“É possível projetar qualquer coisa sobre Drácula”
O vampiro que sai do caixão após o pôr-do-sol para caçar novas vítimas e sugar-lhes o sangue com seus dentes pontiagudos: Drácula é um dos monstros mais populares da cultura contemporânea.
Mais de cem anos após o seu nascimento no romance de Bram Stoker, alguns estudiosos tentam decifrar o que está por trás do mito, cuja origem pode ser encontrada na violenta história do leste europeu na figura de um príncipe voivode e herói nacional.
Heiko Haumann não é o que se pode considerar um especialista em vampiros. Professor aposentado da Universidade da Basileia, o alemão especializado em história da Europa do leste e contemporânea já escreveu livros sobre os judeus do leste europeu ou a União Soviética.
Porém em 2011 ele lançou uma pequena obra intitulada “Drácula – Vida e Lenda” dedicada a Vlad Tepes (Sighișoara, c. 1431 – Bucareste, dezembro de 1476), um príncipe da Valáquia mais conhecido como Vlad, o Empalador, que posteriormente teria inspirado o autor irlandês Bram Stoker na criação do famoso personagem Conde Drácula.
Em seu escritório no Departamento de História da Universidade da Basileia, Haumann recebe o jornalista da swissinfo.ch para falar sobre o que existe em comum entre o personagem histórico de Vlad Tepes, vampiros e Conde Drácula, sem deixar de abordar o fenômeno da série americana de vampiros “Twilight”.
swissinfo.ch: Como autor do livro “Drácula – Vida e Lenda”, quem foi esse personagem?
Heiko Haumann: O personagem histórico – Vlad III. Draculea – foi um Voivoda (n.r.: palavra eslava que originalmente designava o principal comandante de uma força militar) e príncipe da Valáquia. Durante o caos que reinava no século 15, ele lutou para proteger a soberania do seu território contra o Império Otomano, que vinham pelo lado oeste, e por outro, contra o Império Húngaro, que dominava a Transilvânia e exercia pressão sobre a Valáquia.
A Valáquia era uma espécie de Estado-tampão. Drácula tentou reforçá-la economicamente, quebrar o poder da grande nobreza e construir uma força militar para proteger a sua independência. Ele aproveitou todas as oportunidades para tomar espaço do Império Otomano, tendo muitas vezes sucesso nas suas incursões. E durante certo tempo, ele assumiu no mundo cristão um papel de líder contra o Império Otomano.
O livro “Drácula” foi publicado em 1897 pelo escritor irlandês Bram Stoker.
Posteriormente a obra foi traduzida em vários idiomas. A popularização da obra foi auxiliada pelas diversas adaptações e apresentações em teatros.
O primeiro filme baseado na obra de Bram Stoker foi “Nosferatu”, dirigido pelo diretor alemão Friedrich Murnau. Em 1931, o ator Bela Lugosi encenou “Drácula” em uma produção americana.
“Provavelmente já foram rodados mais de três mil filmes sobre Dráculas e vampiros”, declara o professor Heiko Haumann.
swissinfo.ch: No seu livro o senhor conta que Vlad Drácula tinha fortes ligações com o Império Otomano. Ele chegou mesmo a passar alguns anos na corte…
H.H.: Drácula foi refém na corte do Império Otomano. Por questões políticas, seu pai havia sido obrigado na época a ceder dois dos seus filhos ao sultão. Assim nosso Drácula recebeu uma formação na corte otomana e conheceu pessoalmente o seu posterior inimigo, o sultão. Como crianças eles eram quase amigos. Assim ele sabia como o exército otomano estava estruturado e podia, dessa forma, elaborar uma estratégia bastante inteligente, quase uma estratégia de guerrilha. Assim Drácula conseguiu provocar derrotas dos otomanos com um exército relativamente pequeno.
swissinfo.ch: Por que existem tão poucos testemunhos concretos da existência de Drácula além dos relatos e algumas ilustrações medievais?
H.H.: Talvez seja algo característico daquele período. Dele temos alguns documentos, mas nenhum escrito. Existem também algumas fontes indiretas de origem húngara ou otomana, alguns relatos de viagens feitas à região. É possível que esses testemunhos concretos de Drácula tenham sido destruídos na época durante as inúmeras guerras, assim como em toda a Europa do leste nesse século.
Quanto às imagens, o número delas aumentou nos tempos mais recentes. As mais conhecidas são as xilogravuras, onde Drácula é retratado tradicionalmente como o empalador sanguinário, Vlad Tepes (Vlad, o empalador). Agora foram descobertas novas imagens, em grande parte religiosas, onde ele é retratado não como Drácula, mas sim como o centurião romano frente à cruz ou Pilatus, mas facilmente reconhecível pelo rosto, dentro de um contexto de iconografia religiosa. Assim fica claro que existia na época uma contradição na forma de retratá-lo: de um lado existia uma campanha contra ele na forma de mostrá-lo como um príncipe sanguinário e, do outro, como um líder do Ocidente cristão na luta contra os otomanos e também quase um traidor, já que pulava de um lado para o outro. Assim podemos dizer que essa tradição iconográfica pode interpretar um pouco a pessoa que era Vlad Drácula.
swissinfo.ch: Mas se a prática do empalamento e outros atos bárbaros eram comuns nessa parte da Europa nesse período histórico, por que Drácula teve um destaque tão grande, a ponto de ter inspirado o escritor Bram Stoker?
H.H.: Mesmo se nos faltam as fontes, podemos dizer que o empalamento era uma prática de punição comum nessa época, tanto entre os otomanos assim como na Europa ocidental, indo até o Papa. Agora por que no caso de Drácula isso era tão extremo? Existem fontes contemporâneas que não falam nada de empalação. Já outras as apresentam de forma extensa, ressaltando o caráter extremamente sanguinário de Drácula e lembrando que ele comia e bebia mesmo frente a um cenário de pessoas empaladas. Eu penso que isso era uma campanha midiática do rei húngaro, apesar de não ser possível prová-lo. Ele teria interesse em neutralizá-lo, também economicamente, como concorrente na luta entre o Ocidente cristão e o império otomano.
swissinfo.ch: Um dos relatos mais impressionantes fala de um corredor de prisioneiros empalados em altas estacas, que terminou por aterrorizar as tropas otomanas…
H.H.: Existe um relato de origem otomana que fala sobre a “floresta de empalados”, que teria chocado os soldados. Porém existe um segundo relato, escrito por um participante dessa mesma campanha militar e que teria sido capturado posteriormente pelas tropas cristãs, onde ele não cita nada disso. Na verdade não se sabe o que realmente aconteceu.
swissinfo.ch: Um contemporâneo de Drácula, o príncipe Skanderbeg, é considerado o herói nacional da Albânia. Qual a importância de Drácula como personagem histórico na Romênia?
H.H.: Talvez Drácula não tenha atingido as dimensões de Skanderbeg, mas você encontra seu busto entre os heróis romenos no principal prédio em Bucareste. Seguramente ele faz parte dos grandes heróis do país por ter combatido os otomanos. Na tradição romena ele não é retratado como um vilão, mas um líder que lutou para unir e defender o país.
swissinfo.ch: Como os romenos veem Drácula ser retratado como vampiro no Ocidente?
H.H.: A maior parte da população da Romênia não aceita essa comercialização de Drácula como um monstro sanguinário ou até vampiro, assim como foi retratado no romance de Bram Stoker. Várias tentativas de criar na Romênia parques de diversão temáticos fracassaram frente à forte oposição da população. Lá ele é um herói nacional e está completamente separado da tradicional crença existente no país em vampiros.
swissinfo.ch: A crença em vampiros ainda existe na Romênia ou em outros países europeus?
H.H.: Sim, em uma região ou outra ainda se houve falar nessa crença, ou seja, de pessoas que retornam do reino dos mortos, completamente da história de Drácula. E esses relatos ocorrem não apenas na Romênia, mas também na Sérvia, Eslováquia e em outros países do leste europeu. Trata-se de uma crença popular que data de muitos séculos, a de pessoas com quem tínhamos uma forte desavença e que retornam ao morrer para se vingar.
swissinfo.ch: A mistura entre vampiros e um personagem da história romena no romance de Bram Stoker para criar o Drácula teria alguma explicação?
H.H.: Bram Stoker retratou uma imagem que as pessoas tinham na época da Europa do leste. Por exemplo, no livro a Inglaterra é lugar do Iluminismo e está prestes a sofrer um ataque de hordas do leste. Drácula chega à Inglaterra em um navio russo, o Demeter, de Demetrius, o falso Tzar. A volta dele à Transilvânia é feita com o navio Tzarina Katharina.
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swissinfo.ch: Haveria no livro mensagens subliminares?
H.H.: Sim. O livro retrata uma imagem em que o leste da Europa é o lugar da barbárie, do atraso, da ameaça do império otomano figurado pelo império russo. Ele também retratada um temor dos judeus orientais, como pode ser provado em várias passagens.
swissinfo.ch: Afinal, como o Drácula histórico acabou se tornando um vampiro?
H.H.: De fato, isso é obra do trabalho de Bram Stoker. Porém os relatos sobre vampiros no sul e no leste da Europa se tornaram populares em meados do século 18 através da mídia. Eles falavam sobre essa crença da existência de vampiros, que estão nos túmulos ainda com sangue fresco na boca. Esse elemento foi aproveitado então pela literatura. Assim, desde a segunda metade do século 18 sempre apareceram as histórias com vampiros. Exemplos são Goethe, E. T. A. Hoffmann, autores russos, enfim, um grande número de poetas e escritores. Porém isso nunca havia ocorrido em ligação com Drácula. Até surgirem as primeiras vampiras do leste europeu dentro da tradição da literatura gótica inglesa. É o momento em que Bram Stoker faz essa ligação com Drácula.
swissinfo.ch: Como isso ocorreu?
H.H.: Ele descobriu a existência histórica dessa cruel príncipe e então o utilizou primeiramente em um conto e depois em um romance. Nós podemos dizer assim que ele é o criador do personagem. Ele só conhecia a Romênia através dos livros. Existem provas que ele leu muitos escritos na Biblioteca Britânica ou se informou através de conhecidos.
swissinfo.ch: O que tornou posteriormente Drácula tão popular?
H.H.: Depois do sucesso do livro, o que mais colaborou foram seguramente os filmes.
swissinfo.ch: Porém o interessante é a grande quantidade de filmes sobre Drácula. Como é possível existirem tantas interpretações diferentes da mesma história?
H.H.: Essa é uma questão difícil. Talvez, pois toda época se espelha nessa história, obviamente sempre de uma forma bem individual já que é possível projetar qualquer coisa sobre Drácula e vampiros. Ou seja, o mal, mas também a pureza, a bondade, o bom contra o mal, etc. E mesmo se essa crença popular existir, a de que os mortos podem retornar para se vingar, existe também outra explicação. Émile Zola escreveu um romance Thérèse Raquin, onde ele conta que nas nossas lembranças ressuscitam muitas vezes pessoas mortas, com quem tivemos disputas ou problemas, onde nos sentimos por certas vezes culpados. E essas lembranças corroem a gente. Essas diferentes projeções sobre a figura do Drácula podem ser mais facilmente ilustradas no cinema.
swissinfo.ch: O senhor viu todos os filmes de Drácula?
H.H.: Não, isso impossível. Talvez existam mais de três mil filmes de Drácula.
swissinfo.ch: O senhor vê algum desenvolvimento da figura de Drácula na história do cinema?
H.H.: “Nosferatu”, é um filme mudo (n.r.: Alemanha, 1922, do diretor Friedrich Wilhelm Murnau) que expressa bem os horrores da I. Guerra Mundial e essa transição vivida nos anos 1920. Já os primeiros filmes americanos de Drácula que mostravam muito mais a vida decadente e Drácula como um nobre sedutor, talvez algo típico dos anos 1930 no país. E vemos hoje o Drácula apresentado como o vampiro asceta ou representação do verdadeiro amor. Veja como o desenvolvimento é fantástico no passar dos anos! Acho que sempre iremos descobrir novos aspectos através dessas diferentes projeções.
swissinfo.ch: E o que o senhor achou dos dois grandes filmes de Drácula – “A Dança dos Vampiros” (Roman Polanski, 1967) e “Drácula de Bram Stoker” (Francis Ford Coppola, 1992)?
H.H.: Coppola tenta colocar nas telas o romance de Bram Stoker da forma mais realista possível, porém na figura de um sedutor. Se alguns interpretam o Drácula de Bram Stocker como sedutor, ele aparece no muito mais como ávido por poder e sexo. Talvez as mulheres vejam isso.
Coppola aguça mais essa imagem do sedutor, o que nos permite ver como imagens sobre a sexualidade e o amor são acrescentadas. Já Polanski brinca mais com todas essas projeções. Ele ironiza, dizendo que o mal, o proibido, a crueldade não podem ser freados.
swissinfo.ch: Hoje existiriam vampiros? Será que eles existem nessas tendências de moda como a cena gótica ou do “black metal”?
H.H.: Independentemente dessas cenas existe seguramente em várias partes do mundo pessoas que acreditam na existência de vampiros, ou seja, dos mortos que ressuscitam. Existem aqueles que utilizam esses trajes típicos e se autodenominam “vampyr” e que vez ou outra bebem sangue, apesar de serem completamente inofensivos. E também existem os vampiros modernos, que utilizam a internet para influenciar as pessoas, ou seja, para roubar as suas forças, uma espécie também de vampirismo, os “internet vampiros” ou “psychovampire”.
swissinfo.ch: E finalmente, o que o senhor acha do recente filme americano “Twilight” (n.r.: “Crepúsculo”, no Brasil), uma história de vampiros que se tornou um verdadeiro sucesso mundial?
H.H.: Como eu já expliquei, isso mostra a fantástica transformação da imagem do vampiro em um “bom” vampiro, que pode ser encontrado até em livros infantis. Drácula é utilizado dessa forma para criar um personagem que incorpora elementos de sexualidade, mas também do amor puro. O curioso é observar que alguns críticos veem em “Twilight” valores extremamente conservadores. Por exemplo: se você, no filme, precisa de sangue como vampiro, então prefere pegar elementos das camadas mais baixas da sociedade, cuja perda é insignificante. Ou seja, o morador de rua pode servir sem problemas de vítima. Assim você pode ver o que é possível de fazer com o mito Drácula. Quase tudo!
Segundo os pesquisadores, Vlad III. Drăculea, também conhecido como Vlad, o Empalador (em romeno: Vlad Tepes) foi um príncipe voivoda da Valáquia e teria nascido em 1431 no vilarejo de Sighisoara ou em Nuremberg, na Alemanha.
O nome Drăculea significa “o filho do Dragão” e teria sido originado pela adesão do pai, Vlad II. Dracul, à Ordem dos Dragões de Sigismundo, Sacro Imperador Romano-Germânico, estabelecida em 1387 em Roma para promover os interesses católicos e as cruzadas.
Depois de passar alguns anos de infância como refém na corte do sultão Murad II, Drăculea fugiu para Hungria e iniciou uma carreira militar, que o levaria a ascender ao trono valaquiano, onde reinou entre 1456 e 1462. Por mais duas vezes na sua história ele teria mantido o trono.
Algumas crônicas dizem que ele teria sido decepado e a cabeça enviada ao sultão conservada em mel e depois exposta na corte. O corpo teria sido enterrado no mosteiro de Snagov (40 quilômetros ao norte de Bucareste). Quando as autoridades abriram o túmulo nos anos 1980, nenhum indício do esqueleto foi encontrado.
Em 1462, Drăculea iniciou uma campanha militar contra os otomanos, na qual infligiu diversas derrotas às tropas de Mehmed II, o que levou o sultão a concentrar todas as suas forças na Valáquia. Entre 1476 e 1477
(Fonte: “Drácula – Vida e Lenda”, Heiko Haumann, Editora C.H.Beck, 2011).
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