“Rir juntos na Piazza Grande: um efeito muito especial”
O Festival de Locarno é o mais importante evento cinematográfico da Suíça. O festival de dez dias começa no dia primeiro de agosto, e esta será a última vez que terá como diretor artístico Carlo Chatrian.
De partida para Berlin, onde trabalhará no festival de cinema daquela cidade, Chatrian conversou com swissinfo.ch sobre as próximas edições do festival, sobre seu momento mais difícil enquanto diretor, e sobre seus conhecimentos de alemão.
swissinfo.ch: Este ano o Festival será aberto com o filme “Les Beaux Ésprits” de Vianney Lebasque, e encerrado com “I Feel Good” de Benoît Delepine. Seriam estes títulos um reflexo de seus sentimentos pessoais, tendo em vista que este será o último festival sob sua direção, antes de sua partida para Berlim?
Carlo Chatrian: (rindo) As coisas não são tão profundas. Nós quisemos apenas marcar o início e o fim com comédias. E isso porque embora distintos, nós gostamos desses filmes. Eles servem bem com quadro para a Piazza. Se quisermos realmente fazer humor com o título do filme de encerramento, poderiamos dizer “I feel good now, tomorrow and the day after tomorrow.” Aqui em Locarno me sinto muito à vontade, mas com sorte me sentirei bem também amanhã e depois de amanhã.
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Caro velho cinema
swissinfo.ch: De maneira geral, a tônica na Piazza esse ano recai sobre filmes leves e de entretenimento. Seria isso um sinal de que o grande público está sem apetite para temas mais pesados?
C.Ch.: Depois da septuagésima edição do festival em 2017, muito densa em siginificação, optamos por uma programação um pouco mais leve. Isso se vê também na retrospectiva com filmes de Leo MacCarey. E as comédias têm um efeito maravilhoso, pois elas permitem que os espectadores riam juntos na Piazza Grande.
swissinfo.ch: Riso como terapia de grupo?
C.Ch.: Sim, vai por aí. Mas não é um riso para se esquecer do mundo, pois filmes como a sátira “BlacKkKlansman” de Spike Lee nos trazem diretamente a temas polêmicos como o racismo. Trata-se aqui de temas importantes, mas com uma embalagem mais leve.
swissinfo.ch: Devemos ver este filme de Spike Lee como uma mensagem política?
C.Ch.: O filme se baseia em uma história verídica. Um afroamericano é contratado pelo FBI porque em sua carteirinha de membro da Ku-Klux-Klan está escrito que ele é branco. Esse filme simboliza a sociedade americana, ainda dividida entre negros e brancos. Nós trazemos esse filme em comemoração ao septuagésimo aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Isto para mim é um sinal de civilidade, mais do que um sinal político.
swissinfo.ch: Além da Piazza Grande, as atenções se voltam sempre para a mostra competitiva internacional. Qual parte do festival é mais difícil do ponto de vista da programação?
C.Ch.: São duas sessões que requerem atenção diferenciada. Na Piazza Grande, além dos filmes certos, precisamos também de apresentadores capazes. O que fazemos é preparar eventos durante as onze noites. É um pouco como no filme colombiano “Pájaros de verano” (Birds of Passage) que nos leva em uma viagem a diversos continentes. Na mostra competitiva, por outro lado, não é muito fácil encontrar um equilíbrio entre diretores jovens e diretores mais experientes.
swissinfo.ch: Na mostra competitiva se vê o filme argentino “La Flor” de Mariano Llinás, que dura quase 14 horas. Devemos ver isso com uma provocação?
C.Ch.: Não, mas é um desafio para o público. Na nossa opinião trata-se de um filme único na história do cinema; uma grande homenage ao cinema. Vê-se com frequência em filmes um claro receio narrativo, mas aqui se fez cinema sem inibições. Vamos esperar para ver as reações. De qualquer maneira, pode-se ver o filme em partes.
swissinfo.ch: Um tal filme nunca vai chegar ao circuito comercial de cinema como a maioria dos filmes do festival. Isso é um problema para o Festival de Locarno?
C.Ch.: Sempre se discute sobre isso, mas se olharmos quantos filmes da mostra competitiva chegaram às distribuidoras de filmes na década de 1960, o resultado seria quase o mesmo. Festivais são lugares de descobertas, lugares para a vanguarda. E isso inclui também filmes ultra-longos. E também estes filmes chegam ao circuito comercial, basta ver o filme “Heimat” de Edgar Reitz. Ademais, novos aparelhos como os smartphones oferecem novas possibilidades para se ver tais filmes. Você pode assistir sempre que tiver vontade.
Festivais são lugares de descobertas, lugares para a vanguarda
swissinfo.ch: Não adianta negar, a etiqueta “Pardo d’Oro” não tem o mesmo efeito promocional do “Goldene Bär” de Berlin, ou da “Palme d’Or” de Cannes. Qual é o problema?
C.Ch.: De modo geral é verdade. Nos últimos anos os filmes vencedores em Locarno não tiveram sucesso comercial. Mas também temos que mencionar exemplos positivos. Em meu primeiro ano no festival, Brie Larson recebeu o prêmio de melhor atriz; três anos mais tarde ela ganhou o Oscar. Ou o filme “As Boas Maneias”, de Juliana Rojas e Marco Dutra, que ganhou um prêmio em 2017 e ainda está em cartaz nos cinemas brasileiros.
swissinfo.ch: Permita-nos uma pequena digressão. Nós fazemos esta entrevista no novo PalaCinema, um prédio com três salas de exibição que desde o ano passado é a sede do Festival de Locarno. Durante o festival o prédio não pode acomodar todos os visitantes, mas durante o ano as salas ficam quase vazias. Em sua opinião, o que se pode fazer sobre a crise do cinema, uma crise que afeta toda a Suíça?
C.Ch.: Não cabe a mim aqui dar conselhos, mas na minha opinião os temas que levantamos aqui poderiam ser úteis aos proprietários de cinemas. É claro que não se pode fazer um evento assim toda noite, mas talvez o programa poderia ser alterado. Os espectadores hoje têm que sentir a necessidade de poder ver algo especial ao sair de casa.
swissinfo.ch: Os Cinemas estão em crise, mas os festivais estão em voga. Em Locarno já faz tempo que o festival não é apenas de cinema, mas serve também para discussão de questões da sociedade. O festival organiza também festas. O próprio nome do festival mudou de “Festival de Filmes de Locarno” para “Festival de Locarno”. Não é mais o bastante mostrar apenas filmes?
C.Ch.: Essa é minha opinião. Um filme é um evento social, e isso não mudou. “Festival de Locarno” é apenas uma abreviaçao, mas todos sabem que os filmes são a parte mais importante. Todo o resto são eventos periféricos. A Piazza Grande se transforma em espaço de exibição ao ar livre somente durante o festival.
Locarno como trampolim
Carlo Chatrian vai deixar o Festival de Locarno ao fim desta 71ª edição (1 a 11 de agosto). Berlim será seu novo local de trabalho e ele assumirá a direção da mostra de cinema Berlinale.
Esta não é a primeira vez que Locarno serve de trampolim para diretores e seus filmes, mas também para diretores artísticos. Nascido em 1940, Moritz De Hadeln foi diretor artístico do Festival de Locarno entre 1972 e 1977 antes de se tornar diretor do Festival de Berlim entre 1980 e 2001. Marco Müller, diretor em Locarno entre 1992 e 2001, e produtor até 2005, dirigiu a parte de cinema da Bienal de Veneza entre 2005 e 2011.
Outros diretores deram impulso às suas carreiras graças a Locarno. David Streiff (diretor entre 1982 e 1991) se tornou diretor da Agência Federal da Cultura. Frédéric Maire (2006-2009) se tonou diretor da Cinematéca Suíça em Lausanne enquanto seu sucessor, Olivier Père (2010-2012) deixou o Lago Maggiore para dirigir o departamento de cinema da emissora de TV Arte.
swissinfo.ch: Qual o momento mais memorável, ou talvez mais difícil, de seu tempo como diretor do festival?
C.Ch.: Muitos pensam talvez que tenham sido as discussoes e polêmicas relacionadas à presença de Roman Polanski em 2014. Mas falando sério, meu momento mais difícil foi quando o festival ainda não estava sob minha direção. Eu fui à São Petersburgo em 2013 para convidar o diretor Alekzandr Sokurov para o pré-evento “L’imagine et la parola”. O encontro com ele era para mim um grande obstáculo, um bloco que eu tive que tirar do caminho. Mas também a primeira noite no palco na Piazza Grande não foi fácil.
swissinfo.ch: Há anos se discute sobre o glamour do Festival de Locarno. Às vezes se tem poucas estrelas, às vezes são estrelas demais. Esta discussão lhe dá nos nervos?
C.Ch.: Não; eu deixo esta discussão para a mídia. Nós conseguimos trazer grandes nomes para Locarno. Pessoalmente, a presença do diretor Michael Cimino em 2016 me tocou particularmente.
swissinfo.ch: Você já protestou que o Festival de Locarno leva os habitantes locais pouco em consideração. O que você quis dizer com isso exatamente?
C.Ch.: Eu venho do vale italiano de Aosta e conheço bem a mentalidade dos montanheses. Eles têm muito orgulho de seu território e o defendem instintivamente. Isto os leva algumas vezes subvalorar o que têm. Eu tive a impressao que nem todos os habitantes do Tessino estão realmente cientes da importante contribuição do festival para uma imagem positiva da região.
swissinfo.ch: Você vai deixar Locarno. Dá para entender o porque de você não quer falar sobre seu futuro em Berlim. Mas conte para nós pelo menos uma coisa: você já começou a aprender o alemão?
C.Ch.: Quando minha filha começou no ginásio, eu comecei a aprender com ela o alemão; mas nos últimos meses eu tive que parar por causa das muitas viagens. Eu vou recomeçar em breve. Alemão não é muito fácil…
swissinfo.ch: Sua família vai se mudar também para Berlim?
C.Ch.: Meu filho mais velho vai terminar o último ano do ginásio. Por isso não faz sentido que ele vá para Berlim por um ano, tendo em vista que eu só começo lá em abril de 2019. Naquele momento vamos ter que decidir como vamos fazer.
swissinfo.ch: O que você vai levar consigo de Locarno e da Suíça para o futuro?
C.Ch.: A dimensão humana, e todas as pessoas com quem eu trabalhei. Mas também o público. É muito tocante que aqui tantas pessoas têm essa paixão pelo cinema. Eu não sei o que vai acontecer em Berlim. Só sei que lá não existe uma Piazza Grande.
Carlo Chatrian
Carlo Chatrian nasceu em1971 em Turim. Depois de seus estudos de literatura e filosofia na universidade de Turim, ele se especializou em jornalismo e comunicação. Desde o início dos anos 1990, Chatrian escreveu regularmente para revistas especializadas em cinema. Carlo Chatrian é editor de diversos livros e autor de diversas monografias. Ele é casado, pai de três filhos e mora, enquanto não está viajando, no vale de Aosta na Itália.
O trabalho com o Festival de Filme de Locarno começou em 2002. Entre 2006 e 2009 ele foi membro da comissão de seleção. Ele foi responsável por várias retrospectivas. Ele iniciou em seu cargo de diretor de artístico do festival em primeiro de novembro de 2012.
Depois da 71ª Edição do Festival, o “cineasta puro-sangue”, como o denominou o jornal Neue Zürcher Zeitung, vai deixar Locarno. Ele foi nomeado diretor artístico da Berlinale onde será o sucessor de Dieter Kosslick (70), que dirigirá o festival pela última vez entre 7 e 17 de fevereiro de 2019. A Berlinale de 2020 acontecerá pela primeira vez sob a direção de Chatrian. Ao seu lado, na direção administrativa, estará a executiva de cinema Mariette Rissenbeek.
Adaptação: Danilo v.Sperling
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