Fotógrafa suíça retrata natureza em luto
Uma fotógrafa suíça revela a devastação dos incêndios criminosos e através das imagens resgata a metamorfose como a lei natural de sobrevivência.
Stefania Beretta expôs suas fotos nem uma galeria ao norte da Itália. O repórter da swissinfo.ch esteve por lá.
A terra arrasada dos bosques incendiados provoca um grande impacto visual, sempre. A natureza morta ressuscita, renasce, com a força das imagens de Stefania Beretta, fotógrafa suíça. Ela recupera as cinzas da floresta e as transforma num silencioso protesto contra a queimada, longe do clamor mediático e distante da linguagem jornalística. A árvore e o capim secos ganham voz por meio da mostra na galeria Maurer Zilioli, uma associação cultural na cidade de Brescia, norte da Itália.
A fotógrafa percorre o território devastado pelas chamas como se explorasse um novo mundo, um novo planeta desabitado, aparentemente. Pedras, ramos e troncos ganham novas cores e texturas após terem sido consumidos pelas chamas. Na natureza de Stefania Beretta, na interpretação através de um olhar crítico, atento, nada se perde, tudo se transforma. E nos detalhes do que ficou para trás, esquecido e abandonado, surge o foco da composição enquadrada no obturador e, como consequência, o título da exposição, In Memoriam.
Stefania Beretta realiza um trabalho de arte aplicada a um determinado tema e de forma clássica e analógica. As composições fotográficas são o resultado de uma profunda pesquisa sobre os eventos decantados, fisicamente e emocionalmente, à distância de algum tempo. “Ela estuda a material para depois desenvolver um percurso. Examina, caminha, pensa, não se trata apenas de fotografar, mas de fazer um contato com a matéria”, explica Maurer Zilioli, curadora da mostra.
Na realidade, o resgate da memória do bosque queimado é, ao mesmo tempo, a celebração da sua própria metamorfose, normalmente provocada por um delito, e a testemunha da indignação do observador, no caso, Stefania Beretta. A natureza nua e incendiada descortina segredos e mistérios, antes cobertos pela densa e verdejante vegetação.
E ao priorizar, em muitas imagens, o foco no segundo plano ao invés do primeiro, a artista atrai a atenção do espectador à profundidade de campo e, por tabela, da gravidade e importância do tema. Um subterfúgio inteligente e, ao mesmo tempo, delicado, quase como se pegasse o visitante pelas mãos e fazendo-o entrar no painel.
Arqueologia na devastação
A passagem do fogo liberta e expõe um pneu deixado por alguém. Os restos continuam semi-enterrados – pois as chamas não engolem a terra – e um círculo completo, como a roda, emerge da superfície indicando um ciclo encerrado, fechado e, quase como um misterioso achado arqueológico. „Esta imagem, em particular, remete a qualquer coisa de sagrado”, interpreta Maurer Zilioli, curadora da mostra.
A ideia desta série de imagens ocorreu seis anos atrás quando a fotógrafa passeava na Riviera italiana. „Este é um trabalho que durou um ano. Ele nasceu em 2004 quando eu visitava a Liguria, com amigos. E naquele momento eu presenciei um enorme incêndio criminoso, doloso. Alguns dias depois eu voltei para ver o que tinha sobrado daquele belíssimo bosque que existia antes do fogo”, disse Stefania Beretta para a swissinfo.
O ato de fotografar possibilitou o registro de uma nova paisagem. Uma natureza nua e queimada aparece como sujeito de imagens que mergulham e captam o renascimento de uma realidade. Os esqueletos das árvores agonizam em enormes painéis que saltam aos olhos do visitante. Eles erguem-se na linha do horizonte numa clara mensagem de resistência.
Trilhas sinuosas, antes camufladas e “batidas” no meio do bosque verde, são agora rastros claros na terra, mais parecidos com cobras imóveis e que levam o nada ao lugar algum. “Quando me deparo com momentos como este nasce em mim um sentimento de rebelião que consigo expressar através de imagens”, afirma a artista para a swissinfo.
Stefania Beretta descobre o luto da natureza em todas as suas variações cromáticas e geométricas. Barrancos de argila, semi-cobertos de cinzas e galhos mortos, são “sepulturas” ao ar livre da mata violada pelo fogo. Troncos deitados sobre a terra, apoiados uns sobre os outros, se transformam em sinais que decodificam o desastre ambiental.
Realismo mágico
As cascas das árvores carbonizadas compõe uma nova paisagem, rica em simbolismos. Os incêndios documentados pela artista ocorreram na região do Mediterrâneo, Liguria na Itália, Ticino, na Suíça e na França. Mas a fotógrafa consegue capturar a desolação deste cenário de forma universal e, curiosamente, de forma paradoxal. Por isso mesmo, por desconhecer fronteiras, as fotos não possuem legendas sobre os locais.
Algumas imagens, pela força da linguagem preto e branco, remetem aos brotos de um saudável manguezal, com os caules escuros que despontam da areia cinza com apenas poucos centímetros de altura, longe milhares de quilômetros da realidade fotografada. O trabalho vira quase a miragem em uma terra desértica, em busca de água. E quando se nota um arbusto verde no meio da terra queimada…eis o oásis de esperança e de representação da força da natureza selvagem.
O “sofrimento” surdo e mudo do solo, depósito de matéria morta, como galhos e folhas, frutas e flores queimadas, permanece após a dor da perda e é elaborado através da câmera escura, no momento da revelação dos filmes. E nesta passagem, a fotógrafa suíça realça alguns aspectos do incêndio que ocorreu dias, semanas, meses, anos, décadas…atrás. Com uma refinada técnica de manipulação dos negativos do filme, ela sublinha, contorna e amplia fenômenos já com os prazos visuais vencidos, ou seja, realizados e…desaparecidos, tais como as últimas brasas de um tronco no fim da fogueira.
E, como num passe de mágica, surgem nuvens de fumaça como testemunhas do bosque que arde sob as chamas. Elas criam a ideia de presente na fotografia e dão a ela a impressão de movimento provocado pelo vento. A associação ao cheiro de queimado é quase natural neste diálogo entre o espectador da cena e a imagem imortalizada e, de certa forma, ressuscitada e reanimada. “Ao usar o ácido sobre o negativo ela evidencia o fumo, o odor, a estética do tema”, explica Maurer Zilioli.
Stefania Beretta desnuda o processo de transformação da paisagem. Ela consegue recuperar os reflexos da luz irregular e “bailarina” das chamas com grande sensibilidade. A coreografia das labaredas resta fixada no terreno arrasado como se ela fosse a impressão digital do incêndio. O ambiente fantasmagórico conquista o olhar e resgata a importância que poucos exercem e pesquisam na zona e nos momentos periféricos dos eventos.
Stefania Beretta nasceu em Vacallo, em 1957, Suíça. Atualmente, ela vive em Verscio.
Ela é especializada em fotografias de arquitetura e objetos de arte, mas, as pesquisas pessoais ganharam impulso.
A fotógrafa concentra a sua atenção, principalmente, em eventos que acontecem e se perdem na memória.
Desde 1985 expõe com regularidade na Suíça e em outros países da Europa, em mostras individuais e coletivas.
As suas obras estão em coleções privadas e públicas com na Fundação Suíça para a Fotografia e na Biblioteca Nacional de Paris.
Em 1997, realizou um trabalho fotográfico para a Fundação Galleria Gottardo de Lugano, “O Gottardo”.
Em 2006, a artista retratou Cave, a exploração do mármore, na Sicília, sob encomenda da Fundação Credito Valtellinse.
No campo pessoal realiza trabalhos importantes na mesma “estrada” de In Memoriam. Como Holy Places e Trop.
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