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“De porrete na mão “

Papa Gregório XIII representado em uma das colunas da capela do Mosteiro de Mehrerau, na Áustria. Andreas Praefcke/wikimedia commons

Na Suíça, católicos e protestantes passaram mais de duzentos anos brigando por causa do calendário. Só em 1812 é que o último município passou a adotar o calendário gregoriano. 

Corria o ano de 1796 ou 1797, quando os seguidores do novo calendário invadiram a paróquia do município de Ilanz, arrancaram os bancos e os quebraram em pedacinhos. Este foi o ponto alto de uma discórdia que, por duzentos anos, manteve o município de Ilanz, no cantão dos Grisões, dividido. Este episódio foi uma pequena amostra do que aconteceu na Confederação Helvética desde que o Papa Gregório ordenou uma grande reforma do calendário, em 1582.

Uma grande conquista foi a adoção do calendário juliano, introduzido por César no ano de 46 a.C. Mas, em determinado momento, estudiosos descobriram que este calendário apresentava uma grande desvantagem: o ano juliano era 11 minutos e 14 segundos mais longo do que o ano solar. Estes minutos e segundos, com o passar dos séculos, transformaram-se em dias inteiros e trouxeram confusão para o calendário festivo religioso.

Com isso, a comemoração da Páscoa, por exemplo, foi ficando cada vez mais distante da lua cheia da primavera. O papa Gregório (1502-1585) quis restabelecer a ordem das coisas. Depois de recolher o parecer de especialistas de toda a Europa em um documento, ele mandou cortar do calendário os dez dias excedentes.  

O “calendário gregoriano” foi adotado na época sem maiores problemas pela União Ibérica, a união das monarquias de Portugal e Espanha, naturalmente católica, e por outros países católicos da Europa. Estes países acataram de forma obediente um salto do dia 4 de outubro para o dia 15 de outubro de 1582. No Império Germânico e na Confederação Helvética, que possuíam regiões católicas e outras reformadas, houve violentas controvérsias.

Confusão na Confederação

Os cantões católicos – com exceção do cantão de Nidwald – queriam adotar o calendário gregoriano e promoveram a sua adoção também nas regiões subalternas. Os cantões reformados, luteranistas, principalmente Zurique e Berna, protestaram. Eles não queriam ter o seu tempo ditado por um papa, muito menos por Gegório XIII, que dez anos antes tinha celebrado com um Te Deum o assassinato de milhares de reformados na França.

No dia 12 de janeiro de 1584, os cantões católicos deram um passo à frente e riscaram dez dias do seu calendário, introduzindo o calendário do papa Gregório. As regiões subalternas, depois de duras batalhas, chegaram a um consenso. Os dias festivos seriam celebrados pelos católicos segundo o calendário novo, e pelos reformados nas datas do antigo calendário. Os negócios ficariam fechados para descanso tanto nos feriados católicos como nos feriados luteranos.

Isso causou uma grande confusão na Confederação Helvética. Eventos suprarregionais, como feiras e mercados, passaram a não ter mais as mesmas datas para católicos e para reformados. Em certidões e contratos, por exemplo, ficava a dúvida sobre qual calendário deveria determinar a data, tanto que, em várias localidades, passou-se a colocar nos documentos ambas as datas.

A maior confusão, porém, foi em relação às regras dos dias festivos. Enquanto os protestantes ainda estavam aguardando o Natal, os católicos já estavam celebrando o Ano Novo. Enquanto os protestantes se preparavam para a Páscoa, os católicos já tinham celebrado a Páscoa. Com isso, a quantidade de dias festivos duplicou nas regiões mistas, e consequentemente a quantidade de dias não trabalhados também.

Os danos econômicos advindos da existência simultânea dos dois calendários podem ser exemplificados pelo município de Bivio, que desde 1584 estava dividido em duas comunidades religiosas: uma católica e outra protestante. Este município do cantão dos Grisões ficava situado na rota de comércio dos passos alpinos de Septimer e Julier, e por isso possuía depósitos de mercadorias, hospedarias e estações de troca de animais de carga.  

Ilanz, por volta de 1900. William Tombleson

Porém, esta infraestrutura, que dependia do comércio com outras terras, ficava fechada vários dias por ano por causa do feriados religiosos, de modo que os habitantes do vilarejo acabavam ganhando menos. Não é de se admirar que o município luterano de Bivio tenha sido o primeiro do cantão dos Grisões a adotar o calendário do papa, em 1745.

Pancadaria em Ilanz

No município protestante de Ilanz foi tudo diferente. Neste município, a discussão sobre o calendário não era capitaneada pelas diferentes confissões religiosas. Ali foram os patrícios, membros da nobreza, que se negaram a adotar o novo calendário. A briga foi longa e cruel, e nos dias festivos aconteciam severas pancadarias.

Quando os reformados venceram uma votação municipal sobre a questão do calendário, aí sim a briga se acirrou. Os “patrícios“ e suas famílias passaram a frequentar a Paróquia de São Martinho, situada fora do município de Ilanz, onde os pastores dos municípios vizinhos de Luvis e Flond realizavam missas seguindo o calendário antigo. Os adeptos do novo calendário vingavam-se construindo barreiras com galhos de árvores na estrada para a Igreja de São Martinho na véspera das datas festivas.

Esta prática, por sua vez, fez com que os corajosos cidadãos de Luvis entrassem em ação. Segundo um historiador local, os luvisanos defendiam o antigo calendário “de porrete na mão”. “Como a minoria de Ilanz ficou cada vez menor e não tinha condições de impedir que os trabalhadores fossem para os campos trabalhar nos dias festivos, numa segunda-feira após a Páscoa, os moradores do vilarejo desceram para ajudar os perseguidos e expulsaram os novos crentes que estavam trabalhando no campo, com pás, vangas, arados e outros instrumentos.” Só a entrada das tropas francesas, no ano de 1799, conseguiu pôr um fim nesta briga. 

Tradição do São Nicolau é vivida nos desfiles em Urnäsch, cantão do Appenzell Rhodes exterior, em 12 de janeiro de 2013. Keystone

Avers, o último

Passaram-se mais de duzentos anos até que os últimos defensores do antigo calendário no cantão dos Grisões finalmente cedessem. Até mesmo quando o Grande Conselho declarou o novo calendário como “único válido” na Suíça, em maio de 1811, os municípios de Schiers, Grüsch e Avers permaneceram renitentes.

Eles só cederam quando o governo ameaçou-os com cobrança de multas e com um batalhão de soldados. O último município a ceder foi Avers, em 7 de janeiro de 1812. Com isso, Avers obteve a dubiosa honra de ser o último município da Europa Ocidental e da Europa Central a reconhecer o calendário gregoriano.

Ainda se veem resquícios do calendário juliano na Suíça até hoje. No cantão de Appenzell-Exterior, por exemplo, as pessoas fantasiadas de Sylvesterkläuse, um antigo costume para celebrar o ano novo, desfilam pela cidade duas vezes. A primeira vez na noite de São Silvestre, no dia 31 de dezembro, e depois no dia 13 de janeiro, dia do ano novo segundo o calendário juliano.  

Adaptação: Fabiana Macchi

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