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Filmando em Terra Arrasada

Cena de "Tabu", de Miguel Gomes, premiado no Festival de Berlim. looknow.ch

Sucesso no último Festival de Berlim, o filme do português Miguel Gomes estreou essa semana em Berna e Zurique. Em visita ao país para o lançamento, o diretor, em entrevista à swissinfo.ch, expôs o estado atual da produção cinematográfica e como a memória colonial habita o imaginário português da atualidade.

O filme português “Tabu” foi à última Berlinale em fevereiro sem maiores expectativas que a honra de estar incluído na mostra. Saiu do festival com o prêmio da crítica internacional (FIPRESCI) e ainda o prêmio Alfred Baeur de Inovação Artística. Filmado em película 35mm e preto e branco, “Tabu” emula os filmes dos primórdios do cinema – toda a segunda parte é muda – e conta, em linhas gerais, uma história de amor adúltero na África portuguesa na reta final do colonialismo, resgatada na memória de uma senhora paranoica e esclerosada à beira da morte na Lisboa atual.

Critica internacional

Os prêmios de “Tabu” chamaram a atenção da crítica internacional para a produção portuguesa recente, e houve até quem visse uma suposta “primavera” cinematográfica às margens do Tejo. Simplificações e exageros, porém, não dão conta do simples fato que filmes bons estão sendo feitos em Portugal, e o diretor Miguel Gomes é um dos principais expoentes dessa nova safra. Mas como podemos situa-lo no cenário atual da produção cinematográfica portuguesa?

“Hoje nem eu nem ninguém se situa, pois não há cenário de produção em Portugal neste momento”, disse Gomes à swissinfo.ch durante uma tarde de cafés e cigarros no cinema Riff Raff, em Zurique. “Este ano de 2012 foi um ano muito estranho para todos os portugueses, e em especial para o cinema.” Não só pela crise em si, mas pelo fato de Portugal ter um governo que se encontra subordinado à “troika” (FMI, Banco Central Europeu e Comissão Europeia), tomando decisões radicais, como por exemplo a extinção do Ministério da Cultura, transformado numa mera secretaria de Estado. O próprio Instituto Nacional de Cinema (ICA), órgão responsável pelo fomento de toda essa nova onda produtiva desde o fim dos anos 1990, não abriu concurso em 2012. “Ou seja, um corte de 100%. Nenhuma produção de cinema local conseguiu iniciar-se”, lamenta Gomes.

Entra Walter Sales

Esse cenário de terra arrasada parece evocar seu filme anterior, “Aquele Querido Mês de Agosto” (2008), em que uma equipe viaja ao norte de Portugal para filmar uma ficção com fundos do ICA. Mas o dinheiro não vem, e eles acabam realizando um outro filme completamente diferente. Ironicamente, foi este filme que possibilitou a Gomes realizar “Tabu” com uma arquitetura mais sofisticada de produção.

O diretor brasileiro Walter Salles, encantado com “Mês de Agosto”, colocou Gomes em contato com outros produtores seus conterrâneos, a Gullani Filmes de São Paulo, que por sua vez enquadrou o projeto dentro dos acordos de coprodução entre os dois países.

Paradoxalmente, neste mesmo ano

horribilis

, o cinema português amealhou uma série de prêmios, visibilidade e projeção internacionais. Esse reconhecimento deu mais alento à uma nova lei do cinema que deve ser aplicada a partir de 2013, que segue os princípios da lei anterior e os expande. Pois o cinema português era basicamente financiado por um imposto aplicado sobre as televisões ou entidades audiovisuais, mas agora essa taxa englobará também operadoras de telefonia e internet.

Herança do “cinema novo”

Após discorrer sobre as dificuldades e mazelas de se filmar em Portugal, Gomes se diz orgulhoso de fazer parte duma tradição cinematográfica de 50 anos. Cinéfilo incurável, refere-se ele às raízes, ao “cinema novo” português que nasceu com “Os Verdes Anos”, filme de Paulo Rocha lançado em 1962. “Esse cinema tentava dialogar com a sociedade de uma maneira mais pessoal e menos atada ao governo de Salazar”, explica Gomes. “E você vai achar hoje na produção portuguesa essa liberdade e um caráter pessoal de um cinema independente dos poderes políticos e econômicos, e que tenta inventar suas próprias regras”.

Esse impulso criativo não passa despercebido, e os prêmios internacionais  refletem uma curiosidade crescente por uma cinematografia que não se limita, no tempo e no espaço, às fronteiras portuguesas. Mesmo na imprensa britânica “

Tabu

” teve destaque fora das proporções habituais (mormente nulas) que a crítica local abre para o universo ibérico. Não foi por sorte. “

Tabu

” salta logo à primeira vista como um filme feito de maneira extremamente simples, mas capaz de insinuar múltiplas   camadas de significado.

Assunto é o próprio cinema

Seu tratamento do passado colonial costurado no tecido vivo do presente foi um dos elementos que mais tocou o âmago dos ingleses, e que também explica o seu amplo interesse internacional – mais de 40 países já acertaram sua distribuição. Entretanto, o assunto principal do filme é o próprio cinema. Ou em outras palavras: foi uma reflexão sobre cinema que levou Miguel Gomes a mergulhar no passado colonial.

 A senha é explícita: Tabu e Aurora, nome da personagem principal, são também os títulos de duas obras fundamentais de um dos grandes mestres do cinema, Friedrich Wilhelm Murnau (1888 – 1931) . As duas partes do filme português obedecem o mesmo esquema do “Tabu” de Murnau, mas Miguel Gomes queria inicialmente chamar seu filme de “Aurora”.

Foi quando descobriu que havia um filme recente, romeno, com o mesmo título. “Eu posso roubar o título de Murnau, que foi feito há 80 anos, mas não de um filme novo”, disse o diretor à swissinfo.ch “Então peguei o título do último filme de Murnau e pensei em mudar o nome da personagem Aurora, mas não consegui imaginar outro nome. E assim ficou”.

África mitológica

Murnau realizou seu “Tabu” numa ilha da Polinésia evocando um estranhamento antipodal em sua plateia eurocêntrica, reforçado pelos costumes nativos não muito distantes dos que o pintor Paul Gauguin encontrou e desenhou poucas décadas antes; Miguel Gomes, por sua vez, foi para o norte de Moçambique e, por antípodas, escolheu o colonialismo português tardio: isolado, decadente, à beira do fim.

Gomes conta que sua mãe nasceu em Angola, mas que isso não tem relação nenhuma com o filme. Ele mesmo diz não ter qualquer experiência pessoal com o passado colonial português, e faz questão de ressaltar que “essa África que se vê em “Tabu” não é uma África autobiográfica, mas uma África mitológica fabricada pelo cinema, como nos filmes de Tarzan ou clássicos americanos dos anos 40 e 50”.

Memória falsa

Se fosse preciso sintetizar “Tabu” em uma linha, certamente teríamos que citar o exercício da memória e uma reflexão sobre o tempo. Mas isso não daria conta do escopo do filme. Pois, como explica Gomes, “trata-se de uma espécie de falsa memória que todos nós partilhamos. Uma África que nunca existiu de fato. E meu filme parte disso: ele tem uma relação com a memória, mas não com a memória histórica, é uma espécie de memória falsa, e talvez seja isso que mais me atrai no cinema, que é essa capacidade que o cinema tem de nos dar por um lado uma realidade material e ao mesmo tempo essa capacidade de também filmar fantasmas, coisas que não existem, e com isso inventar mundos. Mas o que é bonito é as duas coisas estarem misturadas; o lado fantasioso e ao mesmo tempo a possibilidade de se filmar as coisas como elas são materialmente”.

Assim como “A Última Vez que Vi Macau”, exibido com destaque no Festival de Locarno deste ano, “Tabu” não pretendia, nem mesmo em sua concepção, discutir o passado colonial. “Eu cheguei à África e ao colonialismo partindo de uma coisa que não tinha nada a ver com isso. A ideia do filme começa pelos personagens da primeira parte, que são aquelas três senhoras mais velhas e suas histórias privadas, pequenas histórias entre vizinhas que não alimentam filmes. Como contraponto a esse cenário limitado, apareceu a África a partir de histórias verdadeiras contadas por uma parente que de fato tinha uma vizinha que desconfiava de sua empregada africana. Assim, mesmo sem pensar em África ainda, o imaginário da África já estava de alguma forma inscrita nessas pequenas histórias do cotidiano, ou seja, ela faz parte de nossa realidade coletiva”.

Nascido em 1972, ou seja, dois anos antes da chamada Revolução dos Cravos, que pôs fim a quase meio século de ditadura salazarista, e três anos antes da independência das colônias africanas (Angola, Moçambique, Guiné-Bissau), Miguel Gomes faz parte de uma geração distanciada da violência e dos ânimos extremados que acompanharam o fim do colonialismo e do decrépito império português.

Momento propício para se rever e reexperimentar a história recente, sem ter de conter a liberdade narrativa. Deste caldeirão, o cinema português ainda promete trazer boas e novas surpresas nos próximos tempos, independentemente de troikas ou fundos estatais.

Assim como se observou na Argentina, o cinema português parece haver tomado uma força e inventividade singulares justamente num momento em que o país encontra-se em um de seus piores buracos econômicos de toda sua história. É pois quando o cinema se mostra como arte pura, obra de mentes inconformistas e curiosas, e alheia às limitações materiais. Mas, para o bem dos artistas, não façamos disso uma regra, afinal até mesmo a mais criativa Estética da Fome corre o risco de morrer de inanição.

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