Festival de cinema dá voz aos excluídos do Brasil
Questões sociais são a pauta da mostra Cine Brasil Marginal, apresentada em Zurique entre os dias 24 a 26 de março. Seis longas e três curtas mostram assuntos que incomodam, muitas vezes tabus na sociedade, como os presidiários, refugiados, sem tetos e transexuais. Um dos convidados do evento, André Luzzi de Campos, que vem à Suíça falar sobre sistema carcerário no Brasil, foi entrevistado pela swissinfo.ch.
“O projeto de paz que a sociedade brasileira deveria construir não pode ser calcado nos moldes de um sistema carcerário que temos hoje, que exclui, esconde e maltrata aqueles que não queremos. Trata-se de um debate muito sério e envolve o futuro de uma sociedade.”
Esse é o pensamento que irá nortear o discurso do pesquisador e ativista social André Luzzi de Campos, que vem a Zurique para palestrar sobre a crise do sistema carcerário brasileiro. Convidado pela Universidade de Zurique e pelo Coletivo Taoca, o acadêmico se apresenta no dia 25 de março, na Mostra Cine Brasil MarginalLink externo. Mestre em história e ativista em direitos humanos, Luzzi foi Diretor do Centro de Políticas Específicas da Secretaria da Administração Penitenciária de São Paulo e atua como executivo na Secretaria da Administração Penitenciária (SAP).
swissinfo.ch: O ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, por ocasião das rebeliões em presídios acontecidas no início desse ano, disse na imprensa que a solução para a crise carcerária no Brasil passa pela promoção de mutirões judiciais nos presídios para julgar os detentos em regime provisório, que seriam 32% do total de presos, ajudando a desinflar o número de pessoas encarceradas; e a descriminalização do uso de drogas. O senhor concorda com essa receita?
André Luzzi: A minha experiência no sistema carcerário me mostra que as soluções são muito mais complexas que somente esses dois caminhos apontados. Não pode ser resolvido no debate do calor do momento, com soluções imediatistas. Os problemas que tivemos nos últimos meses em diversos presídios brasileiros são apenas os mais recentes, dos muitos outros que virão se nada for mudado.
É importante que a sociedade pense junto sobre qual o projeto que ela quer para o nosso país. Seria um programa de não violência ou a continuidade de um programa de prisão que simplesmente segrega? Historicamente, o encarceramento em massa responde aos anseios de grande parcela da população que prefere ignorar o que não se encaixa e prefere pôr à margem representantes de grupos como presidiários, pobres, negros, homossexuais etc.
É sabido também que a polícia tem aumentado a atuação contra grupos de usuários de drogas, principalmente em espaços públicos onde ocorre o consumo de substâncias que ficaram conhecidas no Brasil como “cracolândias”, para evitar aglomeração e como resposta a segmentos da sociedade e da opinião pública, que cobram mais ação das forças de segurança. Mas são exatamente medidas como essas que têm aumentado enormemente a população carcerária – ainda com presos que necessitam cuidados em saúde, que passam por abstinência da droga.
swissinfo.ch: Mas o que seria necessário para reduzir essa superpopulação dos presídios então?
A.L.: É preciso incluir nesse debate a interpretação que é dada à legislação muitas vezes de forma seletiva. E, ainda, a formação dos operadores do direito, que são os defensores públicos, juízes, advogados, que muitas vezes assumem posições muito conservadoras. Dessa maneira, não é suficiente só resolver as questões de forma rápida para não aumentar o número de pessoas nos já populosos presídios, mas agir na aplicação correta da lei, e não de forma tendenciosa. E, além disso, pensar em formas alternativas de sanções que não seja a privação de liberdade.
Infelizmente a interpretação da lei no Brasil é muito subjetiva. Por exemplo, a mulher do ex-governador Sergio Cabral, Luciana Anselmo, foi solta e liberada para cumprir pena domiciliar por ser mãe. Esse dispositivo, que é oriundo do Marco Legal da Primeira Infância do Brasil e diplomas internacionais como a Regras de Bangkok da ONU, e que protege mães detentas, deveria ser válida para todas, e não somente a quem possa pagar advogados caros.
Dados mostram que 40 % das pessoas privadas de liberdade no Brasil ainda aguardam julgamento. Isso é muito grave, porque esses detentos acabam ficando por um longo período em cadeias públicas ou em centros de detenção provisória, onde o atendimento é precário. E pior, pondo inocentes ou atores de crimes de menor potencial ofensivo em contato com outros que têm uma fluência na vida criminal.
Dessa forma, é imprescindível se pensar em outros mecanismos de sansões e um adequado acesso à justiça para todos. Eu acredito em mediação de conflitos, que inclua principalmente a comunidade, a vítima e o agressor, numa tentativa de busca de conciliação, de análise das sequelas e possíveis reparações sob o olhar daquele grupo.
swissinfo.ch: O que o Senhor exatamente irá apresentar na Universidade de Zurique?
A.L.: Eu vou focar exatamente na necessidade da participação social como um todo no sistema de justiça e penitenciário, em vez de simplesmente encarcerar o indivíduo. Eu vou trazer a importância do olhar da sociedade civil participativa e organizada, discutindo maneiras diferenciadas do tratamento de um erro ou crime de formas menos traumáticas, como por exemplo a prestação de serviço à comunidade ou até a sanção pecuniária, por exemplo.
Eu gostaria de explicitar a importância da Justiça Restaurativa, onde os conflitos possam ser mediados sob a forma de não perpetuação do ciclo de violência. Então, é importante que a população se convença de que defender uma cultura da paz significa abraçar programas que fortaleçam a sociedade na criação de segurança humana, com mais igualdade e garantia de direitos. O Brasil tem hoje um índice de 12% de desemprego; mas entre a população de 18 a 24 anos, este índice chega a 25%. Pois é exatamente o segmento mais vulnerável às prisões – 55% da população prisional é formada por jovens (18 a 29 anos). É urgente alterar o curso desta história.
Um segundo ponto a ser destacado passa pela necessidade, em caso de privação de liberdade, da criação de métodos eficazes para a reintegração social e não simplesmente enjaular seres humanos em condições sub-humanas. É necessário cuidar para que os vínculos com as famílias dos presos sejam mantidos e consolidados, contribuindo para a construção de novos projetos de vida e o fortalecimento de redes sociais comunitárias. As prisões estão muito distantes das famílias, não propiciando visitas muitas vezes.
Será abordado também a necessidade de assistência psicossocial adequada. Essa população, que vive em um ambiente hostil, precisa de profissionais qualificados e em quantidade suficiente para atendimentos humanizados visando aumentar seu repertório de possibilidades, para compreender-se como sujeito de direitos e deveres. Outra questão é a colocação do conceito do trabalho como um direito humano, pois muitas vezes é tido como uma ocupação do tempo livre e domesticação dos corpos, mas deveria ser abordado como forma de atuar e sentir-se pertencente à sociedade, de transformação de uma matéria prima ou de um recurso em bens e serviços, totalmente ligado ao desenvolvimento pessoal e coletivo.
Outro ponto que trarei é sobre a importância de se promover a diversidade dentro dos presídios e tratá-la como deve ser, com políticas promotoras da equidade e respeito às necessidades específicas. Os grupos de mulheres, idosos, jovens, lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, deficientes físicos, estrangeiros precisam ser atendidos de forma diferenciada. Por exemplo, a sentenciada que é gestante ou mãe não deveria ser apartada de seus filhos e família, as pessoas transexuais podem manter sua identidade de gênero com a utilização de prenome social, utilização de roupas íntimas e receber assistência integral no processo transexualizador. Os espaços precisam ser acessíveis. Na prática, é assegurar a dignidade humana das pessoas sob custódia do Estado e combater qualquer forma de discriminação ou violência, notadamente aquela de caráter institucional.
Cine Brasil Marginal
O Coletivo TaocaLink externo e o Centro Latino-americano da Universidade de Zurique promovem o Cine Brasil Marginal, que traz para a Suíça, entre os dias 24 a 26 de março, filmes que colocam sobre o palco temas e personagens a margen da sociedade. Seis longas e três curtas mostram assuntos que incomodam, muitas vezes são tabus na sociedade brasileira, como os presidiários, refugiados, sem tetos e transexuais. Os filmes são produzidos por diretores, artistas, movimentos sociais e de direitos humanos brasileiros
Entre os longas apresentados, destaque para o Era o Hotel Cambridge, que recebeu uma menção especial do júri internacional, no Festival de Filmes de Direitos Humanos em Genebra, no último dia 19. O longa de Eliane Caffé narra a trajetória de um grupo de refugiados recém-chegados ao Brasil, que se unem aos sem teto e dividem a ocupação em um edifício no centro de São Paulo, onde dramas e diferentes visões de mundo se encontram.
De acordo com duas das organizadoras do evento, Thais Aguiar e Fabiana Kuriki, o Cine Brasil Marginal foi pensado com o objetivo de valorizar quem é diariamente invisível no cotidiano das cidades ou deixado às margens em nossa sociedade. “Queríamos trazer produções diferenciadas, de diretores sensíveis a uma abordagem mais humana que usam a arte do cinema para provocar, ao menos, uma reflexão em cada espectador”, afirmam.
O Cine Brasil Marginal acontece nos dias 24 a 26 de março, no Photobastei, Sihlquai, 125 – 8005 Zurique. A entrada é gratuita, com coleta voluntária. Todos os filmes são falados em português, com legendas em inglês.
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