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Forasteiro em casa, mestre no exterior: a luta de Jia Zhangke para filmar a China

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Jia Zhangke dando sua master class no festival de cinema Visions du Réel. ©Visions du Réel/Nikita Thevoz

O diretor chinês Jia Zhangke foi um convidado de honra no 55º Festival Internacional de Cinema 'Visions du Réel', realizado em Nyon, na Suíça. Ele conversou com a SWI swissinfo.ch sobre censura, o motivo da popularidade de Hollywood ter caído no mercado chinês e como os cineastas devem lidar com a IA.

Um dia após Jia receber seu prêmio, concedido por ser “uma figura de destaque no cinema chinês independente e no cinema contemporâneo de forma geral”, eu o encontrei no Ambassador Boutique Hotel, onde estava fumando um cigarro calmamente. Quando terminou, o diretor me levou para uma sala silenciosa no subsolo, onde pudemos realizar nossa entrevista.

Jia é o tipo de diretor que fez seu próprio caminho. Seu famoso longa-metragem “Xiao Wu” (Pickpocket, 1997)Link externo, que lhe trouxe fama mundial e ganhou seis prêmios internacionais, foi autofinanciado. O filme foi produzido sem a aprovação do governo e participou de festivais internacionais de cinema sem autorização oficial; na China, Jia foi multado e o filme proibido.

Combinando a compaixão do neorrealismo italiano com o espírito de liberdade e igualdade da Nouvelle Vague francesa, Jia apresentou ao mundo “um verdadeiro manifesto por uma Nouvelle Vague chinesa”Link externo e imediatamente se estabeleceu como uma das principais vozes do cinema asiático.

Em uma conversa com a SWI, Jia comentou sobre sua percepção da indústria cinematográfica chinesa, que difere da ideia de um setor prejudicado pela censura. Através de trocas com cineastas ocidentais, ele está tentando derrubar o “Muro de Berlim” invisível – produto da divisão histórica entre o chamado “mundo livre” e a China, uma nação limitada por estereótipos ocidentais. Como disse a renomada diretora francesa Claire Denis, amiga de longa data de Jia, na cerimônia de premiação, “Jia me ajudou a descobrir uma outra China, mais verdadeira – a dele”.

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SWI swissinfo.ch: Depois da crise da Covid-19, essa é sua primeira viagem ao exterior para participar de um festival internacional de cinema. Que mudanças você notou na indústria cinematográfica internacional?

Jia Zhangke: Há quase quatro anos não tenho nenhuma troca real com cineastas e públicos estrangeiros, mas vejo que a nova geração de cineastas e curadores de festivais trouxe muitas perspectivas novas e exclusivas para o cinema. Por exemplo, as questões relacionadas à transexualidade e ao empoderamento das mulheres estão recebendo muita atenção e são objeto de debates acalorados no setor cinematográfico internacional. Em comparação, os filmes chineses têm dado pouca atenção ao fenômeno de livre arbítrio do grupo transgênero e à falta de consciência feminista na sociedade chinesa.

SWI: Nos últimos anos, os filmes produzidos no Japão e na Coreia do Sul têm sido consistentemente bem-sucedidos em festivais internacionais e na Netflix. Por que diretores de outros países do Leste Asiático têm tido mais sucesso no circuito internacional em comparação com os chineses?

JZ: As políticas de quarentena e controle da China durante a pandemia de Covid-19 resultaram em um “lapso temporal” de quatro anos para os cineastas chineses em termos de contatos internacionais, marketing e distribuição.

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O 77º Festival de Cinema de Cannes, que será realizado em maio, anunciou que o novo filme de Jia, “The Windfall Generation”, foi selecionado para concorrer à Palma de Ouro na competição principal. ©Visions du Réel/Nikita Thevoz

Costumamos dizer que são necessários cinco anos para criar uma geração de cineastas. Embora alguns novos diretores chineses não sejam inferiores aos seus colegas internacionais em termos de domínio da linguagem cinematográfica moderna e de compreensão dos temas sociais locais, eles permaneceram passivos e fechados durante a pandemia. Levará algum tempo para que eles se integrem ao mercado internacional.

Além disso, em comparação com o Japão e a Coreia do Sul, a China tem uma enorme demanda interna por filmes, e muitas obras são totalmente digeridas pelo mercado local. É diferente do que ocorre no Japão e na Coreia do Sul, onde os diretores precisam buscar uma ampla cooperação internacional para ter retorno financeiro.

SWI: Durante a última década, foi noticiado que a China apertou o controle e a censura sobre o conteúdo dos filmes. Você concorda com isso?

JZ: Acho que usar a palavra “apertar” é um pouco simplista e simbólico demais para descrever o dilema enfrentado pelos cineastas chineses. Uma descrição mais precisa seria: às vezes apertando, às vezes relaxando, em um estado de incerteza constante.

As atuais restrições impostas aos cineastas chineses dependem principalmente da opinião pública. Mais especificamente, as atitudes, opiniões e emoções expressas pelo público na internet têm um impacto direto no aumento ou na diminuição da censura sobre os padrões de criação cultural. Com base na opinião pública, o governo chinês pode impedir ou atrasar a exibição de determinados filmes que envolvam questões ou tópicos considerados delicados.

Dois filmes sobre o mesmo tema podem ter destinos muito diferentes, dependendo do momento em que são enviados para análise. Se o momento do envio de um filme coincidir com uma polêmica ou incidente de crise que desencadeie um clamor público, é muito provável que ele não seja aprovado pelas autoridades oficiais.

Fazer concessões é inútil. A maioria dos meus filmes feitos depois de 2004 podem ser lançados na China. Isso não é resultado de concessões, mas de persistência. Como diretor de cinema, preciso pagar um certo preço para manter minha intenção artística original, o que pode significar esperar vários anos para que a opinião pública se acalme e as autoridades relaxem suas objeções.

SWI: Os filmes de Hollywood dominaram os cinemas chineses por mais de duas décadas, mas nos últimos anos eles perderam espaço, incluindo Guardiões da Galáxia 3, Barbie e Oppenheimer. Todos eles fracassaram nas bilheterias. Na sua opinião, por que isso aconteceu?

JZ: Nos últimos anos, Hollywood produziu um grande número de filmes, séries e sequências, com inovação limitada, o que pode facilmente levar o público à fadiga estética. Por outro lado, muitos filmes chineses com temas realistas repercutiram no público local através de formas populares, como a comédia. Já que o público pode encontrar ecos de sua própria realidade nos filmes locais, ele naturalmente abandonará os filmes estrangeiros que estão muito distantes de sua própria vida.

Isso também está relacionado a mudanças no mercado cinematográfico chinês. Antigamente, o tamanho da bilheteria na China dependia das grandes cidades. Atualmente, o mercado cinematográfico chinês depende principalmente das cidades menores, onde os hábitos do público são muito locais. Públicos de diferentes regiões do mesmo país são consideravelmente diferentes em sua aceitação de temas e filmes importados. E não é só na China, o mercado cinematográfico italiano também é assim.

O público das cidades maiores prefere assistir a filmes originais com legendas, enquanto o público das cidades menores prefere versões dubladas. As empresas de marketing de Hollywood devem levar esses fatores em consideração.

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Jia Zhang-ke não é um estranho na Suíça: em 2010, ele recebeu o prêmio Pardo d’Onore do Festival de Cinema de Locarno. KEYSTONE

SWI: No contexto atual da proliferação de canais de mídia pessoal, plataformas de streaming e IA, enquanto um diretor que ainda insiste em fazer documentários e longas-metragens, você acha que ainda há espaço para a produção de filmes tradicionais?

JZ: Acredito profundamente que sim. Porque o cinema é essencialmente uma arte que depende muito da inovação tecnológica para sua autorrenovação estética. O surgimento da televisão na década de 1920 e a subsequente popularização da TV via satélite e dos home theaters foram oportunidades para que a indústria cinematográfica aprimorasse suas técnicas artísticas de expressão.

O mercado de streaming da China já provou que o streaming não pode superar os filmes. Pelo contrário: um filme só atrai espectadores de streaming se tiver uma grande bilheteria. 

Quanto ao “fantasma” emergente da IA, alguns cineastas estão de fato muito nervosos e cautelosos, pois acreditam que ela substituirá o trabalho de um grande número de roteiristas e atores e dará um golpe devastador no modelo de produção tradicional. A greve de seis meses que ocorreu no ano passado na indústria de cinema e televisão de Hollywood foi uma grande reação contra a IA.

Mas também podemos ver que, entre todas as formas de arte, o cinema foi o primeiro a tomar a iniciativa de entender e usar a IA. No ano passado, participei da produção de um curta-metragem sobre IA que reuniu Charlie Chaplin, o diretor chinês Fei Mu e o mestre do neorrealismo italiano Roberto Rossellini para um diálogo em torno da mesma mesa. A partir dessa perspectiva, acho que o futuro da indústria cinematográfica no contexto do uso de IA é promissor.

Edição: Eduardo Simantob & Virginie Mangin
(Adaptação: Clarice Dominguez)

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