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Festival exibe filmes que não são mais possíveis no Brasil

Homem com criança no colo assiste desfile militar
Cena de "Marighella", de Wagner Moura. Baseado na biografia de Mário Magalhães, o filme foca nos últimos anos do ativista, quando decidiu abraçar a luta armada contra o regime militar. Divulgação

Foram apenas três dias e cinco filmes, dois deles ainda inéditos  – mas o suficiente para agitar o espaço cultural Photobastei em Zurique com debates, e encher o cinema da escola de artes de Zurique (ZhDK) com uma sessão do tão aguardado “Marighella”, primeiro longa dirigido por Wagner Moura, ator de “Tropa de Elite”e da série “Narcos”.

O cinema brasileiro encontra-se em um momento de alta exposição internacional, unindo a maturidade técnica ao tratamento crítico de temas urgentes da conjuntura atual.

Os brasileiros estão em Cannes, em Berlim, em Locarno, no Oscar, e seus realizadores aproveitam os holofotes para chamar a atenção internacional para o desmonte paulatino das instituições democráticas no país. Segundo Andrea Barata Ribeiro, produtora de “Marighella”, biografia do ativista comunista que partiu para a luta armada durante a ditadura militar (1964-85), “esse sucesso se deve a política de mais de 20 anos de apoio ao cinema brasileiro. Por isso temos filmes tão potentes hoje. E como existe uma ameaça à democracia, a tendência é que os filmes combativos apareçam com mais força”.

Nos festivais, entretanto, os cineastas também enfatizam o desmonte da indústria do audiovisual que vinha crescendo consistentemente desde a virada do século.

“O mercado [audiovisual] estava bombando até recentemente, a TV a cabo bombando, todo mundo fazendo coisa, e agora as produtoras estão fechando”, diz Estevão Ciavatta, diretor do documentário “Amazônia S/A”, também inédito (estreia prevista para julho/agosto no Brasil).

A indústria audiovisual em xeque

“Mas é claro”, diz Ciavatta, “afinal o nosso ofício é a contestação, a crítica, o olhar sobre o que a mídia, o governo e as pessoas não veem ou não querem ver, assim como colocar princípios em xeque, mostrar outras soluções para problemas. Mas no governo atual eles não gostam muito disso. Não gostam da gente nem da mídia nem da ciência”, emenda ele.

No último festival de Locarno, a diretora Maya Da-Rin de “A Febre “, que levou o Leopardo de Ouro de melhor ator, lamentou que “esse tipo de filme (tocando na questão indígena – e o filme é quase todo falado na língua tukano) tem hoje muito pouca chance de ser feito no Brasil atual.” Afinal, o governo Bolsonaro tem constantemente lembrado que certos temas deverão ser prioridade na escolha dos projetos passíveis de levantar financiamento privado por meio de leis de incentivo.

O Cine Brasil Marginal é uma iniciativa do Coletivo TaocaLink externo, um grupo que conta atualmente com 5 integrantes fixos, ativos na academia, rádio, e artes. O primeiro festival foi realizado em 2017 e, mesmo tendo se firmado na programação cultural de Zurique, ainda depende de esforço voluntário e contribuições.

A produtora de “Marighella”, Andrea Barata Ribeiro, concorda. “Não acredito que seria possível um filme como ‘Marighella’ ter apoio hoje em dia. O que vemos por aqui é que a Ancine está de mãos atadas desde que Bolsonaro foi eleito. O governo cogitou até colocar filtro para os novos filmes.”

Andrea, que é diretora executiva da O2 Filmes em São Paulo, desmente porém boatos de que o cancelamento da estreia de “Marighella” nos cinemas em novembro passado foi por conta de censura, boicote ou medo de distribuidoras e salas de cinema. “A produtora adiou o lançamento porque ‘Marighellla’ recebeu apoio do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) e não havia tempo hábil para cumprir algumas etapas exigidas pelo Fundo”, explicou ela. O lançamento no Brasil acaba inclusive de ser anunciado para 14 de maio, e o filme depois segue para o exterior.

Burocracias à parte, o cerceamento da produção audiovisual opera de maneira mais sutil e abrangente que outrora. “O que estamos presenciando é um desmonte da cultura no Brasil”, diz Ribeiro. “Isso pode ser feito de diversas formas. Uma é burocratizando a máquina ou desarticulando as agências como foi feito com a Ancine. Sim, eu acho que estamos vivendo um retrocesso e uma censura velada. A grita é genuína.”

Ditadura, escravidão e Amazônia

Os cinco filmes exibidos este ano abordam temas cujas feridas não cicatrizam com o tempo – na verdade, parecem mais gangrenas. A ditadura militar terminou há 35 anos com um pacto nacional cujo maior legado foi não ter deixado legado nenhum. Essa história não foi devidamente tratada pela sociedade civil e pela Justiça como no Chile, Uruguai ou Argentina, e só mais recentemente começa a ser revisitada de maneira objetiva. 

O “mito” de Marighella é um bom exemplo – sua primeira biografia, trabalho esmerado do jornalista Mario Magalhães sobre a qual o filme se baseou, só apareceu quase 40 anos depois da morte de uma personalidade que foi não só ativista, mas também escritor, poeta, político, parlamentar, e que acabou fichado na história oficial como “terrorista”. 

O documentário “Pastor Claudio”, também exibido na mostra, é um depoimento franco e brutal de um algoz da ditadura que fazia “desaparecer” presos políticos, contado sem qualquer sombra de arrependimento. Por que demorou tanto para que finalmente pudéssemos encarar as responsabilidades e desesperos daquela época? E como será daqui em diante, considerando que as condições para esse tipo de questionamento encontram-se cada vez mais cerceadas?

O diretor de Amazônia S/A Estevão Ciavatta
O diretor de “Amazônia S/A” Estevão Ciavatta durante as filmagens em madeireira na região do rio Tapajós. “Meu trabalho não é de acusação. Eu faço o ponto de vista das árvores, ou seja, de quem chegou antes da gente e vai embora depois, oferecendo uma visão histórica, de contexto. Não gosto de panfletar.” Pindorama Filmes

A Amazônia, por outro lado, é um passado mal conhecido, um presente violento, e um futuro destinado à destruição. Estevão Ciavatta, com seu “Amazônia S/A”, acompanha a comunidade Munduruku no alto Tapajós, lutando pelo reconhecimento de suas terras, espremida entre grileiros, madeireiros (e seus jagunços), e um projeto de usina hidrelétrica que ameça inundar boa parte de sua reserva.   

O projeto era originalmente uma série de dez reportagens de cinco minutos cada para o programa Fantástico da TV Globo. “Estreamos em março de 2015, com Dilma recém eleita”, conta Ciavatta. “Era para movimentar o assunto e chamar a atenção do próprio governo Dilma para os erros que estavam fazendo na Amazônia, como hidrelétricas e políticas pouco efetivas relativas à sustentabilidade. Mas calhou com a estreia da Operação Lavajato, e a série foi atropelada pela atenção dada à operação anticorrupção. Aí partimos para outro formato.”

Ciavatta filmou a região em diversos momentos: 2014, 2016 e 2019. “Cobrimos os governos Dilma, Temer, e Bolsonaro”, diz. Obviamente, essa história não tem final. Mas como está a situação dos Mundurukus agora?

“Muito pior, né? As forças ilegais estão empoderadas. Na medida que o governo enfraqueceu as forças legais, como o IBAMA, INPE, ICMBIO, os invasores trabalham muito mais à vontade, e os defensores, os ribeirinhos, que são quem mora na floresta e dá a cara para defendê-la, estão totalmente desautorizados e enfraquecidos. E este ano deve ainda piorar mais.” Ciavatta não descarta a possibilidade de ter de fazer um segundo episódio de Amazonia S/A.

“Gilda Brasileiro”, por sua vez, é a história mal contada da escravidão sendo desencavada numa pesquisa realizada pela mulher que dá nome ao título, filha de pai afrodescendente e mãe judia-alemã. Ao exumar a história de uma estrada clandestina, usada por traficantes de escravos no século 19, ela encontra documentos importantes de um período que marcou o tráfico de um milhão de seres humanos do continente africano para o Brasil.

Na sua cidade natal, ninguém deseja vasculhar o passado e, em busca dos fatos, ela acaba confrontando descendentes de fazendeiros e comerciantes de escravos por meio de suas próprias histórias. 

Voilà mais uma história que também não tem final, mas um presente ainda marcado por violência e preconceito. Há ainda muito trabalho a ser feito. 

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