Bolsonaro vira o tirano Macbeth em teatro de Zurique

A peça "Before the Sky Falls" (Antes da queda do céu), da dramaturga brasileira Christiane Jatahy, envia uma mensagem inequívoca sobre o papel desempenhado pelos países ricos, notadamente a Suíça, na destruição da Amazônia - e um clamoroso apelo à pressão internacional sobre o governo Bolsonaro.
Foi uma coincidência fatídica. A nova peça de Christiane Jatahy estreou no teatro Schauspielhaus em Zurique no mesmo dia em que o senado brasileiro aprovou o relatório da CPI da Covid sobre o comportamento do presidente brasileiro Jair Bolsonaro na pandemia, pedindo a condenação de dezenas de membros da administração. O próprio presidente é acusado de 9 delitos, incluindo crimes contra a humanidade.
No palco de Zurique, cinco homens brancos de terno e gravata celebram um contrato de 3 bilhões — dólares ou euros — com copiosas quantidades de álcool, insinuando um acordo comercial indefinido que poderia estar relacionado à exploração madeireira, mineração de ouro ou agronegócio.

Shakespeare na selva
O texto é uma adaptação livre de Macbeth de Shakespeare entremeada com trechos do livro “A Queda do Céu” de Davi Kopenawa. O líder indígena Yanomami também esteve presente na estréia, como parte de um extenso programa de sensibilização sobre a situação dos povos indígenas brasileiros junto a instituições européias e nas Nações Unidas em Genebra.
Jatahy também inseriu declarações públicas de Bolsonaro, e frases retiradas de uma reunião ministerialLink externo em 2020 que se tornou viral nas mídias sociais. “Esta não é uma teoria de conspiração, estes são os fatos, mostrados mesmo em um vídeo vazado de uma reunião de gabinete onde o ministro do Meio Ambiente [Ricardo Salles, um notório “inimigo” das florestas e das populações indígenas] pede ao presidente para aproveitar a atenção atraída pelas pandemias para promover a destruição da floresta”, explica ela.
A diretora ressalta que a peça é um manifesto, um grito de socorro à comunidade internacional, para chamar a atenção para a catástrofe geral em curso no Brasil. “Meu trabalho sempre foi político, mas após o impeachment da ex-presidente Dilma Roussef, em 2016, este ato de denúncia tornou-se uma necessidade”, diz Jatahy. “O aspecto político nos afeta como cidadãos, é claro, mas compromete seriamente nosso futuro, e não somente no Brasil. A destruição da Amazônia é uma questão mundial”, acrescenta ela.

Indiferença internacional
Na véspera da COP 26, é surpreendente que praticamente não haja nenhum tipo de pressão internacional significativa sobre o governo Bolsonaro. Sua presidência tem validado níveis recordes de desmatamento, e ele afronta o Código Penal e a Constituição quase diariamente desde que foi eleito (e muitas outras vezes antes disso), impunemente. Os laços de sua família com o crime organizado, milícias, e esquemas de corrupção abundam.
“Bolsonaro, no entanto, é apenas o palhaço. É todo o sistema que precisa ser mudado”, disse Jatahy à SWI swissinfo.ch na véspera da estréia em Zurique. Na verdade, Bolsonaro opera de maneira semelhante a Donald Trump, o ex-presidente dos Estados Unidos: desviando a atenção pública enquanto as cordas são puxadas nos bastidores por diversos grupos de interesse que compõem sua base de apoio.
Tudo isso em um já frágil ambiente democrático. Desde o impeachment de Roussef, entre 6.200 e 13.500 oficiais militares, da ativa e da reserva, ocuparam cargos civis no governo federal e em empresas estatais (os números variam de acordo com as fontes). Quinze dos 17 generaisLink externo que formam o Alto Comando do Exército ocupam cargos-chave na administração.
O “palhaço”, entretanto, está fazendo tudo o que prometeu durante sua campanha presidencial: diluindo os direitos trabalhistas e as aposentadorias, desmantelando todas as instituições culturais e artísticas federais, desconsiderando as minorias, derrubando os controles de armas e desmantelando até mesmo as parcas agências de monitoramento ambiental e de fiscalização, tornando as terras públicas e reservas indígenas presas fáceis para madeireiros, garimpeiros e grileiros.
“É importante nos conscientizar que a pressão internacional é no momento a única esperança de reverter esta dinâmica destrutiva que estamos vivendo agora no Brasil em numerosos aspectos, especialmente na Amazônia – mas não apenas”, diz ela. “Há muitas partes interessadas dentro do país na extração ilegal de madeira e mineração, mas esta cadeia vai muito além das fronteiras”.
Isso certamente explica porque a reação internacional é tão contida. O ouro extraído ilegalmente, por exemplo, está sendo exportado e ‘limpo’ no mundo rico, notadamente na Suíça”, lembra Jatahy.
Censura sem censores
As artes e a cultura são um alvo principal das políticas de Bolsonaro. Ele baseou sua campanha e apelo populista na intensificação das chamadas “guerras culturais”, apostando na radicalização. “Não é só a floresta que está queimando, mas também nossas instituições culturais e a memória do país. E quero dizer literalmente queimando. Desde sua eleição, duas importantes instituições culturais, o Museu Nacional e a Cinemateca Brasileira, foram destruídas pelo fogo”, diz Jatahy.
Neste contexto, juntamente com as pandemias, a classe artística enfrenta um desafio existencial mal comparável ao vivido durante a mais recente ditadura militar (1964-85). “Não há mais necessidade de censura”, diz ela. “Eles simplesmente desmantelam os mecanismos que sustentam a criação artística e cortam todo o financiamento.”
De volta a Zurique, a ligação entre Macbeth e Bolsonaro pode parecer às vezes um pouco rebuscada, mas uma profecia no quarto ato da peça de Shakespeare, muitas vezes repetida em Before the Sky Falls, soa ominosa:
“Macbeth nunca poderá ser vencido,
até a floresta de Birnan a Dunsinane ter subido,
lançando-se contra ele”.(*)
Em outras palavras: o tirano jamais será vencido até que a floresta marche contra ele. Macbeth, por sua vez, faz pouco caso – “Isso nunca ocorrerá”, diz ele. Bolsonaro também desafiou seu destino, dizendo que só deixará o cargo “morto, preso ou vitorioso”; uma frase bem shakespeariana para alguém que se orgulha de seu iletrismo e que certamente jamais leu nenhum shakespeare.
(*): Tradução de Rafael Raffaelli (Editora UFSC)

Nascida no Rio de Janeiro, Christiane Jatahy é artista associada do Odéon-Théâtre de l’Europe (Paris), Schauspielhaus Zürich, Arts Emerson Boston (EUA) e Piccolo Teatro de Milano (Itália). “Before the Sky Falls” é a segunda parte de sua Trilogia do Horror. A primeira, “Entre chien et loup” (Entre cão e lobo, baseada no “Dogville” de Lars von Triers) aborda os mecanismos do fascismo. A terceira parte, “After the Silence” (Depois do silêncio), está sendo produzida no Rio e explora as questões da escravidão e suas conseqüências para o racismo estrutural..

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