Morte digna para o peixe dourado
Cursos obrigatórios para donos de cães, parceria obrigatória para porquinhos-da-índia e anestesia de peixes de aquário antes de jogá-los na latrina.
Essas e outras regras polêmicas fazem parte da nova Lei de proteção aos animais, que entrou em vigor na Suíça no início de setembro.
As férias chegaram e as malas já estão prontas. Porém o aquário ainda está cheio de água e ocupado pelos seus moradores, uma dúzia de peixes dourados. O que fazer com eles? Muitos não titubeiam e jogam os pobres animais na latrina, apertando a descarga depois. Será que vão encontrar o rio mais próximo?
O porquinho-da-índia comprado para a filha no último verão está na gaiola, solitário e inerte. Como desperta pouco interesse nas crianças, termina sendo esquecido por todos na família e morre de fome. Em outro lugar, um gato cai do sétimo andar do edifício ao querer respirar um pouco de ar fresco. Já o cachorro da idosa late e morde as pessoas que cruza na rua como se estivesse possesso.
O que muitas pessoas não sabem é que, desde 1° de setembro, podem estar tendo problemas com a justiça helvética se não mudarem o tratamento que dão para os animais domésticos com quem compartilham o mesmo teto. Nesse dia entrou em vigor a nova e polêmica Lei de proteção aos animais, após anos de discussão e aprovação nas urnas em plebiscito popular. Graças a ela, a Suíça passa a ter um dos mais rigorosos aparatos legais de defesa dos animais,como na Áustria e nos países escandinavos.
E não é pouca coisa. O corpo da lei está em mais de cem páginas: 226 artigos no total. Da sua elaboração, além dos partidos e do governo suíços, participaram também universidades e associações de criadores e defesa dos animais. Além de modernizar a legislação já existente, ela traz instruções detalhadas sobre como centenas espécies de animais devem ser criados e tratados para atender suas necessidades “naturais”.
Moscas esquecidas?
“A Suíça sempre se preocupou com a proteção dos animais. A novidade é que a lei agora traz melhoras na questão da criação de animais e que, pela primeira vez, também estabelece regras claras de como cuidar dos diferentes animais domésticos”, resume Marcel Falk. O porta-voz do Departamento Federal de Veterinária (BVET, na sigla em alemão), órgão público encarregado da execução da lei, também explica que o trabalho de informação deve ser reforçado.
De “a” a “z”, o calhamaço de regras procurou incluir todas as criaturas de convívio com o ser humano. Tanto zelo não passou despercebido pela imprensa, inclusive internacional. “Todos os animais suíços são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros”, intitulava a agência de notícias AFP pouco depois da lei entrar em vigor, citando o romance do escritor inglês George Orwell, “A Revolução dos Bichos”. Já o Süddeutsche Zeitung, um dos maiores jornais da Alemanha, estranhava o fato das aranhas, baratas e moscas terem sido esquecidas pelo legislador helvético. Matá-las seria contra a lei?
Falk ri e balança a cabeça quase lamentando a ignorância da questão. “Sim, de fato a grande maioria da imprensa só se preocupou em ressaltar o lado folclórico ao destacar algumas poucas regras específicas. Em primeiro lugar, a Lei trata apenas de animais vertebrados. As pessoas podem continuar a matar as moscas em casa”, responde.
Mas o que diferencia um inseto de um mamífero do ponto de vista ético? Não são todas criaturas de Deus? “A questão é a capacidade de sofrimento dos animais vertebrados, a dor, algo já provado pela ciência”, retruca o assessor de imprensa, que também é biólogo de formação.
Por isso a nova Lei prevê também morte digna para peixes de aquário. “Os jornais martelam nessa história da anestesia obrigatória antes de jogar um peixe na latrina, mas estamos falando de práticas já utilizadas pelos pescadores quando retiram um da água. Você pode dar um golpe na cabeça dele ou utilizar produtos vendidos pelas lojas especializadas. Tudo isso é melhor do que prolongar ou aumentar desnecessariamente o sofrimento dos animais”, diz Falk.
Na prática
Se pudessem se manifestar, seguramente os porquinhos-da-índia na Suíça estariam agradecendo os legisladores. Isso, pois segundo a nova Lei, eles não devem ser mais mantidos sozinhos na gaiola. Não apenas eles, mas também canários, periquitos, papagaios e várias outras espécies passam a direito legal à parceira. “A justificativa é que esses animais estão habituados a viver em comunidade na natureza”, acrescenta Falk. Já os hamsters podem continuar sozinhos. Animais solitários, eles mordem o oponentes se estão dividindo o mesmo espaço.
Porém nem todas as pessoas estão satisfeitas com as regras. Felix Weck, presidente da Associação das Lojas de Animais da Suíça, acha que sua aplicação depende de cada situação. “Não é possível tirar um porquinho-da-índia de um grupo e colocá-lo em uma gaiola com outro, mas um completamente desconhecido para ele”, explica ao jornal Sonntagsblick. Ele próprio ajudou a formular a nova lei, mas prefere acreditar na capacidade dos vendedores profissionais de avaliar se deve ou não vender um animal sozinho. “Afinal, quando uma idosa perde seu marido a gente não vai obrigá-la imediatamente a procurar outro marido”.
Rosali Bachen, proprietária da loja especializada Zoogeschäft im Rosengarten em Berna, começou a aplicar as novas regras ao recusar a venda solitária de animais sociais. Porém acredita também na sensatez dos clientes. “As pessoas que gostam de ter aquários sabem que um peixe sozinho não se sente bem”. Para ela, a grande mudança já ocorreu há muitos anos. “Na época que meu pai abriu a loja, nós mantínhamos cachorros, gatos e até animais selvagens em pequenas gaiolas de exposição. Há muito tempo que isso não é permitido”.
Diplomas obrigatórios
A partir da entrada em vigor da nova Lei, a pessoa que comprar um cachorro na Suíça precisa ter diploma. Ele é dado através da visita obrigatória de três cursos teóricos e de um treinamento prático ao ar livre, com pelo menos cinco horas de duração.
O objetivo é ensinar as necessidades básicas dos cães e formas de educá-los. As regras abrangem não apenas cachorros perigosos, como pitt-bulls ou dobermanns, mas também os pequenos chihuahuas, pequineses ou poodles. Até setembro de 2010, todos os proprietários de cães na Suíça – o registro dos animais é obrigatório nas prefeituras, assim como o pagamento de impostos anuais – precisam ter o diploma em mãos. A única exceção é dada para quem já tinha um cachorro antes de 1° de setembro.
“A importância desses cursos é conscientizar as pessoas de que ter um cão exige muitas responsabilidades. Eles vivem algumas dezenas de anos e tem necessidades básicas assim como crianças”, justifica Falk.
Por isso que gatos também não foram esquecidos. Seus direitos estão detalhados: o artigo 80, por exemplo, prevê contato obrigatório com seres humanos e outros gatos, espaço de descanso, brinquedos para afiar as unhas e escalar o banheiro, pelo menos um por animal. As regras são obrigatórias a partir de 2013. Detalhe: a amputação das suas unhas também está proibida por lei.
Também o tamanho do estábulo das vacas ou do galinheiro deve atender normas mínimas, incluindo também a extensão dos poleiros, iluminação e também possibilidades de ocupação. Pássaros precisam de assentos acolchoados. Colocar peixes de aquário no congelador ou jogá-los na latrina é considerado um crime. A lei estabelece que eles devem ser anestesiados antes de ser mortos.
Em muitos casos, a compra de animais exóticos deve agora ser autorizada pelos governos cantonais. Amigos de répteis, por exemplo, precisam fazer cursos. Animais vivos só podem ser mantidos como alimentação – para cobras, por exemplo – se não existir outra possibilidade.
Controle policial?
Com tantos detalhes e nuances, a nova Lei de proteção aos animais também suscita dúvidas. Muitos se perguntam se a polícia suíça vai entrar nas casas e averiguar se um cão ou coelho está sendo tratado como mandam as regras? “Não, nosso principal objetivo é o esclarecimento e não a punição”, responde Falk, acrescentando que as autoridades só podem entrar em ação a partir de indícios concretos de maus tratos.
O rigor é justificado até por números. De 2006 a 2007, os casos de crimes cometidos contra animais foram registrados pelos cantões, segundo estatísticas do BVET, passaram de 592 a 717. Em grande parte, as vítimas foram animais domésticos e depois animais de criação como porcos e bois. Em 2007, de todos os casos registrados, apenas 147 tiveram condenações com o pagamento de multas acima de 500 francos.
Além dos casos cotidianos, o mau tratamento de animais pode ser exemplificado através de atos de extrema violência. No final de setembro, um polonês foi condenado no cantão da Basiléia a expulsão da Suíça e pagamento de 1.500 francos por ter agredido três novilhos. Dos três, em um foi provado que o trabalhador agrícola havia cometido ato de sodomia.
swissinfo, Alexander Thoele
A nova Lei de proteção aos animais foi aprovada em 23 de abril de 2008 e entrou em vigor em 1° de setembro.
Ela compreende 226 artigos.
Apesar da Suíça sempre ter tido regras restritas no cuidado com animais, a novidade é que animais domésticos e suas necessidades agora estão explícitas na Lei.
Dentre elas: a obrigatoriedade de companhia para animais sociais, cursos obrigatórios para proprietários de cães, cursos para pescadores, tamanhos mínimos para gaiolas ou mesmo exigência de ocupação e brinquedos para gatos.
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