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Budista defendeu refundação moral em Davos

A corrida pela felicidade egoísta leva a situações em que todo mundo perde, estima Matthieu Ricard. World Economic Forum

Uma das palavras de ordem no Fórum de Davos foi a refundação moral.

O francês Matthieu Ricard, pesquisador em neurociência e monge budista, defende uma felicidade altruísta, oposta à felicidade egoísta em que todos perdem.

Com a crise que destrói as certezas, falou-se muito em Davos este ano de fundamentos morais e de ética. Intérprete francófono do Dalaï-Lama, monge budista, autor e pesquisador, Matthieu Ricard tem sua idéia sobre essas questões.

Swissinfo: Por que você esteve em Davos?

Matthieu Ricard: Foi a segunda vez que participei. Não viria se não tivessem me solicitado a intervir. É bom ter voz. Frequentemente as pessoas protestam e não tem voz para dialogar. Poderia ficar do lado de fora com umas bexigas protestando com os movimentos altermundialistas. Mas como posso me exprimir como quero? Fiquei contente de poder trocar idéias.

Hesitei em vir porque estava em retiro na montanha. Mas tenho vários projetos humanitários. Fundei uma associação que cuida de duas mil crianças e dá cem mil tratamentos médicos por ano na região do Himalaia. E Davos é um bom lugar para encontrar apoio a esses projetos.

Sua palestra foi sobre o cérebro, não?

Tenho várias facetas. Uma é estar envolvido em pesquisas de neurociências, sobre os efeitos a curto e longo prazo do treinamento do espírito. É por isso que convidaram para o Fórum.

Faz dez anos em universidades estadunidenses, mas também em Zurique com Tânia Singer, que participo de estudos com pessoas que fizeram entre 10 mil e 50 mil horas de meditação. Esses trabalhos envolvem a atenção focalizada, a compaixão, o altruísmo, o equilíbrio emocional. O que muda no cérebro dessas pessoas, na psicologia, sua maneira de ser? E o que muda se fizermos 30 minutos de meditação durante três meses?

Os dois tipos de estudos revelaram diferenças significativas. A mais interessante para o cidadão comum: depois de três meses de meditação, observa-se um reforço do sistema imunitário, uma alta de 20 a 30% de anticorpos, um aumento das células tronco no sangue e mudanças de atitude – mais altruísmo, menos tendência à cólera, à depressão.

Em Davos, participei também de um debate sobre a felicidade nacional bruta, que defendo. A meu ver, a satisfação de vida não é um subproduto do desenvolvimento, ela não vem por milagre. Vimos – é muito claro com a crise – que um desenvolvimento selvagem fundado no individualismo não traz um aumento da satisfação de vida. É preciso uma direção e investimentos que visem especificamente aumentar a satisfação e os critérios de satisfação.

Como o sr. vê a atual crise?

Como vamos perder tudo, melhor gastar imediatamente, me disse um amigo. Para outro, como vamos perder tudo, melhor dar. Isso me lembra uma fórmula do padre Serac, que cuidou de 50 mil crianças no sul da Índia durante 50 anos. Ele dizia: o que não é dado é perdido. Ao invés de reduzir os programas humanitários e caritativos, é preciso aumentá-los. É agora ou nunca.

Dito isto, creio que a crise revela e reflete o fracasso da idéia do consumo desenfreado, essa idéia de individualismo centrado na avidez do ganho.

Para obter uma bonificação, é preciso performances extraordinárias que levam a correr riscos – uma visão puramente individualista, egocêntrica, ultrapassada. Essa prática também está em contradição com a realidade porque somos todos interdependentes.

Fazemos parte da grande família humana, de um ambiente é nosso planeta. Negligenciar isso e manter essa visão extremamente estreita do ganho nos leva ao fracasso. Os resultados estão aí. Muitos alertaram, mas enquanto as coisas corriam bem, ninguém queria se privar desse eldorado.

Em Davos de Davos todos discutiam como sair da crise. O sr. tem uma idéia?

Conheço economistas que trabalham com a noção de duplo
«bottom line» [resultatado financeiro líquido], que leva em conta o lucro e também as qualidades humanas e o comércio justo (conseqüências sociais das atividades econômicas). Eu defendo o triplo «bottom line», que inclui o meio ambiente. E numa escala de tempo diferente.

Para a economia, é imediatamente. Os mercados financeiros sobem e descem na hora. A qualidade humana requer mais tempo. Alguns anos, uma geração, uma carreira, uma família, uma vida. Para o meio ambiente, as mudanças ocorrem em 50 ou 100 anos.

Como conciliar essas escalas de tempo? A meu ver, a única solução é uma perspectiva altruísta. Todo mundo ganharia: as gerações futuras com o meio ambiente, a geração presente, no longo prazo, com qualidade de vida e porque não a prosperidade.

Com uma felicidade altruísta, todo mundo ganha. A busca desenfreada da felicidade egoísta leva a situações em que todo mundo perde. Um pouco de perspicácia, de julgamento e de bom senso permitem ver que estamos no mesmo barco e que ninguém tem interesse em ser franco atirador.

Em 2010, em Zurique, vamos organizar um seminário com o Dalaï-Lama, Muhammad Yunus (Prêmio Nobel da Paz 2006), Amartya Sen (Nobel de Economia 1998) e outros economistas. Questão: o altruísmo é compatível com modelos econômicos? A resposta é sim. Mas é preciso uma outra visão diferente da de Milton Friedmann, que defende a economia voltada para os acionistas ganharem dinheiro.

Resolver a crise é voltar o mais rápido possível ao que era antes do individualismo e da avidez do ganho. Como dizia Gandhi, há o suficiente para as necessidades de todos, mas não o suficiente para avidez de todos. Será que essa crise vai permitir mudar nossa visão das coisas?

O sr. diz que o budismo não é uma religião mas uma espiritualidade. A crise não vai provocar conflitos religiosos?

Claro que sim. Quando as religiões servem de bandeira para aumentar as divisões, é lamentável, catastrófico. Provoca banhos de sangue, vemos isso todos os dias.

Um dos objetivos do Dalaï-Lama é promover uma ética secular e a harmonia entre religiões. Contribuir para os sofrimentos e as divisões e não a apagá-las, é um fracasso das religiões.

Vamos dividir nossas terras, nossos recursos: as religiões deveriam inspirar esse movimento. É responsabilidade delas e um profundo assunto de reflexão para os chefes religiosos.

swissinfo, Pierre-François Besson

Início:Nasceu em 1946, filho do intelectual francês Jean-François Revel. Defendeu tese em genética celular no Istituto Pasteur.

Himalaia: Desde 1972, muda para a região do Himalaia, onde vive até hoje. Tornou-se monge budista em 1979 e é interprete em francês do Dalaï-Lama desde 1989.

Atividade: Autor de vários livros, entre eles “O monge e o filósofo”, escrito com seu pai e traduzido em 20 línguas. Traduziz lîvros do tibetano para o francês. Tem projetos humanitários no Tibete, no Nepal e na índia e participa de trabalhos de pesquisa científica.

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