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Dorothee Elmiger: “Escrever é como o gesto de uma criança”

Dorothee Elmiger em seu habitat
A autora Dorothee Elmiger em seu habitat, na periferia de Zurique.

Com seus livros que questionam os hábitos de leitura, Dorothee Elmiger é a autora mais promissora no cenário cultural de língua alemã. E agora, pela terceira vez, ela concorre ao Schweizer Buchpreis, o principal prêmio literário da Suíça. 

Foi uma feliz coincidência: no mesmo dia do lançamento de seu mais recente livro, Dorothee Elmiger foi informada de sua indicação para os Prêmios do Livro da Alemanha e da Suíça, os dois prêmios literários mais importantes do mundo de língua alemã. Quando seu editor lhe contou a novidade na vernissage em Zurique, ela inicialmente ficou um pouco triste, e disse: “Escrever é como o gesto de uma criança que escava através da lama, encontra uma pedra e fica feliz em mostrá-la, olhar para ela e falar sobre ela com os outros”. Mas no mundo literário, os livros são rapidamente vistos à luz dos prêmios literários: “Eles são colocados em competição uns com os outros, em vez de serem questionados ou entender o que têm em comum”.

Em sua série “Os mundos literários suíços” para swissinfo.ch, a crítica de língua alemã Anne-Sophie Scholl encontra as principais figuras da literatura suíça contemporânea. Primeira entrevista: Arno Camenisch (em francês, alemão e italiano).

Os dois primeiros livros de Dorothée Elmiger, Einladung an die Waghalsigen em 2010 e Schlafgänger em 2014 (publicado em francês sob o título La société des abeilles), já haviam sido indicados para o Prêmio do Livro Suíço e ganharam outros prêmios importantes. Entretanto, desde então, ela considerou desistir de escrever várias vezes. Felizmente, ela não o fez. E é claro que ela está encantada com estas novas nomeações, especialmente porque elas chamam a atenção para livros como o dela. Sua obra mais recente, “Aus der Zuckerfabrik” (Da fábrica de açúcar) desafia os hábitos literários. Como todos os seus livros anteriores, não tem enredo ou história real. Enquanto a editora ainda apresentava os textos anteriores como romances, o gênero deste não é especificado. Será um ensaio, ou em outras palavras, uma “tentativa de colocar as coisas em ordem”, como diz o texto? Ou um romance? Ou um compêndio de notas? Ou é um relato investigativo? O livro certamente tem alguns aspectos ficcionais. Mas também se trata da exploração artística de uma pesquisa.

Relatório artístico de uma pesquisa

O texto é baseado em uma cena de um documentário dos anos 80 sobre o primeiro suíço a se tornar milionário num jogo de loteria, Werner Bruni, um artesão da Oberland Bernesa que havia ganho a fortuna de 1,7 milhões de francos e rapidamente a perdeu. Ele mostra o leilão de seus bens que se seguiu à falência pessoal. Bruni não se encontra lá, mas a sala está cheia e a população local está observando como algumas garrafas de vinho, uma espingarda e duas esculturas de mulheres em madeira preta e pedra, provavelmente do Haiti, são colocadas à venda. “Olhe para esses peitos”, diz o leiloeiro querendo inflar seu valor, acrescentando ao bater o martelo: “Assim nos livramos desses dois negger [termo extremamente racista para pessoas negras]”.

Quando viu esta cena pela primeira vez, ela ficou eletrificada, contou Dorothee Elmiger durante uma conversa em um café em seu bairro. Ela reviu a cena repetidas vezes. “Mas por muito tempo eu não entendia o que eu estava tentando descobrir”.

Dorothee Elmiger sentada a uma mesa em um parque
Dorothee Elmiger tem o dom de descobrir algo onde outros não vêem nada.

No livro, ela deixa seu alter-ego livre para contar que tem a impressão de que algo que ela não consegue formular está a se manifestar, e que aparece no máximo “através de conexões com estruturas similares ou análogas, afinidades, repetições, paralelos”. E assim a autora reúne pedaços de textos, viajando no tempo e no espaço, que ecoam os vários temas presentes nesta breve cena. O texto é sobre o capitalismo, sobre a exportação das relações de trabalho capitalistas para o Novo Mundo. Sobre o racismo e o sexismo. Mas também sobre o apetite por algo mais, o desejo de ir além de si mesma, e como esse impulso, seja desejo, luxúria ou êxtase, pode se tornar destrutivo.

No escritor irlandês James Joyce, por exemplo, ela encontra uma figura, Eveline, que empresta seu nome a uma das histórias do livro Dublinenses (1914). Eveline senta-se à janela e se pergunta se deve subir em um navio e atravessar o Atlântico até Buenos Aires. Nesse momento, ela se lembra das palavras de sua mãe moribunda: “Derevaun Seraun!“. Várias teses literárias existem para esta misteriosa exclamação. Para alguns estudiosos é uma corrupção deliberada do gaélico, traduzida vagamente como “depois do prazer vem a dor”; para outros é uma corrupção da língua irlandesa, que significa “o fim da canção é a insanidade”. 

Há também interpretações contraditórias: o chamado para descobrir um novo território – ou um aviso para não deixar território familiar. “É ótimo encontrar algo assim”, diz Elmiger. “Tal descoberta abre novos caminhos”. Por exemplo, a Eveline de Joyce ecoa na mística Teresa de Ávila, cujos irmãos se mudaram todos para o Novo Mundo enquanto ela, a mulher, ficou em casa e encontrou uma saída – de si mesma – no êxtase religioso. E depois há paralelos no texto com a loucura e a ilusão.

A beleza da obra em aberto

Mas, para além de todos os temas que ressoam neste livro, do que ele se trata? Dorothee Elmiger ri: “Como autora, será que eu vou trair o texto se eu responder?” Seus livros não são intencionalmente crípticos, e ela se alegra em guiar o leitor. Mas a beleza do texto é sua abertura, e ela quer preservá-la.

Dorothee Elmiger tem 35 anos e vive em Zurique. Ela cresceu em uma vila no cantão de Appenzell antes de estudar ciência política e filosofia em Berlim e Zurique. Ela continuou sua formação no Instituto Literário Suíço em Biel e no Instituto Literário Alemão em Leipzig. 

Dorothee Elmiger em frente a uma loja
Como escritora ela se coloca no centro do mundo, mas prefere morar na periferia da cidade.

Não se deve ser intimidado ou desencorajado pela forma experimental do texto, pelas citações acadêmicas ou pelos nomes de grandes autores. Seu editor Jo Lendle, que já estava trabalhando nos textos de Dorothee Elmiger para a editora Du Mont e agora também para a Hanser, diz: “Elmiger reconhece que o conhecimento não é adquirido de forma linear. Ela mostra que estes caminhos são em si mesmos uma fonte de descobertas. Determinada, intensa, cuidadosa, ela rastreia os fenômenos, e os envolve em redes – e são essas redes de referências, esses vínculos que tornam sua escrita incomparável”, diz ele.

Logo no início do livro, Elmiger usa a imagem de um arbusto para o qual a narradora avança e se prende. Um pouco mais adiante, a imagem de um grande quadrado onde ela espalha tudo o que encontrou, documentos, notas e fragmentos de texto: “Aqui não há uma ordem predeterminada”, escreve ela. “Cada vez que você volta a este caos, as coisas parecem ter desenvolvido novas relações umas com as outras”.

As relações entre as coisas estão no centro das atenções. O jogo é uma vez descrito como “a personificação apolítica da esperança de emancipação ou liberdade”. E o jogo de azar é visto como um “ritual” que restaura a “ordem original”. O livro é uma colagem de textos que dialogam de uma maneira brilhante e às vezes até impressionante. É um convite para refletir sobre as condições em que vivemos – e das quais também somos um elemento.

O primeiro romance de Dorothee Elmiger, Einladung an die Waghalsigen (2010 – Convite aos atrevidos – ou também ousados ou imprudentes), é sobre duas irmãs em um mundo apocalíptico. Sua segunda obra, publicada em francês sob o título La société des abeilles (A Sociedade das Abelhas) pela éditions d’en bas, trata de fronteiras. Seu novo livro Aus der Zuckerfabrik (Da Fábrica de Açúcar) começa e se concentra na produção de açúcar. Açúcar que evoca apetite, cobiça, inveja, prazer, mas que, visto de uma perspectiva histórica, foi produzido nas Américas sob condições assassinas – por escravos. No capitalismo mercantil da época, o sistema salarial era difícil de exportar para o exterior. Neste livro, Dorothee Elmiger combina trechos de textos de campos aparentemente distantes, como psiquiatria, misticismo e a literatura de Max Frisch. É uma forma de entender os meandros do nosso mundo. Mas também deve ser lido pela precisão e beleza da linguagem.

Dorothee Elmiger: Aus der Zuckerfabrik, Hanser Verlag, 272 páginas. Uma tradução em inglês está em preparação.


swissinfo.ch/ets

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