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Resquícios da Idade Média na Suíça moderna

Sinal dos tempos: o antigo hospital da classe burguesa de Berna funciona como um asilo de idosos. swissinfo.ch

No interior dos municípios suíços, sobrevive uma instituição histórica do país: as comunidades burguesas, uma relíquia da Idade Média.

Em alguns cantões, elas chegam a dar o direito de cidadão de um município, documento indispensável para a naturalização. Em outros elas administram patrimônios milionários, cuja renda é investida em programas sociais ou culturais.

“As comunidades burguesas são uma característica tipicamente suíça, também muito difícil de explicar aos estrangeiros”, admite Jean Bourgknecht, vice-prefeito da cidade de Friburgo e membro do comitê da Federação Suíça das Comunidades Burguesas e Corporações (FSBC, na sigla em alemão).

Em Friburgo, precisamente, a comunidade burguesa se transformou há pouco em tema para a imprensa na questão do projeto de construção de uma sala de espetáculos, cuja aprovação pelo eleitor em plebiscito passou apertado. O escrutínio mostrou aos burgueses que eles precisam aumentar sua contribuição aos custos da construção, em relação ao montante já prometido.

Durante a campanha precedente à votação, muitos eleitores chegaram a colocar em questão a sobrevivência – única na Europa – dessa instituição surgida na Idade Média.

Em todo o continente, as revoluções históricas acabaram com o poder de grande parte da nobreza e de outras castas privilegiadas. O triunfo da cidadania nacional e republicana sobre as comunidades burguesas só não ocorreu na Suíça.

Erro de Napoleão

A razão do fenômeno está na organização federalista do país. No final do século XVIII, a Suíça é uma aliança fraca de 13 pequenos estados soberanos (os cantões), em torno do qual gravitam territórios anexos ou aliados. Era uma época sem liberdade ou igualdade. Nobres e outros notáveis reinavam praticamente sem dividir o poder e as estruturas sociais ainda eram medievais.

Em 1789, as tropas da jovem república francesa proclamam uma efêmera República Helvética. Ela coloca o país em cinco anos de caos, mas consegue “inventar” na sua passagem a noção de cidadania suíça.

Em 1803, Napoleão Bonaparte impõe aos suíços, realmente um povo turbulento, um Ato de Mediação, que marca o retorno ao antigo regime. Nessa ocasião, seis antigos países se tornam cantões da Suíça.

Também foi Napoleão que separou as comunidades burguesas, grupos que reúnem nativos de uma cidade, das comunidades políticas, que agrupam todos os habitantes de uma cidade.

Os suíços são, porém, ciosos das suas tradições. Em 1815, a Confederação Helvética recebe seus três últimos cantões e reforça suas ligações através de um pacto. Este não menciona mais a cidadania suíça. Ela será somente reintroduzida através da Constituição de 1848.

Federalistas até a raiz dos cabelos

Fora Genebra, Neuchâtel, Nidwald, Schwytz e Vaud, todos os cantões decidiram conservar suas burguesias. Elas sobreviveram até os dias de hoje.

O federalismo obriga: a organização e as competências das comunidades burguesas variam de um cantão para o outro. Dessa forma, nos Grisões, Basiléia-campo, Argóvia, Solothurn e no Valais, são elas que dão aos candidatos ao passaporte suíço o imprescindível direito de cidadania do município.

Esse poder termina causando situações sui generis. O pequeno município de Mex, no cantão do Valais, recebia até bem pouco tempo uma grande quantidade de novos membros da comunidade burguesa local vindos da Itália, Macedônia ou até mesmo do Irã, atraídos por uma taxa de agregação particularmente baixa.

Desde janeiro de 2006, a lei cantonal suprimiu essas práticas. Privados do direito de recolher taxas, as comunidades burguesas do Valais também devem perder suas competências em termos de outorgar o direito de cidadão dos municípios.

Essa evolução preocupa Andreas Hubacher, secretário de FSBC. Para ele, “se nós retiramos essas incumbências das comunidades burguesas, será difícil para essa instituição sobreviver”.

Burguesia de serviço

E portanto…suprimir as comunidades burguesas é competência dos cantões. Apesar de essa questão ser debatida aqui ou lá, os Grisões, St. Gallen e Basiléia-cidade modificaram recentemente suas constituições sem tocar nessa histórica instituição. Pois além do que sobrou do seu poder político, as comunidades burguesas são hoje em dia instituições culturais e sociais. “Alguns a consideram clubes de privilegiados, mas eles se transformaram em burgueses de serviço”, resume Jean Bourgknecht.

Dessa forma, na cidade de Friburgo, a comunidade burguesa funciona como um serviço da comunidade política. Ela possui um asilo de idosos, uma casa para jovens em dificuldades, apartamentos que são alugados a preços moderados e também jardins para a família. Ela também é orgulhosa de administrar a mais antiga instituição de bolsas de estudos da Suíça.

Em Berna, como em Zug, são as comunidades burguesas que dão ajuda social aos seus membros. Os burgueses da capital dão 20 milhões de francos para a comunidade política.

Esse dinheiro, os membros burgueses tiram das suas propriedades, florestas, pastagens e outras propriedades que eles conseguiram acumular através dos séculos. Às vezes, o cantão ou a comuna política lhes isentam de uma parte dos impostos devidos.

Manter a tradição

“Se essa missão de serviço for bem compreendida pelas pessoas, eu acredito que as comunidades burguesas terão um bom futuro”, estima Jean Bourgknecht.

Em Friburgo, portanto, desde que os novos naturalizados não se transformam automaticamente em membros da burguesia, um número muito reduzido deles pede para entrar. Mas a condição de membro das comunidades burguesas é hereditário. E o vice-prefeito nota que os jovens também gostam de freqüentar os encontros.

Então, qual o futuro para essa instituição da Idade Média? A questão faz rir Andreas Hubacher. Para ele, os burgueses existirão “tanto que eles terão um papel público a cumprir”.

swissinfo, Marc-André Miserez

– A Suíça é o único país da Europa a ter conservado, desde a Idade Média, suas comunidades burguesas. Elas agrupam pessoas que são nativas de uma cidade, paralelamente à comuna política, que agrupa todos os habitantes.

– Essas comunidades ainda existem em todos os cantões, com exceção de Genebra, Neuchâtel, Nidwald, Schwytz e Vaud.

– Para se tornar cidadão suíço, o candidato à naturalização deve inicialmente obter o direito de cidadão de um município, depois de um cantão e, finalmente, da Confederação Helvética.

– No cantão dos Grisões, em Basel-campo, Argóvia, Solothurn e no Valais, são as comunidades burguesas que dão o direito de cidadão do município.

– Ao mesmo tempo as comunidades também geram um importante patrimônio imobiliário, cujos rendimentos são investidos normalmente em projetos sociais ou culturais.

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