A história italiana escrita pela tipografia helvética
O italiano Luigi Dottesio deu azar. Ele foi interceptado pela polícia austríaca na fronteira de Maslianico, nos arredores de Como, com alguns exemplares de livros impressos pela tipografia Elvetica, de Lugano.
Era 12 de janeiro de 1851.
O “carteiro” improvisado acabaria enforcado em Veneza, dez meses depois, sob a acusação de ser um conspirador do Império. Os textos tinham sido proibidos na Itália e por isso foram rodados na Suíça.
Levar os manuscritos para o outro lado da fronteira significava dar ao pensamento redigido uma carta de alforria. “Existiam espiões por toda a parte, era muito perigoso, e vemos suíços sacrificados em nome da liberdade italiana. O sistema de interceptação era muito eficiente”, conta o diretor da casa-museo Manzoni, Giancarlo Gaspari a swissinfo.
A missão arriscada era de mão dupla – quase impossível na ida e não menos ousada na volta, ao trazer o material encadernado, pronto para a divulgação – e muitas vezes o portador pagava com a própria vida.
Aos ouvidos da potências da época, o barulho destas tipografias era equivalente ao som dos canhões e dos mosquetões. “Uma estamparia vale como um exército”, afirmaria Filippo di Boni, refugiado político na Suíça e “mazziniano”, como Luigi Dottesio.
As letras suportam e transportam as idéias. As tipografias eram o meio responsável, em grande parte, pela transformação dos conceitos em fatos. Guardando as devidas proporções, elas representavam a internet dos dias de hoje. Eis porque eram tão temidas em tempos de reformas, revoluções e ressurgimentos.
O homônimo livro, Reformas, Revoluções e Ressurgimentos traz uma antologia de textos censurados na Itália mas que conseguiram ganhar vida e influenciar os eventos quando foram impressos na Suíça e divulgados pela Europa. Entre a Revolução Francesa e a Unificação da Itália, milhares de trabalhos importantes foram imortalizados nas tipografias suíças.
Volumes, manifestos, anúncios, panfletos, enfim, armas silenciosas contra a opressão ganhavam um poder de fogo nas ruas, nos bares e nos salões freqüentados pela gente comum, pelos burgueses e pela nobreza.
Independência de publicar
Os ideais se alastravam como as chamas num bosque de folhas secas. “Os austríacos pediam às autoridades suíças que evitassem que as tipografias publicassem e dessem crédito às vozes dos conjurados e dos patriotas italianos. Ainda bem que a Suíça sempre zelou pela sua independência de publicar sem ingerência externa”, contou Gianmarco Gaspari.
Desta vez a coletânia destes textos foi “tipografada” por uma editora italiana, a Mursa, com a Fundação do Centenário do Banco da Suíça Italiana. Este ato foi uma espécie de voltas às origens, pois os manuscritos considerados perigosos pela censura deveriam ter sido impressos em solo italiano.
“A proposta inicial era ainda mais articulada, este é o primeiro volume…foram anos de trabalho árduo mas muito interessante, praticamente começamos 1993-94, com a idéia do escritor Giancarlo Vigorelli morto três anos atrás”, afirmou o presidente da Fundação, o advogado Franco Masoni.
Preservação de um patrimônio cultural e histórico
Segundo o curador do volume, o historiador Marino Viganò, senão fossem as tipografias helvéticas, “muitos textos importantes teriam tido maior dificuldade para chegar aos nossos dias.
Muitos vinham dos Países Baixos e da França e eram traduzidos para o italiano em Lugano. Por exemplo, os revolucionários sobre a secularização do clero, o juramento civil do clero, ou os pró-socialistas do belga De Potter. Na época, as publicações eram instrumentos potentíssimos de difusão. E ainda hoje temos que refletir sobre este tema”.
No final do século XVIII e todo o XIX, a efervescência política e os debates culturais ganhavam as páginas dos livros estampados no recém-criado Cantão Ticino, em 1803.
As recaídas do período revolucionário e napoleônico na Europa, o processo de expulsão dos austríacos da Itália – ainda uma colcha de retalhos de reinos e ducados – a unificação dos estados soberanos sob a égide do Piemonte, estavam na ordem do dia. Em muitos casos os cidadãos/leitores sabiam do que ocorria no quintal de casa graças aos livros e aos jornais estampados do outro lado da fronteria e contrabandeados para terra natal.
As tipografias encontraram abrigo e liberdade de expressão sobre o manto da neutralidade suíça. Ela tinha sido garantida oficialmente pelo Congresso da Restauração de Viena, em 1815.
Oito firmas helvéticas estamparam autores como Napoleão Bonaparte, Joachim Lebreton Giusepe Mazzini, Carlo Cattaneo. Como prova da pluralidade intelectual, os tipógrafos não faziam muita distinção entre liberais e conservadores.
Dependendo do vento que soprava ao redor dos Alpes, a Suíça dava abrigo a personagens de todas as matizes políticas. Na maioria das vezes o interesse comercial vinha acima daquele ideológico. O terreno fértil da discussão pública semeava uma rica produção de volumes.
“A produção da tipografia da época foi imensa e foi difícil fazer a seleção. Priorizamos as páginas ideológicas, não sobre os fatos em si pois os já conhecemos, mas sim os pensamentos onde se refletiam sobre as vitórias e os fracassos dos projetos”, disse o curador Marino Viganò para a swissinfo.
Neutralidade e independência
A soberania dos Cantões facilitava a independência dos produtores culturais. Depois de 1848, a Confederação passou a responder diretamente as potências européias.
“A Suíça tinha capacidade de negociação com os potentíssimos vizinhos mas, para não irritá-los, algumas tipografias acabaram sendo fechadas”, explicou o curador. Naquele ano, que marcou o começo das revoluções européias, durante o bloqueio da Lombardia por parte do Império Austríaco e da expulsão dos refugiados do Cantão Ticino, a tipografia de Capolago acabou sucumbindo e abaixou as portas para sempre.
“A Suíça era prudente porque no começo a Santa Aliança (formada em 1815, inicialmente pela Áustria, Prússia e Rússia, para abafar as aspirações nacionalistas), era muito crítica. Mas sendo federalista, muitas coisas passavam.
Quando os embaixadores da Santa Aliança intervinham, os Cantões deveriam seguir as determinações da Confederação, mas de maneira geral, na Suíça havia um pouca censura”, explica o presidente da fundação, advogado Franco Masoni.
Nos momentos mais críticos, para sobreviver, outras tipografias publicavam manuscritos como “falsos”, subterfúgio já utilizado antes na própria Suíça e nos Países Baixos, por exemplo.
“Sobre a Situação Política da Itália”, artigo de 1829, traduzido pelo republicano Pietro Mirri, tinha como autor o italiano Pellegrino Rossi (1787-1848). Ele foi impresso pela tipografia Ruggia de Lugano, mas trazia o timbre de Bruxelas, como se tivesse sido produzido bem longe dali.
As tipografias que ressuscitaram letras agonizantes, quase mortas, e destinadas ao lixo da censura tiveram um papel fundamental na divulgação de informações e na formação da opinião pública.
Obras importantes
Agnelli publicou cerca de 400 títulos entre livros e jornais, Elvetica cerca de 350 , Veladini mais de 200, Tipografia della Svizzera Italiana algumas dezenas, e isso sem falar nas Vanelli, Ruggia, Bianchi e Fiorani. Todas comprometidas com a liberdade de imprensa.
“Revolução Política, Indícios de Revoluções Sociais”, escrito em 1832 pelo belga Louis De Potter (1786-1859), saiu com a tradução em italiano pela Ruggia. Ele é considerado um dos textos mais lúcidos e profundos sobre as revoluções liberais e um manual de como realizá-las e dirigi-las melhor a partir das experiências passadas.
“A Suíça Italiana”, do liberal Stefano Franscini (1796- 1857) joga uma luz no analfabetismo, na pobreza e nas poucas vias de comunicação que eram as mazelas locais do Cantao Ticino. O livro suplica uma modernização urgente e foi “tipografado” pela Ruggia, de Lugano.
“Das Esperanças da Itália”, já escrevia, em 1845, o torinês Cesare Balbo (1798- 1853), ao afirmar que a “Itália não é politicamente bem ordenada”. O texto, tipografado pela Elvetica, era um duro ataque ao Império Austríaco.
Publicações normais de caráter religioso, geográfico, econômico, também faziam parte dos interesses das tipografias. O material considerado “subversivo” representava um percentual pequeno da produção total mas muito importante.
O historiador Armando Torno afirma que o livro “reúne séculos de história e de identidade” e mostra como a Suíça tinha as condições ideais para servir de livre trânsito de idéias. Um passado que faz jus ao presente, sendo a Confederação Helvetica, hoje como ontem, um palco mundial e alto falante para as principais discussões internacionais.
swissinfo, Guilherme Aquino, Milão
A história da tipografia ticinese se confunde com a luta italiana contra a dominação austríaca e pela unificação do reino de Itália. Os manifestos, livros, anúncios e panfletos proibidos em solo italiano eram reproduzidos na Confederação Helvetica.
Volumes franceses e belgas censurados ganhavam tradução italiana nas tipografias suíças. O livro Refomas Revoluções e Ressurgimentos tem 674 páginas. Juntas, elas formam um mosaico de informações , um painel social, político e cultural de uma época de grandes eventos.
As obras editadas na Suíça Italiana, entre o iluminismo e a Unificação da Itália ajudam a compreender a ideologia que permeava as revoluções européias, o período napoleônico e o ressurgimento. A antologia traz textos civis e políticos publicados e contrabandeados para o território italiano através de “portadores” que arriscavam a própria vida em nome da liberdade dos patriotas que repudiavam a dominação do Império Austríaco.
Teses de reformas e de liberdade ganharam vozes, chegaram ate a opinião do povo, incentivaram e apontaram os caminhos a seguir pelos lideres patriotas. Mas não apenas. A independência e a neutralidade da Suíça permitiam a completa liberdade de pensamento e o pluralismo cultural e político.
Liberais e conservadores duelavam através de debates e de livros editados pelas tipografias sem preconceito ou discriminação.
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