Festival de Locarno evolui com Maja Hoffmann
O festival de cinema mais prestigiado da Suíça continua sendo um paraíso para os cinéfilos. No entanto, nos bastidores, a nova presidente, Maja Hoffmann, está aproximando o festival de suas conexões artísticas globais.
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A discrição é a melhor amiga de um bilionário, e Maja Hoffmann é certamente discreta. Ela aparece na mídia somente quando quer ou precisa, mesmo quando dirige ações de alto nível, como a Fundação LUMA para artes contemporâneas e, agora, o Festival de Cinema de Locarno.
Desde que foi nomeada diretora do Festival Internacional de Cinema de LocarnoLink externo em outubro de 2023, Hoffmann não anunciou grandes mudanças na organização do evento, mas deixou indícios suficientes para mostrar a direção que está tomando. Entre eles, destaca-se seu estilo distinto do antecessor Marco Solari, que presidiu o festival por mais de duas décadas até 2023.
Solari tinha a aparência e a gesticulação de um nobre italiano, mas era mais um empresário bem-sucedido do que herdeiro de uma dinastia. Muito bem relacionado nos círculos de poder da Suíça e da Itália, o suíço originário do cantão do Ticino sempre foi muito cuidadoso ao forjar apoio político e financeiro, não apenas para o festival de cinema, mas também para muitos outros eventos culturais nesse cantão de língua italiana.
A 77ª edição do Festival Internacional de Cinema de Locarno traz uma forte presença de cineastas e produções da América Latina, Espanha e Portugal. Os filmes, que abordam temas sociais, culturais e políticos dessas regiões, prometem oferecer ao público um diversificado mosaico de histórias e perspectivas únicas, ressaltando a vitalidade da produção cinematográfica ibero-americana.
Entre os 18 filmes programados para a Piazza Grande, destinados ao grande público, destacam-se “Reinas”, uma produção suíço-hispano-peruana dirigida por Klaudia Reynicke, que aborda a emigração forçada no Peru; “México 86”, uma coprodução mexicano-belga-francesa do cineasta guatemalteco-belga César Díaz, que explora a tensão entre maternidade e luta revolucionária; e “Gaucho Gaucho”, uma coprodução argentino-estadunidense dirigida por Michael Dweck e Gregory Kershaw, premiada no Festival Sundance 2024, que retrata em preto e branco o cotidiano dos pampas argentinos com um olhar quase antropológico.
O diretor mexicano Alfonso Cuarón, vencedor do Oscar de “Melhor Diretor” em duas ocasiões, será homenageado no festival. Ele participará de um debate aberto no dia 11 de agosto, onde o público poderá interagir livremente, uma tradição de Locarno.
Na competição pelo Leopardo de Ouro, principal prêmio do festival, está “Fogo do Vento”, uma coprodução suíço-portuguesa dirigida pela portuguesa Marta Mateus, que convoca memórias e histórias de seu país. A diretora catalã Mar Coll apresentará “Salve María”, que trata da perturbadora figura de uma mãe que matou seus dois filhos gêmeos de 10 meses.
“Transamazônica”, da diretora sul-africana Pia Marais, é uma coprodução franco-alemã-taiwanesa-suíço-brasileira que aborda as tensões na região amazônica e a relação entre um pai e sua filha.
Na seção “Leopardos do Amanhã”, voltada para jovens cineastas, três filmes em competição são de países hispanófonos ou lusófonos: “Hanami” (Suíça, Portugal, Cabo Verde), de Denise Fernandes; “Monólogo Coletivo”, de Jessica Sarah Rinland; e “Olivia y las Nubes”, de Tomás Pichardo-Espaillat.
A seção “Open Doors” do festival tem como objetivo apoiar talentos e filmes de países onde o cinema independente é mais frágil. De 2022 a 2024, o foco está na América Latina e no Caribe. Entre os filmes selecionados estão: “Eami”, de Paz Encina; “La Bachata de Bionico”, de Yoel Morales; “La piel del agua”, de Patricia Velásquez; “La playa de los enchaquirados”, de Iván Mora Manzano; “Los capítulos perdidos”, de Lorena Alvarado; “Raíz”, de Franco García Becerra; e “Uncivilized”, de Michael Lees.
A administração de Solari foi fundamental para consolidar o festival de cinema como uma instituição nacional, estabelecendo conexões em todas as regiões linguísticas da Suíça e assegurando seu financiamento com uma combinação inteligente de doadores e patrocinadores públicos e privados.
Ao anunciar sua aposentadoria em 2023, a nomeação de Maja Hoffmann como sucessora foi uma grande surpresa. Hoffmann vem de uma família bilionária, herdeira da multinacional farmacêutica Roche. Originária da Basileia, cidade ao norte da Suíça, ela foi criada na França, não domina o italiano e é internacionalmente conhecida como colecionadora e curadora.
Ela dirige a LUMALink externo, uma fundação que mantém galerias de arte em Zurique, Gstaad (Suíça), Londres, Mustique (uma ilha nas Índias Ocidentais) e em Arles (França), num edifício projetado pelo arquiteto Frank Gehry.
No entanto, Hoffmann não é conhecida no mundo do cinema, apesar de ter estudado cinema em Nova York e sido produtora executiva de vários documentários. Seu parceiro, Stanley Buchthal, é produtor de filmes.
Mudanças no protocolo
A direção do festival de Locarno costuma organizar em janeiro um coquetel durante o Festival de Cinema de SolothurnLink externo, um evento voltado exclusivamente a produções suíças. Nele, os membros da direção – a diretora artística Giona A. Nazzaro, o diretor administrativo Raphaël Brunschwig e o presidente do festival – encontram jornalistas, patrocinadores e artistas para anunciar o tema da “Retrospectiva”, uma das seções mais importantes em Locarno.
Este ano, no entanto, os jornalistas não encontraram ninguém para conversar. No último momento, os convidados foram informados que Hoffmann e seus colegas estavam no Festival de Cinema de Sundance, nos Estados Unidos. A mensagem era clara: Locarno precisa estar mais presente no cenário global. Só em julho, a nova diretora do Festival de Locarno encontrou o público para anunciar o programa do evento.
Até então, essa apresentação era organizada por Solari em Berna, a capital do país. O diretor convidava políticos, jornalistas e funcionários do cantão do Ticino e de Berna. Seus discursos mudavam naturalmente do alemão para o italiano e para o francês, abrangendo simbolicamente a diversidade cultural e enfatizando o caráter nacional do festival.
Hoffmann preferiu organizar a coletiva na sede da LUMA em Zurique. Não havia políticos ou funcionários públicos, mas sim jornalistas. O evento foi transmitido ao vivo pela Internet e o idioma era o alemão. Já a diretora fez seu discurso em inglês.
Quando a diretora artística Giona A. Nazzaro apresentou o programa, mensagens mais sutis puderam ser captadas. Solari costumava limitar sua apresentação a um discurso institucional, respeitando as convenções protocolares, como nomear formalmente as personalidades presentes e deixar a palavra para o diretor artístico apresentar seu programa. Este ano, Nazzaro reconheceu as contribuições de Hoffmann na seleção de filmes.
Hoffmann também participou na elaboração do principal cartaz do Festival de Locarno, que este ano apresenta uma imagem realizada pela fotógrafa americana Annie Leibovitz, amiga pessoal de Hoffmann.
Investindo na marca “Locarno”
O estilo de Hoffmann, portanto, está começando a tomar forma. Embora esteja mais presente no processo de curadoria do que seu antecessor, ela parece estar menos preocupada com as convenções das instituições e políticas nacionais. No comando, a suíça busca envolver o festival nas redes globais que se sobrepõem aos círculos de elite do mundo do cinema e ao cenário das artes plásticas.
A abordagem de Hoffmann pode ser saudada como uma evolução ousada, mas necessária, da posição de Locarno no circuito internacional de festivais. Sob o comando de Solari, o festival consolidou sua posição como o “menor entre os gigantes (Cannes, Berlim, Veneza) e o maior entre os menores”. A competição por obras e estreias é cada vez mais acirrada.
Tendo isso em mente, a estratégia de Hoffmann parece se concentrar na marca Locarno. Por um lado, para garantir o futuro do festival, ela precisa promover seu nome de forma mais agressiva em escala global. Ao mesmo tempo, para assegurar a qualidade, também precisa garantir que o festival se mantenha fiel aos seus princípios cinéfilos e como uma plataforma para novos conceitos e ideias.
É um ato de equilíbrio: enquanto Hoffmann abre portas no circuito internacional, ela pode contar com uma diretora artística que também é uma crítica de cinema respeitada e que naturalmente incorpora o espírito de Locarno, bem como com uma equipe profissional e a rede institucional deixada por Solari. Mas o primeiro teste real da nova direção começa hoje.
As estrelas de Locarno são principalmente os filmes e não as celebridades. Este ano, porém, traz da Índia a maior estrela de Bollywood, Shah Rukh Khan; a atriz suíço-francesa Irène Jacob (vista mais recentemente na Berlinale em “Shikun”, de Amos Gitai); o diretor de animação Claude Barras, de “Minha Vida de Abobrinha”; e Jane Campion, a primeira mulher a ganhar a Palma de Ouro em Cannes (pelo filme “O Piano”) e a primeira indicada duas vezes ao Oscar de melhor diretor.
A seção “Retrospectiva” é sempre um dos principais destaques do festival, trazendo obras clássicas do cinema. Este ano, ela comemora o centenário do estúdio americano Columbia Pictures com uma seleção de filmes do início da era do som até o final da década de 1950, com curadoria do crítico e cineasta iraniano radicado em Londres, Ehsan Khoshbakht.
Na mesma linha, o festival apresenta uma mostra de oito filmes do diretor americano Stan Brakhage (1933-2003), um dos mais influentes autores de filmes experimentais do século 20.
As principais mostras competitivas apresentam filmes produzidos em todas as partes do globo. Dezessete deles disputam o Leopardo de Ouro, o principal prêmio do evento, e outros 15 competem pelo troféu “Cineastas do Presente”, voltado a autores que apresentam o primeiro ou segundo longa-metragem.
Confira aquiLink externo a programação completa do festival e acompanhe a cobertura da swissinfo.ch em parceria com jovens jornalistas da Academia de Críticos.
Edição: Virginie Mangin/ts
Adaptação: Alexander Thoele
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