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Girenbad: um campo de “triagem”

Photo de groupe d internés dans un camp d internement de la Seconde Guerre mondiale
Foto de grupo dos internados do campo Girenbad. Archives familiales d'Annette Wieviorka

Em seu último livro, a historiadora francesa Annette Wieviorka evoca o campo suíço onde judeus estrangeiros foram internados entre 1942 e 1943. E onde o escritor Manès Sperber deu incríveis palestras no refeitório.

“Meu pai sempre me falou de uma forma muito positiva sobre seu exílio na Suíça”, confidencia a historiadora Annette Wieviorka, cujo último livro, Tombeaux (“Túmulos”), conta a história de sua família. É ainda mais surpreendente que esse exílio tenha tido lugar nos… campos de internação durante a Segunda Guerra Mundial.

Agosto de 1942. Refugiados em Nice, na “zona livre”, a família Wieviorka sentiu a ameaça aproximar-se após a rusga lançada contra os judeus pelo governo de Vichy em 16 de agosto. O pai de Annette Wieviorka, Abraham, conhecido como Aby, 21 anos, seu irmão mais novo Méni e o amigo Jacob Pakciarz decidem fugir ilegalmente para a Suíça.

De Nice, eles pegaram um trem para Cluses, na Alta Saboia, depois um carro até Taninges. Ali, subiram a pé até à passagem de Coux, a uma altitude de quase 2.000 metros, conduzidos por um guia. Objetivo: atravessar discretamente a fronteira suíça e ir até Champéry, no Valais. O escritor Manès Sperber (1905-1984), que tinha feito a mesma jornada quinze dias antes, demorou dois dias para finalmente chegar a Champéry.

Em uma antiga fábrica de tecelagem

A fronteira é atravessada. Mas não se tratava de permanecer em solo valaísta. Aby, Méni e Jacob sabiam que a Suíça podia devolver os fugitivos se estes ficassem perto da fronteira. O Conselho Federal acabara de assinar um decreto estipulando que todos os estrangeiros sem visto deviam ser repelidos “mesmo que isso lhes cause sérios inconvenientes, tais como pôr em perigo a própria vida ou a integridade física”.

Os três jovens escapam em um trem rumo a Zurique, onde a Entraide Israelita os aconselha a apresentar-se à polícia. Em 16 de outubro, eles se juntam ao campo de Girenbad, perto de Hinwil. Um “campo de triagem” (Auffanglager), sob autoridade militar, “onde os refugiados, enquanto aguardavam a elaboração de seus dossiês, podiam ser obrigados a executar algumas tarefas, mas não a trabalhar”, explica Annette Wieviorka.

Homme posant devant un arbre
Aby Wieviorka, em Girenbad. Archives familiales d’Annette Wieviorka

Neste encantador vilarejo em Oberland, Zurique, uma antiga fábrica de tecelagem albergou 350 judeus estrangeiros em fuga de uma Europa dominada pelos nazistas. “Méni se surpreende”, diz a historiadora em seu livro. Para ele, ser judeu significava falar o iídiche e ser de esquerda. Mas entre essas pessoas “reunidas pela única razão de que eram judias” encontravam-se bandidos e proxenetas que ignoravam o iídiche.

Tratados “como leprosos”

As condições materiais no campo eram “bastante básicas”, contou-nos outro internado, Boris Fraenkel (1921-2006), em 2001. “Dormíamos sobre palha, comíamos polenta ‘rala’ no almoço e no jantar. Não havia chuveiro. Jogávamos cartas e xadrez, participávamos com mais ou menos relutância das tarefas, especialmente daquela de descascar batatas. Em suma, matávamos o tempo como podíamos.

Sobre o campo de internação, as opiniões divergem. Aby tem boas lembranças, Méni é mais reservado. Manès Sperber o julga muito severamente. “O pior era o tom desdenhoso e brutalmente desprezível com o qual os soldados, oficiais subalternos e a maioria dos oficiais se dirigiam aos refugiados”, diz Sperber em suas memórias. “Sem dúvida que as tropas recebiam ordens para nos tratar como leprosos”.

Grande intelectual vienense, psicólogo e ex-comunista crítico de Stálin, Manès Sperber, na época com 37 anos de idade, decidiu tomar as rédeas nas mãos e transmitir um pouco de seu conhecimento a esses jovens judeus mais habituados a se virar do que a estudar. O programa incluía palestras todas as noites, “seguidas de longas discussões”.

“Sperber organizou uma verdadeira universidade popular”, disse Boris Fraenkel. Uma escola de cultura geral, onde descobri as artes, a política e a literatura. Minha universidade sem livros. Além das palestras, Manès Sperber tomava conta de uma pequena biblioteca doada pela Cruz Vermelha.

Josef Schmidt, o “Caruso judeu”

O intelectual austríaco está bem cercado. “À minha esquerda estava Franz Fein, um excelente tradutor de literatura anglo-saxônica (…) À minha direita outro vienense, Fritz Saxl, jurista e historiador de arte apaixonado”, conta Sperber em suas memórias.

Havia também Lucien Goldmann, especialista em Racine e futuro discípulo de Jean Piaget na Universidade de Genebra. “Aby o imitava, ligeiramente corcunda, andando pelo campo enquanto lia um livro, colocado na palma das mãos”, escreve Annette Wieviorka.

Em outubro de 1942, a esse incrível caldo de cultura europeia, concentrado no campo de triagem de Girenbad, chegou um homem muito pequeno – 1,50m – “flutuando num casaco de pelo de camelo demasiado amplo”, diz Annette Wieviorka. Era Josef Schmidt, o “Caruso judeu” ou “Caruso de bolso”.

Um tenor de elite, que ainda pode ser visto no filme “Ein Lied geht um die WeltLink externo“, Schmidt começava a fazer um nome no mundo lírico alemão quando Hitler chegou ao poder. Banido da Alemanha por ser judeu, Josef Schmidt viajou pela Europa antes de fugir para a Suíça.

Ele tinha 38 anos de idade. Em novembro, queixando-se de dor, o tenor foi hospitalizado em Zurique. Os médicos disseram que era uma “simulação” e mandaram-no de volta para o campo. Morreu dois dias depois de um ataque cardíaco. “A morte súbita de Josef Schmidt causou um terremoto entre os internos”, observa Annette Wieviorka.

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Photo historique de deux garçons dans un jardin

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Refugiados judeus na Suíça

Este conteúdo foi publicado em As imagens nesta galeria mostram refugiados judeus na Suíça. Elas pertencem ao acervo do Memorial do HolocaustoLink externo em Paris.

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As palestras de Manès Sperber não pararam. É difícil imaginar esses cursos improváveis, dados no refeitório do campo. No lado de fora, o cenário montanhoso e rural do Oberland zuriquenho. Na sala, alguns brincam, outras tentam concentrar-se no “curso”. “Por causa do barulho ensurdecedor, o nosso grupo se reunia na extremidade da sala”, escreve Sperber. “Os brincalhões reclamavam, dizendo que os forçávamos a se esforçarem mais e que nossas palestras os deixavam perturbados”.

De que se trata aqui? “Meu pai não me deu os pormenores, mas podemos imaginar a aura de Sperber, dotado de uma imensa cultura, comunista, interessado na psicanálise, amigo de André Malraux e Arthur Koestler, entre jovens que não tinham uma educação formal”, ressalta Annette Wieviorka.

Com as felicitações do comandante

Toda essa incrível aventura chegou ao fim quando os internos do campo foram dispersos em março de 1943. Aby e Méni foram transferidos para o campo de trabalho de Arisdorf, no cantão de Basileia-Campo. Dezessete meses de internamento, passados em trincheiras, vão deixá-los com muito menos lembranças do que os cerca de seis meses em Girenbad.

Manès Sperber pôde finalmente encontrar a esposa e o filho em Zurique, acolhido pelo pastor Adolf Maurer, que se tornará seu amigo. Quando de sua partida de Girenbad, o comandante do campo agradece calorosamente a Sperber: “Seu empenho permanente, sua atividade incansável, seu comportamento correto e seu espírito de camaradagem contribuíram consideravelmente para aliviar meu difícil trabalho. Seus esforços para despertar a vida cultural no campo de refugiados de Girenbad geraram frutos”.

“Meu pai costumava dizer que a única coisa pela qual podemos censurar a Suíça é não ter aberto mais suas fronteiras”, confessa Annette Wieviorka. “E ele sabia o que estava dizendo…” Os pais de Aby, que não tentaram a viagem para a Suíça, morreram em Auschwitz.

Adaptação: Karleno Bocarro

Para ler

– Túmulos, Autobiografia de minha família, de Annette Wieviorka, edições du Seuil.
– Além de esquecer, de Manès Sperber, edições Calmann-Lévy.
– Manès Sperber, Trágica esperança, de Olivier Mannoni, edições Albin Michel.

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