A longa luta da humanidade entre a guerra e a paz
A guerra é o futuro do homem? Esta questão filosófica está no centro de uma exposição sobre guerra e paz na Fundação Bodmer em Genebra, que apresenta manuscritos, livros e outros documentos de valor inestimável, incluindo parte do manuscrito original de Leon Tolstoi para "Guerra e Paz" e um tratado de paz com 4.500 anos.
“Se esta exposição tivesse sido realizada há 30 anos, teria sido marcada por um otimismo incrível”, escreve o curador Pierre Hazan no catálogo da exposição. “No entanto, três décadas depois, houve uma mudança brutal de perspectiva.
Para isso, basta seguir as notícias diárias: o Conselho de Segurança das Nações Unidas fica paralisado pelos conflitos entre as principais potências mundiais no Oriente Médio e no Golfo Pérsico. A ONU também foi marginalizada no sul da Ásia, onde as tensões estão de novo a aumentar na região de Caxemira, entre a Índia e o Paquistão, ambos com armas nucleares.
“A responsabilidade do homem de decidir entre a guerra e a paz é mais real do que nunca”, diz Hazan, que trabalha como conselheiro do Centre for Humanitarian Dialogue (Centro pleo Diálogo Humanitário), uma organização privada de Genebra especializada na mediação de conflitos.
Parte da exposição “Guerra e Paz”Link externo, criada pela Fundação Bodmer em conjunto com a ONU e o Comité Internacional da Cruz Vermelha (CICV), examina como os meios de comunicação social, começando pelo rádio, têm sido utilizados como instrumento de propaganda.
A Liga das Nações – a precursora da ONU – tentou combater ideias que alimentavam o ódio e desumanizavam indivíduos. Uma Convenção Internacional das Telecomunicações em exibição em Genebra, elaborada pela Liga em 1936, exortava os Estados a assegurar que, em prol da paz, os programas transmitidos a partir dos seus territórios “não incitassem a guerra” ou encorajassem “atos susceptíveis de conduzir a ela”.
As 20 nações que assinaram o tratado também se comprometeram a pôr um fim imediato a quaisquer programas “susceptíveis de prejudicar a boa vontade internacional através de alegações cuja inexatidão seria, ou deveria ser, conhecida pelos responsáveis pelo programa”. Hoje, a ONU ainda luta para combater a difusão de discursos de ódio e informações falsas nas redes sociais.
A exposição na Fundação Bodmer apresenta o exemplo mais extremo de manipulação do século passado: uma cópia de ‘Mein Kampf’ (Minha luta), o manifesto anti-semita escrito por Adolf Hitler e publicado pela primeira vez em 1925. Isso é apresentado juntamente com uma reprodução do mapa secreto mostrando a divisão da Polônia por um único golpe de lápis que acompanhou o pacto de não-agressão de 1939 entre a Alemanha nazista e a União Soviética.
Outras exposições revelam as consequências humanas da guerra, como uma cópia da edição original de “O Diário de uma Menina Jovem” de Anne Frank, a adolescente judia que morreu de tifo no campo de concentração de Bergen-Belsen em 1945. O livro está exposto ao lado de uma nota diplomática escrita em dezembro de 1942 pelo governo polonês no exílio aos 26 governos aliados intitulada: “O extermínio em massa dos judeus na Polônia ocupada pela Alemanha nazista”.
Sim, os Aliados sabiam disso, mas não fizeram nada até o fim da guerra. O CICV, então patrocinador da exposição, também fechou os olhos para a realidade do Holocausto, seguindo uma política de acomodação em relação a Berlim, que havia sido adotada pelo governo suíço. As discussões tiveram lugar no seio da organização humanitária sediada em Genebra sobre a denúncia pública de abusos contra civis, tendo sido redigida uma declaração vaga e ponderada. Mas o CICV acabou por abandoná-la, como revela a exposição, destacando o papel do presidente suíço e membro do CICV, Philipp Etter.
Com curadoria de Pierre Hazan e do diretor da Fundação Martin Bodmer, Jacques Berchtold, a exposição não hesita em examinar essas questões. Ela surge num momento em que o anti-semitismo está novamente em ascensão, também na Alemanha. Mas em vez de ser um apelo ao ativismo, a exposição convida o visitante a refletir sobre a nossa longa história e as poucas lições que parece que aprendemos, tanto no passado como no presente.
“A história é cíclica?”, indagam os curadores. Talvez. Mas dentro deste círculo eterno existe certamente um desejo de reconciliação.
Em exposição está uma rara estaca de argila de 4.400 anos do período sumério, inscrita com um tratado de paz e amizade em caracteres cuneiformes. Ele representa o texto diplomático mais antigo que existe.
Em exibição encontra-se também o tratado “Paz Perpétua”, assinado em 1516 entre a Confederação Suíça e a França após a derrota dos suíços na Batalha de Marignano, perto de Milão, Itália. Ao pé do grande pergaminho, o selo do rei francês Francisco I é seguido por outros 18 – representando os 13 cantões da antiga Confederação e seus aliados.
As três principais religiões abraâmicas – judaísmo, cristianismo e islamismo – tentaram definir a legalidade da guerra e da violência. Como observa Hazan, é aqui que podem ser encontradas as origens da “guerra justa”, um conceito ambíguo que foi reavivado na década de 1990 durante as guerras dos Balcãs na década de 1990 e na primeira Guerra do Golfo (1991).
A esse respeito, as Convenções de Genebra, concebidas pelo CICV, constituíram um avanço significativo. Foram concebidas para permitir a prestação de assistência aos feridos e a proteção dos prisioneiros de guerra e dos civis, independentemente do lado em que se encontrem. Mas a exposição também recorda as suas limitações iniciais.
Gustave Moynier, fundador do CICV, escreve no boletim da organização em 1880 que é indesejável que os Estados africanos assinem a convenção “porque os negros da África são, na sua maioria, ainda demasiado selvagens para poderem associar-se ao pensamento humanitário que inspirou este tratado e coloca-lo em prática”. A única exceção foi o Estado do Congo, que Moynier ajudou a criar; o seu único proprietário, Léopold II, rei dos belgas, governou o país com mão de ferro, provocando a morte violenta de milhões de pessoas e um escândalo internacional.
No interminável ciclo dos conflitos e dos acordos de paz, destacam-se vários escritores capazes de revelar as mentiras da guerra e de nos recordar a nossa condição humana. A exposição apresenta várias páginas do manuscrito original de Leon Tolstoi para “Guerra e Paz”, que foi autorizado a deixar o Museu Tolstoi em Moscou, Rússia, sob forte segurança, pela primeira vez desde que ele escreveu o livro, na década de 1860.
Ao lado do precioso manuscrito estão exemplos clássicos de estratégia militar, incluindo os clássicos “Da Guerra”, do general prussiano Carl von Clausewitz (1833), e “A Arte da Guerra” do general chinês Sun Tzu (século 5 a.C.).
A exposição também apresenta uma edição do jornal francês Combat de 8 de agosto de 1945, com um editorial do escritor Albert Camus. O futuro ganhador do Prêmio Nobel de Literatura comenta sobre a destruição atômica de Hiroshima. E sua advertência permanece verdadeira até hoje: “A civilização mecânica atingiu o seu último grau de selvageria. Num futuro mais ou menos próximo, será necessário fazer uma escolha entre o suicídio coletivo e o uso inteligente das conquistas científicas”.
Guerra e Paz
A exposição Guerra e Paz na Fundação Martin Bodmer fica em cartaz até 1° de Março de 2020.
Ela faz parte das comemorações de 100 Anos de Multilateralismo, uma série de eventos Link externoorganizados para assinalar o centenário da Liga das Nações. Uma exposição paralela em Genebra, 100 Anos de Multilateralismo, está atualmente em exposição no Museu da ONU, na sede da organização em Genebra. Ela apresenta documentos únicos dos arquivos da ONU e explora a evolução do sistema multilateral desde a criação da Liga das Nações até o trabalho atual das Nações Unidas.
O governo suíçoLink externo está apoiando ativamente esses eventos centenários.
Adaptação do original em francês: Eduardo Simantob
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