Governo nomeia responsável para cuidar de arte roubada
Depois de ignorar por longo tempo o problema da arte saqueada em coleções públicas, a Suíça se volta para a questão. Nikola Doll assume um papel central de coordenação e passa a ser, no Ministério suíço da Cultura, a responsável por questões relacionadas à arte saqueada.
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Quando, há dez anos, o recluso Cornelius Gurlitt deixou em testamento sua problemática coleção de arte ao Kunstmuseum de Berna, surgiu um novo ímpeto na política suíça com relação à arte saqueada pelos nazistas – um impulso que se perpetua até hoje. Nikola Doll, que conduziu durante sete anos uma pesquisa sobre a história da propriedade das obras de arte de Gurlitt, testemunhou tudo de perto.
E acaba de assumir um novo cargoLink externo no Ministério suíço da CulturaLink externo: ela será responsável pela pesquisa de procedência e por questões relacionadas à arte saqueada, abrangendo tanto os saques durante o regime nazista quanto o patrimônio adquirido em contextos coloniais. Doll vai coordenar ainda o escritório administrativo de uma nova comissão independente, a ser criada no final deste ano, que deverá julgar as reivindicações de propriedade de bens culturais em disputa, além de dirigir uma nova plataforma online para pesquisa de procedência.
No Museu de Arte de Berna (KunstmuseumLink externo), Doll encabeçou o primeiro departamento de um museu na Suíça dedicado à pesquisa de procedência, uma função que considerou “desafiadora e empolgante do começo ao fim”, como afirmou em entrevista à SWI. “Ansiosa pela mudança de perspectiva” em seu novo cargo, Doll disse ainda estar “aguardando para estender meu campo de atividades aos contextos da era colonial”.
Sua nomeação é uma prova de que, quase 80 anos após o fim da II Guerra Mundial, a Suíça começou a levar mais a sério sua responsabilidade pela arte saqueada pelos nazistas. A nova comissão independente cumpre um compromisso de 25 anos sob os Princípios de Washington, internacionais e não vinculativos, de estabelecer “mecanismos alternativos de resolução de disputas para resolver questões de propriedade”.
Centro de comercialização de arte saqueada
A Suíça foi um dos 44 países a endossar os Princípios de Washington em 1998Link externo. O país concordou em incentivar os museus a realizar pesquisas de procedência, identificar a arte apreendida pelos nazistas e buscar “soluções justas e imparciais” junto dos colecionadores judeus originais e seus herdeiros. No entanto, durante vários anos, não houve muita ação por parte do governo suíço.
Enquanto a Áustria, a Alemanha, a França, o Reino Unido e a Holanda já criaram comissões para avaliar os pedidos de restituição há mais de 20 anos, os museus da Suíça tiveram que lidar com esses pedidos por conta própria. As autoridades suíças argumentaram que o país nunca foi ocupado pelos nazistas e, portanto, não seria um repositório importante de arte saqueada. Entretanto, a Suíça serviu como um centro de comercialização de arte oriunda da Alemanha antes e durante a Guerra.
“A decisão de Berna de assumir o legado de Gurlitt levou a um novo debate sobre arte saqueada na Suíça”, afirma Doll. “Isso impulsionou esse processo”, completa.
Gurlitt herdou sua coleção do próprio pai, um negociante que trabalhava para Adolf Hitler, cujas transações incluíam obras de arte confiscadas de judeus ou vendidas sob coação. As autoridades alfandegárias alemãs apreenderam a coleção no apartamento de Gurlitt em Munique em 2012: quando se tornou pública em 2013, a coleção foi manchete em todo o mundo.
Após sua morte em 2014, a fundação que administra o Kunstmuseum hesitou antes de aceitar o legado de Gurlitt, que descreveu como “um fardo considerável de responsabilidade”, implicando “uma série de questões difíceis e delicadas”.
Uma questão de interpretação legal
Entre essas questões, estava a de como os museus suíços responderiam à conduta de Berna frente ao que na Suíça é frequentemente chamado de “Fluchtgut” (bens de fuga) – arte vendida por judeus durante o período nazista para financiar a fuga ou recomeçar a vida depois de terem perdido seus meios de subsistência e suas casas. Na Alemanha, essas vendas de arte são denominadas “perdas decorrentes da perseguição” e consideradas elegíveis para “soluções justas e imparciais” com os requerentes. Na Suíça, os pedidos de indenização por obras de arte vendidas sob coação foram recusados com frequência.
“Havia risco de que as obras dessa coleção, que seriam vistas como saqueadas na Alemanha, não fossem vistas como saqueadas na Suíça”, afirma Doll. Tanto ela quanto a diretora do Museu de Arte de Berna, Nina Zimmer, são alemãs. “Portanto, se um museu na Suíça começasse a avaliar as obras de forma diferente, isso não poderia ser ignorado”, completa.
A questão do “Fluchtgut” de fato veio à tona. Isabelle Chassot, que respondia pela pasta da Cultura na época, afirmou que o termo estaria sendo usado somente na Suíça e deveria ser, portanto, evitado. A posição oficial do governo suíço é: cada caso deve ser examinado individualmente, para determinar se uma venda foi “confiscatória” ou não.
O dilema de Bührle
O caso Gurlitt anunciou uma primeira mudança nas atitudes suíças frente à arte saqueada pelos nazistas, levando a uma “maior sensibilidade política no que diz respeito à necessidade de pesquisa de procedência”, comenta Doll.
O governo passou, então, a financiar pesquisas de procedência a partir de 2016: Na primeira rodada de financiamento, foram selecionados 12 projetos; na última rodada, foram 28, metade para pesquisas relacionadas à arte roubada pelos nazistas e metade para aquisições arqueológicas e do período colonial. O cantão de Berna começou a financiar pesquisas de procedência neste ano.
O financiamento adicional, por sua vez, levou a um aumento no número de pesquisadores de proveniência e nas vagas disponíveis. Em 2020, os pesquisadores de proveniência na Suíça até fundaram sua própria associaçãoLink externo.
Mas foram os protestos com relação à coleção de Emil Georg Bührle que finalmente deram o impulso necessário para que o governo criasse o cargo de Doll e uma nova comissão. Bührle, um industrial que vendia armas para a Alemanha nazista, também é conhecido por ter adquirido arte saqueada.
Quando sua coleção, emprestada pela fundação criada por ele ao Museu de Arte de Zurique (Kunsthaus ZurichLink externo), foi exibida em um novo anexo do Museu em 2021, críticos acusaram a fundação de ocultar a procedência de algumas obras de arte em exibição e exigiram uma revisão da exposição para que fosse possível refletir melhor sobre a história maculada da coleção. Uma comissão independente deve apresentar um relatório sobre a pesquisa de procedência da fundação em meados deste ano.
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Mandato há muito esperado
Em fins de 2021, Jon Pult, deputado-federal do Partido Socialista (PS) apresentou um projeto de leiLink externo reivindicando uma nova comissão independente. “A Suíça estaria dando sua contribuição para tratar de um capítulo sombrio da história, cumprindo sua responsabilidade na conduta frente a bens culturais perdidos em decorrência da perseguição nazista”, afirmou.
Doll afirma que a expectativa é de que o governo nomeie entre nove e 12 membros do painel ainda este ano. Sua diretrizLink externo estipula que a comissão vai emitir recomendações não vinculativas em disputas entre requerentes e proprietários atuais e poderá recorrer a especialistas externos em cada caso.
As reivindicações serão apresentadas ao Ministério da Cultura, que as recomendará ao painel para análise. A diretriz determina que qualquer obra de arte localizada na Suíça ou que tenha mudado de mãos no país é elegível para consideração. O mandato da comissão abrange tanto o patrimônio da era colonial quanto as perdas do período nazista.
Os requerentes podem solicitar uma avaliação independentemente da concordância do titular atual, desde que possam demonstrar que realizaram uma pesquisa de procedência e tentaram chegar a um acordo com o atual proprietário.
Novas “melhores práticas”
Isso significa que os museus suíços podem sofrer novas pressões para restituir ou indenizar obras de arte que foram vendidas sob coação, dependendo de como a nova comissão vai interpretar os acordos internacionais. No mês passado, 23 países – incluindo a Suíça – assinaram um novo acordo de “melhores práticasLink externo“. De acordo com essas novas diretrizes, destinadas a esclarecer ambiguidades nos Princípios de Washington, qualquer venda de arte por uma pessoa perseguida entre 1933 e 1945 “pode ser considerada equivalente a uma transferência involuntária de propriedade”.
A decisão do país de estabelecer uma comissão independente foi bem recebida internacionalmente. Em um relatório Link externopublicado recentemente sobre o progresso das nações na implementação dos Princípios de Washington, a Organização Mundial Judaica de Restituição e a Conferência de Solicitações Judaicas categorizaram a Suíça entre os países que “fizeram um progresso substancial”. Foram atestados “progressos importantes” de um total de sete países.
Segundo o relatório, a Suíça, após a introdução de um procedimento de requerimento, “parece que, em um futuro próximo, pode vir a se juntar aos países do topo da lista”.
Edição: Virginie Mangin e Eduardo Simantob
Adaptação: Soraia Vilela
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