Como atravessar a fronteira entre a Coreia do Sul e a Coreia do Norte? Pela Suíça!
Uma exposição de arte que une produções sul e norte-coreanas reunidas pelo colecionador suíço Uli Sigg está sendo exibida no Kunstmuseum Bern (KMB). Em paralelo, um documentário feito na Coreia do Norte está em cartaz no Museu Alpino Suíço a apenas alguns quarteirões de distância. O realismo socialista da Coreia do Norte é a estrela do show.
A guerra da Coreia (1950-1953) nunca terminou formalmente. Depois que um acordo foi assinado, a Coreia do Sul e a Coreia do Norte foram divididas ao longo do paralelo 38°. Agora, 70 anos depois, os dois países que antes compartilhavam a mesma língua e tradições – e um passado comum como colônia do Japão – desenvolveram-se em mundos radicalmente opostos e diferentes. A Coreia do Sul é hoje uma das sociedades mais digitalizadas e globalizadas, enquanto a Coreia do Norte (RPDC) é indiscutivelmente o país mais fechado do planeta.
O título da nova exposição, “Atravessando FronteirasLink externo”, é uma alusão ao fato de que a fronteira entre as Coreias é uma zona proibida para cidadãos de ambos os lados. Para cruzar essa fronteira é necessário fazer um longo desvio, geralmente via China – ou, neste caso, via Berna.
Kathleen Bühler, curadora-chefe do museu de belas artes de Berna, explica que a coleção de Uli Sigg e o filme exibido ao mesmo tempo foram uma coincidência. “Foi pura sorte. O Museu AlpinoLink externo queria exibi-lo há um ano, mas tiveram que adiar por causa da pandemia”, diz ela.
“Este é um contexto perfeito para nós porque no filme podemos ver as pessoas em suas rotinas simples, como passam os dias de verão no parque e como vivem suas vidas de forma não muito diferente de nós – inclusive, vemos que também têm dispositivos móveis, como telefones. “
A participação da Suíça na história recente das Coreias é uma dessas curiosas reviravoltas do destino. Quando o acordo foi assinado entre os dois países, oficiais militares de quatro nações neutras participaram da supervisão da zona desmilitarizada (DMZ) que dividia a fronteira. Polônia e Tchecoslováquia fizeram a fiscalização do lado comunista, Suíça e Suécia do outro. Os suíços estão agora sozinhos na zona – a nação alpina é o único país do mundo reconhecido como neutro pela Coreia do Norte. O atual líder, Kim Jong-un, passou seus anos escolares em Berna.
O colecionador Uli Sigg é o outro ponto de conexão entre a Coreia do Norte e a Suíça.
Sigg trabalhou na China como executivo da empresa de elevadores Schindler, entre o final dos anos 1970 até 1995. Ele vivenciou a expansão da cena de arte contemporânea chinesa quando o país de Deng Xiaoping começou a quebrar seu isolamento internacional.
Foi nessa época e mais tarde na década de 1990 que, como embaixador suíço na China, Mongólia e Coreia do Norte, Sigg começou a reunir o que hoje é a coleção privada mais abrangente de arte chinesa do mundo. As compras de arte de Sigg foram, sem dúvida, um dos principais impulsos para o crescimento de artistas que agora são figurinhas carimbadas no circuito global, como Ai Weiwei, Fang Lijun e Xu Bing. Atualmente, a coleção de Sigg inclui obras de mais de 350 artistas contemporâneos chineses.
Já a coleção coreana de Sigg surgiu no final dos anos 2000. E não é tão abrangente quanto seu acervo chinês, como ele explica: “Eu não queria assumir esse papel na Coreia do Sul; você só pode fazer isso uma vez na vida”.
Além da estética
A mostra “Atravessando Fronteiras” também foi possível porque as obras de arte de Sigg não precisaram ser enviadas para Berna – elas ficam armazenadas em um castelo suíço pertencente ao colecionador. Considerando que foi Sigg quem escolheu as obras a serem expostas, levantou-se a questão da independência do Kunstmuseum enquanto uma instituição pública.
Numa apresentação virtual da exposição no dia 28 de abril, Sigg, falando de Hong KongLink externo, explicou que o princípio norteador de sua coleção coreana não era a estética. “Não é uma questão de gosto para mim. Reuni principalmente trabalhos que tratam do tema da divisão”, diz.
Isso se aplica claramente às obras sul-coreanas, que fornecem um contraponto globalizado à produção artística norte-coreana isolada, concentrada em dois centros de produção coletiva: o Mansudae Art Studio e a Korea Paekho Trading Corporation. Ambos operam em uma base colaborativa em que a autoria individual é rara. Mesmo as pinturas adquiridas por Sigg são cópias autorizadas pintadas pelo mesmo coletivo que fez os originais, que não saem do país.
A arte de ‘Chosonhwa’
Esses impressionantes e imensos quadros seguem um método chamado Chosonhwa, que é uma técnica de pintura tradicional com jatos de tinta sobre papel de arroz, desenvolvida na Coreia do Norte desde 1948. Suas principais características são o uso vibrante de cores, renderização tridimensional e pinceladas expressionistas aplicadas nas pinturas de figuras. A extrema emocionalidade retratada nessas obras pode parecer bastante kitsch aos olhos ocidentais, mas é preciso lembrar do papel que a arte desempenha não apenas na Coreia, mas em toda a região.
Bühler, curadora-chefe, diz que quanto mais fundo ela mergulha nos formatos diametralmente opostos dos dois países, mais se questiona sobre os pressupostos ocidentais e eurocêntricos sobre a arte. “Eu entendi algo sobre pessoas como Uli Sigg, pois percebi que um dos impulsos para se colecionar arte asiática é porque na arte ocidental nós nos livramos das emoções. Nós nos livramos da narrativa e do realismo e também da qualidade expressiva de imagens fortes e atmosféricas que ainda encontramos nas tradições asiáticas”, disse ela.
Mas a tradição também é uma influência importante na arte sul-coreana, não importa o quão globalizado o país seja. Parte do interesse de Sigg está no movimento Dansaekhwa, que surgiu na década de 1970, no país. O movimento tem uma ligação muito forte com as correntes da arte francesa, como a Arte InformalLink externo – Informalismo – e com o Expressionismo AbstratoLink externo dos Estados Unidos. Mas, embora esta tenha sido a primeira onda de arte sul-coreana globalizada, essa arte ainda estava intimamente ligada às formas tradicionais, notadamente à caligrafia.
No caso da arte norte-coreana, ela pode ser vista como “pré-moderna”, embora o Modernismo, em seu sentido ocidental, não faça parte do diálogo do Norte. Esta expressão artística vinda do Realismo SocialistaLink externo é um desenvolvimento da escola soviética. Mas Bühler diz que a sutil ambivalência que os artistas soviéticos tentaram incluir em suas obras, seja como uma forma velada de crítica ao regime ou como uma forma de colocar sua própria marca nas obras, é inexistente na Coreia do Norte.
Socialismo, confucionismo e melodrama
O crítico coreano-americano B.G.Muhn, em ensaio escrito originalmente para a Bienal de Gwangju (Coreia do Sul) em 2018 – a única ocasião até agora em que a arte das duas Coreias foram exibidas juntas – explica a influência do que chamamos de melodrama e do confucionismo, em Chosonhwa. Ele escreveu: “A glorificação ostensiva da vida cotidiana das pessoas é em parte um reflexo da política, mas também revela a complexidade mais profunda da norma filosófica da sociedade. Os ideais ainda prevalecentes do confucionismo ditam o desejo de manter o decoro, o respeito e a dignidade em todas as situações. A presença do confucionismo na cultura contemporânea é uma grande fonte da ironia que torna a arte norte-coreana um mistério dentro do contexto da propaganda”.
A propaganda como ferramenta política nos estados socialistas não é muito diferente de como a propaganda funciona nas sociedades capitalistas. Bühler sugere que devemos nos colocar no lugar dos norte-coreanos. Ela diz: “Imagine o impacto [dessas imagens] para os que nasceram lá naquela época e não tinham nada mais do que isso”. Ela diz que essas expressões artísticas fazem parte da herança cultural, da identidade e daquilo em que acreditam. “As pinturas podem ser muito persuasivas”, acrescenta.
“Você também deve ter em mente que muitas pessoas eram analfabetas”, diz Bühler. “Esta é uma pintura para pessoas que não sabem ler. Era sua única fonte de informação ou acesso a alguma realidade espiritual ou verdade espiritual e isso continua com a tradição do Realismo Socialista. Pense nas igrejas católicas, por exemplo. Não eram também um meio de transmitir uma certa verdade?”
Sem uma religião, a Coreia do Norte é definida por uma ideologia fundamental chamada Juche, comumente traduzida como ‘autossuficiência’, mas melhor compreendida, de acordo com Muhn, “como ser sujeito ou senhor do próprio destino”. A ideia Juche também pode ser vista como uma forma ideológica de encobrir autoritarismo, abusos de direitos humanos e outras repressões.
“Não subestimo o poder destrutivo da estrutura da propaganda”, diz Bühler. “Mas acho que exposições como essa são sempre uma ótima maneira de refletir sobre o espaço em que vivemos e o espaço em que outras pessoas estão vivendo agora, de ângulos muito diferentes e sem preconceito ou parcialidade”.
Let’s Talk about Mountains, uma abordagem cinematográfica da Coreia do Norte no Museu Alpino Suíço pode ser vista até 3 de julho.
Border Crossings no Kustmuseum Bern acontece até 5 de setembro.
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Um suíço nas Coreias
Adaptação: Clarissa Levy
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