Livro conta tragédia do século 19 em vilarejo suíço
Uma avalanche de pedras destruiu parte do vilarejo de Elm, no estado de Glarus, na Suíça Central, em 11 de setembro de 1881.
O escritor e cômico suíço, Franz Hohler, conta a história da tragédia através de uma menina de 7 anos que sobreviveu por teimosia e viveu em Elm até o fim da vida. “Dilúvio de Pedra”, acaba de ser lançado, em italiano, em Milão.
A lei da gravidade não perdoa falhas humanas, além do mais se elas contemplam consequências ambientais desastrosas, ontem como hoje. Em 11 de setembro de 1881, uma fração do vilarejo de Elm, no cantão de Glarus (Suíça central), foi soterrado por uma avalanche formada por um gigantesco pedaço de montanha aberta nas entranhas pela extração de ardósia.
O escritor e cômico suíço, Franz Hohler, resgata a memória daquele evento através da intuição e da sabedoria de uma menina de 7 anos de idade, Katharina Dish, moradora do lugar até a sua morte, em 1959. Ele condensa no livro Dilúvio de Pedras a história dos dias precedentes e posteriores ao desmoronamento, revivendo os passos de Katharina que, ao final, salvou-se por dar um “não” categórico aos adultos, ao recusar-se a abandonar a segurança da casa da avó e voltar para a casa dos pais, exposta aos riscos da montanha.
O lançamento da obra literária, em italiano, apresentado no Consulado de Milão, chega em boa hora com a Itália ainda fazendo as contas com as mortes e os desabrigados de deslizamentos de terras devido a irracional ocupação do solo no sul do país.
“Tudo nasceu do meu encontro com um geólogo suíço que estudou esta catástrofe que custou a vida de mais de cem pessoas. Ele escreveu que apenas uma menina tinha previsto o que iria acontecer. Esta frase me deixou muito curioso e fui atrás desta história”, disse Franz Hohler à swissinfo. E não foi fácil convencer os moradores e os descendentes de Katharina, dois filhos e uma filha, além de netos e bisnetos.
A fama de humorista de Franz Hohler dificultou o acesso às informações pois ninguém gostaria de ver uma tragédia tratada com ironia. Ele viajou a Elm várias vezes e durante as pesquisas de campo conseguiu quebrar a resistência de quem trouxe na história de vida a herança daquele evento dramático.
A realidade e a fantasia da personagem cruzam-se com a viagem no tempo realizada por Franz Hohler. Ele fez um mergulho na vida da Suíça do interior, “profunda”, do vale de Serfn, do século 19 e emerge com um livro de 127 páginas. Elas formam um mosico cultural, social e ecônomico daquele período. “A casa da avó de Katharina ainda existe, de madeira e pedra e com a velha estufa, quase como esta sala aonde estamos agora” ; diz Franz Hohler dentro de um ambiente reservado ao lado do auditório do Consulado. Ganham de novo a luz, depois de soterrados por quase 130 anos, o antigo restaurante popular dos pais de Katharina, os personagens, os hábitos e os costumes de quem vivia do pastoreio e da extração da ardósia, na pedreira vizinha de Elm, principal fornecedora para o mercado alemão.
Natureza agredida
A mais importante atividade ecônomica do vilarejo também seria a responsável pelo seu quase completo desaparecimento do mapa. Sem saber, os mineradores escavavam a própria sepultura na busca pela sobrevivência.
Os primeiros sinais do desmoramento anunciado ocorreriam em 1876. A partir deste ano, os trabalhadores da pedreira notaram as primeiras rachaduras no alto da colina. A fissura foi aumentando com o passar dos anos. “A história me intrigava pelos diferentes pontos de vista. As pessoas não queriam ver o que estava para acontecer. Foi preciso que uma menina , com os olhos de uma criança, enxergasse o óbvio, uma sabedoria infantil e inerente ao desenvolvimento humano que não é respeitada pelos mais velhos. A criança tinha medo”, diz Franz Hohler.
A queda de rochas chegou a tal ponto que a extração foi interrompida no começo do mês de setembro de 1881. Mas ninguém poderia advinhar, com exatidão, o momento no qual a montanha iria se “vingar” das agressões sofridas ao longo de décadas. “Era tudo muito diletante. Furavam a montanha sem nenhum cuidado, faziam túneis aqui e ali, empilhavam montes de pedras lá e acolá. Até que chegou um geólogo alemão que, espantado com o que via, saiu retirando as colunas de ardósia em algumas seções. Aquela de Elm foi uma catástrofe provocada pelo homem”, alerta ele.
A chuva incessante diminui os ângulos de apoio entre as rochas, grandes ou pequenas, no alto da montanha, no caso, da pedreira de ardósia, em Elm, na Suiça alemã. A água penetra nas fissuras e mina as bases sólidas. As gotas inundam tudo como se um manto líquido ocupasse cada espaço disponível.
Os temporais diários encharcam o terreno na superfície que fica mais pesado por não conseguir absorver o grande volume de água em tão pouco tempo. O lençol freático no subsolo torna-se mais dinâmico. O frágil equilíbrio se rompe com a erosão acelerada e causada pelas forças da natureza, aliada a contribuição da imperícia das mãos do homem.
Realismo mágico
No começo, pequenos e quase imperceptíveis deslizamentos de partículas microscópicas acontecem e detonam um efeito dominó. A instabilidade da montanha, devido a falta de técnica na extração da pedra, alcança o nível mais alto. “Encontramos nos grandes romances de língua alemã uma natureza “domesticada” como fachada, no livro de Hohler vemos uma natureza em alarme, acho que era um elo que faltava. Este livro é uma alegoria dos tempos modernos e que coloca em questão a relação do homem com o meio ambiente”, disse o crítico literário Ezio Mauro.
A montanha cede, não antes de emitir uma série de sinais percebidos, basicamente, pela menina e, em parte, pelos trabalhadores, mas ignorado pela população em geral. O relincho de cavalos, o surgimento misterioso de galinhas, os cães ladram, os gatos miam, os pássaros cantam, além da queda intermintente de rochas… essas são “notas” da natureza em vias de desmoronar e que se transformam em gritos de alerta decifrados apenas pela menina Katharina, observados e/ou questionados, não tão a fundo, pelos moradores do povoado, que recebem os sinais mas não os interpretam de maneira correta.
Passado e futuro
Um enorme estrondo no alto da montanha ecoou pelo espaço vazio. “No mesmo instante explodiu sobre a casa um barulho de canhão que fez tremer todas as vidraças. Katharina ouviu a tia no andar de cima gritar…Sobre o Plattenberg subia uma nuvem de fumo densa, feia, que não vinha de fogo ou de um canhão…”o que aconteceu?” perguntou a tia, “um pedaço da montanha despencou”, respondeu Katharina, “não é possível!”, retrucou a tia, incrédula. A nuvem de poeira encobria a tragédia que marchava rumo a Elm a uma velocidade final estimada em 180km/h.
Em pouco tempo, os dois quilômetros de vale que separavam a pedreira do vilarejo sumiram sob a avalanche. Uma língua de pedras, lama, árvores foi engolindo tudo que aparecia pela frente. Casas, pontes, hortos, estábulos foram sendo engolidos pela natureza num piscar de olhos. Assim com as vidas humanas que não tiveram tempo para fugir do desmoranamento. Uma espécie de tsunami varreu a pequena comunidade de Elm.
Nos meses seguintes, os raios de sol que atravessam a torre da igreja apenas duas vezes por ano iluminariam um cenário de destruição. O mesmo ritual cósmico ocorre ainda hoje e “acende” um presente muito distante do passado. Nos meses de março e de outubro, a luz do sol, antes do amanhecer corta o maciço do Martinsloch e banha os campos de Elm, uma cidadezinha do interior suíço com grande apelo turístico onde está o museu da Mineração.
Outras “Katharinas”
O exemplo de Katharina- que negou-se a deixar a casa da avó para voltar àquela dos pais no fundo do vale- seria revivido pela menina inglesa de 10 anos, Tilly Smith, que salvou a família do tsunami que devastou a costa da Tailândia, em dezembro de 2004. A professora de geografia tinha ensinado que se a água de uma praia se retirasse rapidamente, de um momento a outro, significaria a formação de uma onda gigantesca. A menina alertou os pais e outros banhistas que conseguiram escapar para locais seguros.
Ao contrário de Katharina, que ficou num mesmo lugar para fugir do destino trágico, na areia de uma praia tailandesa, todos correram da onda que se formava fora do alcance da vista, confiando no alerta da menina. O mesmo ocorreu com a pequena heroína da ilha chilena Robinson Crusoe, logo depois do terremoto de 27 de fevereiro de 2010. Martina Maturana, filha de um policial, soou o sino do vilarejo e alertou os 600 moradores. A onda chegou minutos depois, destruiu 70 casas e matou 16 pessoas.
A leitura destes avisos prévios da natureza salvam dezenas de vidas, mas esta é uma outra história, apenas com o mesmo pano de fundo: a agressão do homem ao meio ambiente, a cegueira adulta em contraste com o olhar infantil, puro e cristalino, que Franz Hohler soube tão bem descrever no seu “Dilúvio de Pedras”.
Talvez, caberá a um Franz Hohler inglês e um Franz Hohler espanhol reviver aqueles terríveis momentos dos tsunamis através dos olhos destas pequenas heroínas com aguçado instinto de sobrevivência e de respeito e, ainda, em simbiose com a natureza.
Guilherme Aquino, Milão, swissinfo.ch
Inundações, terremotos, desmoranamentos, incêndios e avalanches remodelaram o território alpino suíço nos últimos mil anos, muito pouco tempo em termos geológicos.
O terremoto de 1356, na Basiléia, matou entre mil e e duas mil pessoas.
Em 1515, em Buzza di Biasca, no lago Maggiore, as águas de um lago efêmero formado no Monte Cenone destroem uma represa, 600 habitantes morreram na inundação.
Em 1618, o desmoranamento em Piuro, Valtellina Grigionese, provocou 900 vítimas
Em 1806, em Goldau, um desmoramento e a cheia do lago Laurz mataram cerca de 500 pessoas. Pela primeira vez, todos os Cantões prestaram ajuda humanitária e logística. Este tipo de solidariedade reforçou a união do país.
Em 1881, o desmoronamento da mineira de Elm carregou 10 milhões de metros cúbicos de terra e rochas que soterraram 115 pessoas e varreram do mapa 84 casas e 4 pontes.
Até o século 18, a percepção das catástrofes naturais era a de uma “punição divina” de cunho religioso contra pecadores das comunidades atingidas. Para a embrionária ciência natural da época, elas eram a expressão de uma natureza indomável mas sem as devidas explicações científicas.
Apenas depois de 1970 é que muitos eventos naturais foram debitados na conta da processo de modernização da humanidade.
A alba no Martinsloch, em Elm, é um fenômeno natural no qual, nos dias 12 e 13 de março e nos dias 1 e 2 de outubro, os raios de sol atravessam uma falha de 9 metros de largura por 16 de altura na barreira rochosa dos Tschingelhorner e iluminam os sinos da igreja
Em Elm existem cerca de 60 km de trilhas que cortam a maior área suíça de concentração de fauna.
Pela sua riqueza geológica a região foi incluída no Patrimônio Natural da Humanidade pela Unesco.
O livro de Franz Hohler, Dilúvio de Pedras, foi escrito em 1997.
A edição em Italiano acaba de ser lançada.
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