A desaparecida arte de projetar filmes de película ainda resiste em Locarno
Um olhar no mundo em extinção dos filmes de película, dentro de uma cabine de projeção no Festival de Cinema de Locarno.
No pavilhão GranRex em Locarno, o projecionista Jean Michel Gabarra montou dois projetores Kinoton, peças altamente sofisticadas de tecnologia alemã, com os dois primeiros rolos de Thunder on the Hill de Douglas Sirk (EUA, 1951). Encaixadas nos equipamentos, as bobinas de cada filme exibiam na lateral uma etiqueta – com informações sobre o aspecto da película, som, etc. – como uma fonte de informação reconfortante. Enquanto as imagens gravadas décadas atrás se transformavam em movimentos vivos na tela, o projecionista caminhava com determinação entre as duas máquinas, ocasionalmente parando para olhar a tela projetada com um sorriso satisfeito.
A cabine de projeção de Jean não era muito apertada – aliás, era confortável em comparação com outras que já conheci – mas quase todo espaço estava ocupado pelos dois Kinotons. Bem por isso, me cuidei para ficar fora do caminho do depósito enquanto Jean estava trabalhando. À minha direita, conseguia ver o arquivo de películas de celulóide de 35mm da retrospectiva do cineasta, todas rotuladas e prontas para serem exibidas ao público. Um banco de rebobinamento azul da Cinemeccanica – feito na vizinha Milão e enfeitado com várias etiquetas com notas, instruções e horários – em breve transportaria as bobinas de volta para seus pontos de partida.
Nesse nosso mundo atual de gratificação instantânea, é fácil ignorar os trabalhadores discretos que ficam por trás das telas, dirigindo os equipamentos e tornando possíveis as experiências cinematográficas. Certo esquecimento recai especialmente sobre projetistas de filmes, ainda mais nessa época em que as películas de celulóide são projetadas quase somente em festivais de cinema ou exibições especiais de filmes clássicos.
Ao lado de outras exibições individuais, a 75ª edição do Locarno Film Festival apresentou uma retrospectiva abrangente dedicada ao cineasta Douglas Sirk, amplamente apresentada em películas de 35mm. Quase ninguém pode perceber ou se lembrar, mas, quando as imagens de cineastas como Sirku chegam à tela, isso significa que elas já passaram por uma variedade de processos nas mãos dos projecionistas.
Cristina Caon, responsável pela Admissão de Películas do Festival, me contou que as películas vieram de várias regiões do mundo para a mostra. O Harvard Film Archive, o British Film Institute (BFI), o Murnau Stiftung (Alemanha) e muitos outros encaminharam os rolos. Olhando para a coleção, dá para ver que se trata de uma quantidade considerável de celulóide enrolada, o que me faz pensar sobre o volume muito maior de películas que chegava em Locarno antes da projeção digital dominar as sessões.
“Não existe mais treinamento para projecionistas de 35mm na França”, diz Jean, que costuma trabalhar para Locarno e Cannes, “mas os mais jovens tendem a aprender com os mais velhos que ainda estão trabalhando ou têm sorte por causa dos arquivos de filmes.”
O sumiço dos projecionistas é um dado de realidade vivo em minhas experiências e o que trago neste artigo é resultado de conversas com projecionistas e profissionais de cinema que encontrei em vários lugares. Na Suíça, um desses facilitadores foi a Cinémathèque Suisse, que está realizando uma retrospectiva adjunta do Sirk ao lado do festival.
No caso de Jean, ele aprendeu com seu pai antes de trabalhar como instalador de equipamentos de projeção. Ele contou que vários projecionistas na Europa fazem em grande parte outros trabalhos e dependem de vários festivais de cinema para trabalhar. O cenário para a projeção de celulóide diminuiu drasticamente no final dos anos 2000, quando os multiplexes começaram a migrar para sistemas digitais.
Cinéfilos de carteirinha e cinéfilos casuais enumeram muitas razões para apreciar películas de celulóide. Mas, além disso, é igualmente importante lembrar das carreiras que foram impactadas pela mudança da projeção digital em nível comercial. Quando comecei a trabalhar como lanterninha em salas de cinema no Reino Unido, vi projetistas de carreira serem demitidos drasticamente ou oferecerem horas reduzidas de suporte a sistemas DCP automatizados (Digital Cinema Packages, o formato que circula nas salas de cinema hoje).
Nesta edição do festival de Locarno, depois da exibição de Thunder on the Hill, os espectadores tiveram a oportunidade de ver o curta de animação de Gitanjali Rao, Printed Rainbow (India, 2006) na Piazza Grande, o icônico espaço de exibição ao ar livre do festival.
Em seu discurso, o diretor Rao ressaltou que a escolha dos organizadores de projetar a película 35mm sobre um arquivo digital era uma raridade. O resultado da mistura foi um sucesso. Os tons vívidos das imagens ricochetearam na tela, lavando a platéia em cores. Esta foi sem dúvida a minha experiência favorita no festival e uma introdução memorável à filmografia de Rao.
Na penúltima noite do festival, uma impressão em 35mm da Imitação da Vida de Sirk (EUA, 1959) chegou à Piazza. Enquanto a plateia corria para longe de um chuveiro, eu observava as gotas de chuva dançarem na frente do feixe de luz que emerge da cabine de projeção de do festival.
À medida que cada rolo de filme chegava ao fim – o que é indicado pelo furador redondo no canto superior direito – eu olhava para trás buscando a cabine para ver o feixe de luz mudar de um projetor para o outro. Para mim, este ato era um lembrete do trabalho feito pelo projecionista lá dentro.
Olhar para a cabine de projeção pode parecer estranho em alguns aspectos, porque muito do que define um bom projecionista é sua capacidade de trabalhar sem ser detectado. Mas, para mim, o impacto silencioso de uma troca perfeita entre bobinas não pode passar despercebido.
Lembro-me de assistir ao Nitrate Picture Show na George Eastman House há vários anos e de me surpreender em como os organizadores incentivaram o público a aplaudir o projecionista antes do filme. Parecia um gesto radical, mas que eu adoraria ver se tornar uma prática padrão, especialmente porque um filme de celulóide pode muitas vezes influenciar o público a revisitar obras ou experimentá-las pela primeira vez.
Da Locarno Critics Academy
Andrew Northrop é jornalista de cinema radicado em Londres. Ele trabalha como técnico de cinema e mídia na Slade School of Fine Art. Seus trabalhos e entrevistas têm aparecido na BOMB Magazine, MUBI Notebook, Little White Lies, Millenium Film Journal, Cineaste Magazine, entre outros.
Adaptação: Clarissa Levy
(Edição: Fernando Hirschy)
Adaptação: Clarissa Levy
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