Um suíço no poço do picapau amarelo
“O poço do Visconde”, de Monteiro Lobato (1882-1948), foi um dos livros de maior sucesso na literatura infantil brasileira. A obra é uma cartilha geológica para crianças sobre a exploração do petróleo. A fábula transpôs as pesquisas e intrigas do autor com o amigo suíço Karl Werner Franke, engenheiro petrolífero. Ele se tornaria uma eminência parda e voz da consciência crítica de Monteiro Lobato entre 1934 e 1937, período de intensa campanha “patriótica” pelo petróleo brasileiro.
As linhas e as entrelinhas das aventuras dos personagens Visconde de Sabugosa travestido de geólogo, Pedrinho e Narizinho no sítio de Dona Benta, remetem a situações passadas pelo suíço e relatadas a Monteiro Lobato em cartas. A presença de episódios e personagens na obra de Monteiro Lobato, publicada em 1937, não seria apenas mera coincidência. No livro, previam-se já as aberturas do verdadeiro poço de Lobato – cidade na Bahia, onde, oficialmente, o petróleo jorrou pela primeira vez – e do poço de mentira, o Caraminguá n°1, no livro.
Cem anos antes, a ocorrência de xisto betuminoso – matéria prima para o petróleo de xisto – na costa alagoana constava no Dicionário Geográfico das Minas do Brasil como uma “jazida estendendo-se pelo mar”. A cobiça pelo ouro negro despertava a atenção internacional e atraía estrangeiros ao Brasil, entre eles Karl Werner Franke, e representantes da empresa americana Standard Oil, do magnata John D. Rockefeller, da holandesa Royal Dutch, além da inglesa Anglo-Mexican, entre outras.
Plágio ou inspiração
Alguns participantes desta corrida ao petróleo virariam personagens do livro infantil, como o especialista francês Mr. Champignon, dedicado ao amigo ao suíço. E o técnico Mr. Kalamazoo, alter-ego do superior na vida real de Charlie Frankie, o alemão Joseph Winter, transformado num americano traidor na ficção de Monteiro Lobato.
“O Lobato queria muito aprender sobre o petróleo. Não existiria o livro ‘O Poço do Visconde’ nem ‘O escândalo do Petróleo’ (1936) sem o Frankie. Eu chamo de co-autoria. Atualmente, seria considerado plágio. Mas prefiro co-autoria”, contou a doutora em literatura brasileira, Katia Chiaradia, para a swissinfo.ch, em entrevista no Rio de Janeiro.
Chiaradia afirma que “as ideias [para o livro] vieram do cotidiano. As coisas acontecem na perfuração deles, em Araquá. Muitas das ilustrações foram feitas pelo próprio Lobato mas, por exemplo, o anticlinal é um desenho que surgiu a partir de um esboço do Frankie, que era o senhor Champignon”, diz Chiaradia.
Durante a corrida do petróleo, muitos proprietários de terras procuravam o autor e Frankie com a esperança de achar petróleo no subsolo dos pastos e plantações.
Numa carta de 8 de julho de 1936, o exportador de café Julio Rodrigues convida o “LLLmo Sr. Dr. Charley W. Frankie” a visitar sua propriedade em Cumuruxatiba, sul da Bahia, com todas as despesas pagas. Ele queria um estudo geológico do seu subsolo. Esta busca também ganharia as páginas do livro.
“Deflagrou-se uma correria de latifundiários pelo petróleo. E isso aparece em “O poço do Visconde”, as vizinhas de dona Benta descobrem petróleo. Todos que possuíam uma fazenda achavam que tinham petróleo, e Lobato e Frankie eram chamados para consultorias.
Durante 15 anos, Katia Chiaradia pesquisou as correspondências entre Monteiro Lobato e Charles Frankie. Algumas passagens comparadas entre as cartas e a narração literária ganharam destaque na tese de mestrado na qual ela afirma que, “se há notáveis coincidências de expressões e pensamentos entre as cartas escritas por Franckie, enviadas a Lobato, e a literatura deste último, talvez se pudesse considerar Charles Frankie co-autor, ao menos de parte dos escritos lobatianos sobre o petróleo”.
Entre alemães e americanos
Em 1934, os caminhos do escritor e de Charlie Frankie se cruzaram na exploração do poço de Araquá, em Charqueada (SP). Naquele ano, o governo havia editado o Código de Minas, nacionalizando as riquezas do subsolo. A medida atrapalharia os planos de Monteiro Lobato e suas parcerias estrangeiras, inclusive com empresas alemãs, como a Piepmeyer & Co e a subsidiária ELBOF.
Naquela época, o brasileiro apostava no petróleo em Riacho Doce, em Alagoas, com Charles Frankie no trabalho de campo.
“Monteiro Lobato tinha uma parceria com a Alemanha, e queria evitar que Rockfeller (da americana Standard Oil) entrasse no mercado”.
Em suas cartas, misturando citações intelectuais europeias e metáforas folclorísticas brasileiras, Frankie fornecia a “munição” técnica e Monteiro Lobato a disparava contra o “descaso” do governo na exploração petrolífera em livros, artigos e entrevistas, além das cartas. O próprio suíço é indicado como uma autoridade em assuntos geológicos do setor, em matérias do jornal Correio da Manhã.
Num artigo intitulado “ A Fé”, “observa-se uma profunda semelhança” entre a reportagem e o teor da carta-relatório que, em 10 de junho de 1936, Charles Frankie havia remetido a Monteiro Lobato e que, por sua vez, a tinha expedido à redação do jornal.
Rede de intrigas
Aos poucos, os fatos provariam que os relatórios oficiais do governo sobre a “ausência” de petróleo no país eram falsos.
O brasileiro era presidente da Companhia Petróleos do Brasil, CPB, e acionista majoritário da Companhia Petrolífera Nacional, CPN. Esta última, sob o nome de Aliança Mineração e Petróleos, AMEP, atuaria nas prospecções petrolíferas na capital alagoana, local onde trabalhava o suíço à serviço de Monteiro Lobato e da empresa alemã Piepmeyer&Co.
A Alemanha, às vésperas da Segunda Guerra Mundial, estava ávida por matéria-prima para cobrir o esforço bélico. “Lobato foi acusado de fascista, misógino, e de um monte de coisas, e teria mais esta para se defender, como financiador do nazismo”, reflete a pesquisadora Katia Chiaradia.
Não demorou e o suíço se tornaria homem de confiança de Monteiro Lobato na luta da exploração petrolífera pela iniciativa privada, além de parceiro em obras literárias, e como tradutor para o português da obra ”Flüssiges Gold”, ou “A luta do petróleo”, sobre a batalha entre a Standard Oil e a Royal Dutch.
Dos Alpes para o sítio do Picapau Amarelo
Karl Werner Francke nasceu em Berna em 1894 e chegou ao Brasil em 20 de junho de 1920, onde mudou o nome para Charles Warren Frankie e trabalhou por dez anos numa indústria de máquinas de beneficiamento de café, em São Paulo.
O diploma de engenheiro-geólogo seria reconhecido apenas em 1931. Pouco tempo depois, ele encontraria Monteiro Lobato e a sua aventura petrolífera, já em Piracicaba, com a mulher Ottilia (Otília) Dihel, com quem teve cinco filhos.
O brasileiro o contratou como responsável pelas perfurações em Araquá, hoje Águas de São Pedro, no interior paulista. O suíço ainda viria a se tornar o representante da empresa alemã Piepmeyer & Co e da subsidiária EBLOF, ambas de Kassel, na Alemanha. E com Monteiro Lobato, depois de Riacho Doce, Alagoas, seria a vez do Mato Grosso, o novo eldorado do petróleo.
Crédito fantasma
“O escândalo do petróleo”, publicado em 1936, vendeu 20 mil exemplares em apenas 5 meses. Neste livro, sobre a “renúncia” do governo à exploração do petróleo no Brasil, o autor usa e abusa das informações passadas por Charlie Frankie nas cartas, sobre a presença de trustes estrangeiros disfarçados de empresas nacionais, como a Standard Oil, Royal Dutch e Shell, além de mortes misteriosas de pesquisadores de petróleo. Sem lhe dar crédito.
Charles Frankie não percebeu. Ou não quis ver. Até devido à sua cultura suíça, ele custaria muito a se convencer de ter sido usado por Monteiro Lobato. O suíço ainda não tinha atingido este grau de malícia.
Já numa carta de 23 de dezembro de 1934, Monteiro Lobato escreveria a Charles Frankie que receberia, “com muito interesse“, todas “as informações que puder dar-me”. O brasileiro pedia dados com uma discrição que se perderia ao longo dos anos, com o nascimento da amizade.
“Ele chegou num país continental, com regras que não se respeitam e culturas diferentes entre si. O Frankie não tinha preconceito algum. Ele foi se “abrasileirando” e num dado momento era mais brasileiro do que o Lobato”, diz ela.
Das cartas
Charles Frankie “encarnou” em Katia Chiaradia através do bisneto, Gustavo Stolf Jeuken, numa aula de gramática. O jovem estudava na escola São Paulo, em Holambra, interior paulista, quando presenteou uma pasta amarelada pelo tempo à professora de ensino médio e graduanda universitária Katia Chiradia.
As cartas originais entre o escritor brasileiro e o engenheiro suíço estavam ali dentro. Hoje, a documentação encontra-se no Centro de Documentação Alexandre Eulálio (CEDAE) da Universidade Estadual de Campinas.
Para os pesquisadores, as cartas são documentos primários e originais sobre os autores. “Com o Lobato não é diferente, ele pegou trechos de cartas mais a fantasia e transformou em dois livros”, conclui ela.
Durante o período da correspondência entre o brasileiro e o suíço, Monteiro Lobato publicaria 8 livros infantis, 2 adultos e uma tradução.
“Charles Frankie jamais perdeu a confiança e admiração em Monteiro Lobato”, diz Chiaradia. A última carta de Charles Frankie para Monteiro Lobato é datada de 27 de junho de 1937. Ela foi escrita em Piracicaba e era confidencial. No dia 5 de julho, do mesmo ano, o suíço viajaria para Mato Grosso, de onde nunca mais voltaria.
Fronteiras
Depois da aventura “lobatiana”, Charles Frankie foi trabalhar na construção da ferrovia Madeira-Marmoré, no estado de Mato Grosso. Ingressou no Itamaraty como técnico e topógrafo na demarcação de fronteiras com Bolívia, Paraguai e Peru. Entre ataques de malária, desbravaria os subsolos dos sertões e das costas brasileira, e morreu em Corumbá em 2 de fevereiro de 1968, onze anos após se naturalizar brasileiro.
O suíço era apaixonado por literatura e isso aproximou-o muito do brasileiro. Ele redigia em português lusitano.
A primeira carta é de 30 de novembro de 1934. Elas revelam a influência de Charles Frankie sobre Monteiro Lobato em diferentes campos da vida. Sua sinceridade, muito suíça e pouco brasileira, às vezes incomodava o escritor/empresário Monteiro Lobato.
Na carta de 6 de abril de 1937, o brasileiro pede ao suíço, em Mato Grosso para explorações petrolíferas, de não se aborrecer mais do que deveria e pescar dourados, para relaxar. Em outro momento, era Frankie quem dava apoio moral ao escritor, ao sugerir-lhe de tomar umas “pílulas de entusiamo” para enfrentar as adversidades. Em raro momento de auto-ironia, o suíço se despede do brasileiro com “Um apertado abraço para Você, do desviado Frankie” (17/09/1936).
Antes, em 29 de agosto, Charlie Frankie , após ler a primeira edição de “O Escândalo o Petróleo”, envia uma carta na qual assinala duas objeções que devem ser retiradas da publicação.
Em outra ocasião, ele contrapõe o pragmatismo suíço à indolência brasileira. E puxa as orelhas de Monteiro Lobato ao pedir mais racionalismo e menos diletantismo em uma carta “estritamente confidencial”.
O suíço chega a bradar que Monteiro Lobato “se comporte como HOMEM”, na correspondência de 25 de agosto de 1936. E vinte dias antes, Frankie havia criticado a forma de trabalhar dos operários, afirmando que “o pessoal da sonda é tão dependente, que você precisa dizer em qualquer instante: faça isso, faça aquilo. Nunca aprenderam a trabalhar independente, PENSANDO”, ralha o suíço.
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