O Brasil é um país de água
O mundo inteiro sabe que o Brasil é o país do futebol e do Carnaval, mas inclusive poucos brasileiros sabem que o Brasil é um país de água.
A afirmação é do piloto suíço-brasileiro Gérard Moss, que já voou mais de 2.500 horas pelo Brasil, associado a projetos científicos com o nome Brasil das Águas. Ele veio falar desses projetos na Escola Politécnica Federal de Lausanne, oeste da Suíça.
Gérard Moss chegou ao Brasil em 1982 para fazer negócios, gostou das praias e das neninas do Rio e resolveu dar um jeito de ficar. Montou sua própria empresa de transporte marítimo de soja, comprou um avião da Embraer, deu a volta ao mundo a partir de 1989 e descobriu que já era brasileiro. Depois deu uma segunda volta ao muundo em planador a motor.
Em 2001, passou então a associar o prazer de voar com projetos científicos. O primeiro projeto foi Asas do Vento, uma volta ao mundo em motoplanador, com medição de ozônio a baixa altitude. Com ajuda do piloto, o Brasil tem hoje um mapa nacional da qualidade da água doce.
A fase posterior foi acompanhar os “rios voadores”, que “nascem” na Amazônia e provocam chuvas até Rio Grande do Sul e norte da Argentina. Todas as viagens são fotografadas em detalhe pela esposa Margi Moss. Foi desses projetos que Gérard Moss veio falar na Escola Politécnica Federal de Lausanne (EPFL), onde concedeu entrevista à swissinfo.
swissinfo: Você já era piloto quando chegou ao Brasil?
Gérard Moss: Eu tinha a licença de piloto, mas não tinha avião. Quando cheguei ao Brasil, ví que era o lugar ideal para ter um avião, com as distâncias e meteorologia boa em grande parte do ano. Aí comprei um Sertanejo da Embraer, que ainda era uma empresa pequena. Tenho esse avião até hoje. Como trabalhava com afretamento marítimo de soja, voava pela costa para visitar os navios nos portos. Tive sorte, era o começo da soja e o negócio deu certo.
E a volta ao mundo?
Resolvi fazer isso em 1989 e levou três anos, com o Sertanejo. Atravessei o Atlântico, ficamos um ano e meio na África, depois a Ásia, Austrália. Ao todo, foram quase três anos. Em qualquer lugar em que chegava me perguntavam de onde eu era e eu respondia que vinha do Brasil e com um avião brasileiro. Ninguém sabia ainda que o Brasil fabricava aviões e, para mim, foi um privilégio enorme mostrar esse avião. Aí vi que era realmente brasileiro e senti que ia ficar no Brasil para sempre. Começou então uma fase mais alternativa da minha vida.
Quando você começou a voar com objetivos científicos?
Fiz alguns projetos nos anos 90, basicamente livros e documentários, mas comecei mesmo em 2001. Era um privilégio tão grande poder voar a baixa altitude e ver o impacto do ser humano, com os desertos avançando, os rios secando etc. Aí achei que tinha que compatilhar esse olhar de cima e que esses voos tinham que render alguma coisa para a sociedade. Montei um projeto chamado Asas do Vento – que também tinha a intenção de mostrar a capacidade aeronáutica do Brasil – e dei uma segunda volta ao mundo de motoplanador (recorde mundial na época) em incorporei uma pesquisa de ozônio a baixa altitude.
Mas e o Brasil?
Depois de ter voado o mundo todo, achei que tinha que voar mais no Brasil. Percebi então que poucos brasileiros sabiam que o Brasil é um país de água. Não é só do futebol e do carnaval, é das águas. Montei então o projeto Brasil das Águas (com o mote “revelando o azul do verde e amarelo”), e estamos há sete anos estudando vários aspectos das águas do Brasil, das águas de superfície, até as águas atmosféricas, ou seja, os rios voadores.
Você tinha uma formação científica para montar esses projetos?
Não, minha formação é de engenheiro mecânico, o que é muito útil para montar essas tecnologias e equipamentos no avião. Tem um lado também que ajuda a esquematizar a questão financeira para financiamento dos projetos. A parte científica nós vamos aprendendendo o tempo todo. Temos à nossa volta pessoas que têm grandes conhecimentos em várias áreas nas universidades e nos institutos de pesquisa. Um exemplo é o professor Eneas Salati, especialista em Hidrologia Isotópica e Climatologia, que dirige a parte científica do projeto Rios Voadores.
Vamos voltar ao Brasil das Águas. Como foi o projeto e com que resultados?
Foi um projeto inédito no mundo, em 2003 e 2004. Usamos o avião anfíbio que denominamos Talha-mar, equipado com uma sonda que o transformou num avião laboratório. Coletamos amostras de água doce em 1.160 pontos em todo o Brasil. A água coletada em voos rasantes passava pela sonda, que analisava vários parâmetros e gravava os dados em um computador a bordo. As amostras também eram enviadas aos laboratórios que participaram do projeto. O resultado foi um panorama das águas do país naquele momento. Todos os dados estão na Agência Nacional de Águas e são acessíveis a todos.
E o projeto Sete Rios?
Foi em 2006-2007 e uma sequência natural do Brasil das Águas. Percorremos os rios de barco para tentar envolver as populações ribeirinhas na proteção de seus rios. Mostramos filmes do projeto anterior e procuramos também detectar os principais problemas. Com a exceção do Rio Araguaia, escolha da equipe Brasil das Águas, os outros seis rios foram selecionados em abril de 2006, em um workshop realizado em Brasília. Os outros rios foram: Grande (BA), Ribeira (PR/SP), Miranda (MS), Ibicuí (RS), Verde (MT) e Guaporé (MT/RO).
Houve muita surpresa no Brasil ao falar de Rios Voadores?
O conceito de transporte desse ar úmido do Norte até o Sul era conhecido na comunidade científica. O professor Eneas Salati definiu isso já nos anos 70. O próprio termo “rios voadores” foi utilizado pelo professor José Marengo, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Eu percebi logo que, para mim, rio e voador têm tudo a ver. Dois anos depois, eu percebo que o termo está sendo mais usado e acho que dentro de três ou quatro anos vai virar um termo comum e isso ajuda muito na preservação.
Mas não houve uma pesquisa antes?
Houve, em São Paulo. Mil pessoas responderam um questionário para saber de onde vinham as chuvas: A, quadrante norte; B,quadrante sul; C, não sei. Mais de 80% das pessoas responderam que as chuvas vinham do sul. Claro, a frente fria vem do sul, mas a frente fria é seca e a umidade vem de outro lugar. É claro que nem toda a umidade vem da Amazônia, mas é uma das fontes com potencial de chuva, e é a única que está ameaçada hoje em dia (ver animação e vídeo na coluna à direita).
O que são realmente esses rios voadores?
São correntes de ar que carregam umidade de Norte a Sul do Brasil e são responsáveis por grande parte das chuvas no Centro-Oeste, Sudeste e no Sul. Calcula-se em 20 bilhões de toneladas por dia a água evaporada da floresta amazônica. Parte dessa humidade é transportada pelos ventos e “viaja” a baixa altitude. A cordilheira dos Andes serve de barreira e essa humidade vem “descendo”, provocando chuvas no centro-oeste, sudesde e sul. O volume dessa humidade transportada pode ser equivalente à vazão do Rio Amazonas. Na primeira fase, fizemos 12 viagens para acompanhar e documentar essas massas de ar. São esses dados que estão em fase de análise pelos cientistas brasileiros.
A primeira fase do projeto terminou, quais serão as próximas?
Em quase dois anos, coletamos muitos dados e os cientistas têm de interpretar esses dados. Dependendo dos resultados, talvez seja necessário redimensionar os voos para tal época e tal região. Esperamos recomeçar os voos no ano que vem.
Quanto tempo vocês já voaram nesses projetos ligados à água no Brasil.?
Somando tudo dá umas duas mil horas de voo. Só no Brasil das Águas, eu e Margi, em distância, voamos com o hidroavião Talha-mar o equivalente a duas vezes e meia a volta ao mundo.
Hoje você vive desses projetos?
Faz pouco tempo que sim. Nós investimos muito durante muitos anos e viver de patrocínio é um pouco complicado, mas somos profissionais e tratamos todo mundo com muita seriedade. Os resultados também têm nos ajudado a comprovar que vale a pena investir nesses projetos.
Depois de 27 anos no Brasil, você às vezes não sente falta da vida mais organizada na Suíça?
Você sabe que não! Eu adoro voltar para cá e é verdade que tudo é mais fácil aqui. Em termos de ciência, por exemplo, eu visitei a Escola Politécnica Federal de Lausanne (EPFL) nos últimos dois dias e me reuní com cientistas das mesmas áreas em que trabalhamos no Brasil. Os recursos que existem aqui são incomparáveis. Mas o meu coração está no Brasil e eu vou fazer tudo para levar gente e equipamentos daqui para lá porque a comunidade científica brasileira merece mais apoio do que tem hoje.
A partir desses contatos, será possível integrar a EPFL em seus projetos no Brasil?
Eu acho que sim e esse foi um dos objetivos dessa missão aqui. Duas possbilidades concretas já foram discutidas e vamos fazer tudo para concretizar.
Claudinê Gonçalves, swissinfo.ch
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