É só uma questão fundamental para a humanidade. Queremos saber se foram mesmo os cometas que trouxeram água para a Terra, bem como moléculas orgânicas, o que explicaria porquê tudo se desenvolveu tão rápido. E é claro, saber se o que temos aqui no sistema solar poderia acontecer em outro lugar. Daí a pergunta: ‘Será que estamos sozinhos no universo?’”
“Esta é pelo menos a minha motivação, mas muitas vezes eu me pergunto se é certo gastar tanto dinheiro com isso. Será que não devemos gastar em outras coisas, mais perto de nossas necessidades diárias? Mas, finalmente, a música também é desnecessária. E, no entanto, o nosso mundo seria muito mais pobre sem música”, conclui a cientista.
Espectrômetros e câmeras “Swiss made”
ROSINA (Rosetta Orbiter Spectrometer for Ion and Neutral Analysis) ocupa com seus35 quilos 20% da carga útil da sonda Rosetta. Composto de dois espectrômetros de massa (capazes de detectar e identificar moléculas com base na sua massa) e um sensor de pressão. Foi desenvolvido e construído por um consórcio internacional de institutos e empresas, liderado pelo Instituto de Física da Universidade de Berna.
7 câmeras montadas no lander Philae foram desenvolvidas e construídas pela empresa Space-X, de Neuchâtel, o Instituto francês de Astrofísica Espacial e o CNES (Centro Nacional de Estudos Espaciais).
Adaptação: Fernando Hirschy
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