Hotel Zero Estrelas: uma noite no abrigo nuclear
O que fazer com um bunker antiatômico sem utilização? Um pequeno vilarejo no interior da Suíça convidou dois jovens artistas para fazer do espaço um centro cultural. Eles terminam transformando-o no primeiro hotel "zero" estrelas do país e Sevelen em uma atração internacional.
No abrigo o mundo externo só pode ser visto através do circuito fechado de televisão e quem quiser tomar banho quente pela manhã precisa ter sorte na roleta.
Sevelen é um desses lugares que só se descobre que existe por estar no mapa. As ruas do pequeno vilarejo nessa comuna localizada no extremo leste da Suíça são limpas e vazias, os sinos da igreja batem a cada quinze minutos e, no único mercado, os funcionários cumprimentam com simpatia os compradores pelo nome.
Por estar fora do circuito turístico do país, Sevelen é uma cidade-dormitório que só precisa de um hotel. Seus pouco mais de 4.300 habitantes trabalham no comércio local, em uma das três grandes indústrias ou no país vizinho, Liechtenstein. Sua única atração são as montanhas que a cercam, pequenas demais para o esqui, mas cheias de trilhas e também esconderijos de animais e um paraíso para caçadores de cogumelos.
Porém a idéia do prefeito Roman Zogg colocou-a no centro das atenções da imprensa internacional. Mesmo o Herald Tribune dedicou uma reportagem ao recém-criado hotel, cuja segurança é tanta que até mesmo uma bomba nuclear não é capaz de derrubá-lo.
Uma obra de arte
Tudo começou através do projeto cultural “Cultura em Stampf”, que prevê a transformação de um prédio vazio na rua com o mesmo nome em um centro cultural, onde músicos da região poderão se apresentar. Como o único hotel é muito caro, Zogg sugeriu abrigá-los no bunker antiatômico ao lado, um complexo construído em meio à Guerra Fria nos anos 80 e que oferece espaço para mais de 500 pessoas. Escavado dentro da rocha e protegido por paredes de concreto espessas como muralhas de um castelo, ele praticamente não é utilizado, causando despesas à pequena comuna. Porém, a idéia não foi muito bem recebida, no começo.
“As pessoas disseram que ninguém ia querer dormir nesse lugar”, revela Zogg. Outro morador de Sevelen lembra que a aversão aos abrigos nucleares têm uma explicação prática. “Muitas vezes somos obrigados a dormir nesses espaços quando estamos cumprindo nosso serviço militar. Você imagina o que é estar cortado do mundo exterior, dormindo lado a lado com um monte de soldados? Depois de uns dias, o bunker começa a ter um cheiro extremamente desagradável”, conta Peter Merz-Wieser, arquiteto e habitante de Sevelen.
O objetivo então era tornar o bunker mais atraente. Para isso, a comuna decidiu contratar os serviços da dupla de artistas Patrik e Frank Riklin, que mantém em St-Gallen um escritório intitulado curiosamente de “Ateliê para Tarefas Especiais”. Os gêmeos de 35 anos vieram a Sevelen, inspecionaram o local e tiveram uma idéia revolucionária.
“Nós queremos quebrar as normas e ocupar os espaços pelos quais ninguém mais se interessa”, esclarece Patrik. O abrigo foi elevado por eles à condição de hotel, mas com a categoria de zero estrelas. Porém isso não significa que o serviço e o conforto oferecidos sejam completamente nulos. “Queremos ser criativos com os poucos recursos que temos à disposição. O lance é contrapor exatamente ao contexto de luxo dos hotéis de cinco estrelas, mostrando que, mesmo na mais absoluta simplicidade, existe também a beleza”, completa o jovem artista.
Categoria luxo
Em um manifesto pendurado na entrada do bunker, os dois intitulam o “Hotel Zero Estrelas” um projeto não apenas voltado para os turistas, mas também à comunidade de Sevelen. “O papel do diretor do hotel, mordomo ou recepcionista pode ser exercido por qualquer um voluntariamente. Os habitantes também emprestam o básico, como as camas, os criados-mudos, as lâmpadas de leitura, os lençóis e até as flores que colocamos na pia coletiva, que vêm de um agricultor local”, lembra Frank.
Por exigência do Exército suíço, todas as modificações feitas no abrigo precisam ser reversíveis em 24 horas. Assim os irmãos Riklin apenas reorganizaram o espaço interno, dando o seu toque artístico. O salão central, com as enormes pias coletivas e espelhos, se transformou no “foyer”, aparelhado com confortáveis cadeiras, uma estante para as bebidas e um grande monitor plano, no qual são transmitidas as imagens captadas pela câmara interna de TV. “Essa é única janela que temos para o mundo exterior”, explica Frank.
Os quartos, onde ficam originalmente centenas de beliches, também se adaptaram às diferentes “categorias” oferecidas no Hotel Zero Estrelas. Na categoria “simples”, o hóspede dorme dentro dos seus próprios sacos de dormir em um grande quarto com dezenas de beliches fixados lado a lado. Se a temperatura cair muito durante a noite – o sistema de climatização, um elemento técnico importante em um bunker, é desligado para diminuir os ruídos – ele pode pegar um dos clássicos cobertores do exército. Já na categoria “conforto”, os beliches recebem roupa de cama, toalhas e um saquinho contendo sabão e um chinelinho. A categoria “luxo” oferece tudo isso em verdadeiras camas de casal, peças do tempo dos avós emprestadas pelos moradores de Sevelen, e criados-mudos. O detalhe não podia ser mais suíço: como presente de boas-vindas, os hóspedes nessa categoria ainda recebem um chocolate caseiro.
Os preços são módicos e variam de 10 a 30 francos (US$ 8 e 25). No total, o Hotel Zero Estrelas oferece 54 camas. Parodiando os estabelecimentos de cinco estrelas tão comuns na Suíça, os dois irmãos tiveram idéias curiosas, como acordar os clientes da categoria luxo com o café levado à cama pelo mordomo ou as bolsas de borracha, que podem ser enchidas de água quente para esquentar os pés.
Roleta
O Hotel Zero Estrelas também tem um cassino, porém esse não faz ninguém ficar rico ou perder dinheiro. Devido às limitações do boiler instalado no bunker, só existe uma quantidade limitada de água quente. Por isso, os irmãos Riklin tiveram a idéia de fixar uma roda de bicicleta na parede e fazer com que os hóspedes a girem como uma roleta. Se a roda parar na categoria “simples”, mesmo o hóspede que pagou pela de luxo precisa se contentar com água fria. “Nesse período, em que tanto se fala de crise, essa é uma forma de mostrar que podemos tratar a escassez como algo que até pode divertir as pessoas”, diz Patrik.
Ele e seu irmão já realizaram dois testes com hóspedes reais. Em cada uma das noites, o hotel esteve lotado, sendo que uma grande parte dos hóspedes era de jornalistas. Com muito humor, ninguém se incomodava em ser filmado de pijama ou ser acordado de manhã com câmaras de televisão e holofote. Possivelmente parte do sucesso deve-se ao vinho servido durante o jantar, que ajudou a quebrar a timidez de muitas pessoas. “Estou me sentindo como na época da escola”, contou Liv Peters, química alemã que se inscreveu para participar do segundo teste por curiosidade. “Na Alemanha, só conhecemos os bunkers utilizados pelos nossos avós durante a Segunda Guerra.”
Patrik e Frank Riklin registraram a marca “Hotel Zero Estrelas” no Instituto Federal de Propriedade Intelectual. Até o início de 2009, os dois querem desenvolver um conceito de franquia, com critérios prédefinidos de atendimento e qualidade, que poderão ser utilizados por outras comunas na Suíça.
Com 300 mil abrigos atômicos para 7,5 milhões de habitantes, o país dispõe da maior concentração mundial desse tipo de construção. “Cada cidadão deve dispor de um lugar”, revela o guia turístico francês Guide du Routard e completa, “o espaço vital de cada pessoa é limitado a 1,20 metro quadrado”.
Muitos dizem ironicamente que, em caso de uma guerra nuclear, somente o governo dos Estados Unidos, baratas e outros insetos e os suíços irão sobreviver. Mas o fato é que esse complexo de abrigos custa bilhões aos cofres públicos do país e também ao contribuinte suíço, já que até mesmo a construção de um novo prédio obriga que este seja equipado com bunkers, com portas blindadas e sistemas de filtragem de ar e água.
Excessos do capitalismo
Questionado sobre a verdadeira utilidade dos bunkers, Peter Merz-Wieser dá um riso. “Imagina se quinhentos ou mais habitantes de Seleven fossem obrigados a passar semanas nesse espaço exíguo? Com tantos conflitos que temos, íamos acabar nos matando”, conta o arquiteto dando risadas. Mas ele lembra que, em casos realmente urgentes, as autoridades de defesa na Suíça também pensaram em formas de permitir que centenas de pessoas, idosos, doentes ou crianças, convivam nos bunkers sem pânico ou agressividade. “Para isso, eles dispõem de um grande estoque de tranqüilizantes”, revela.
Os primeiros hóspedes do Hotel Zero Estrelas não sentiram claustrofobia. A maior parte estava muito satisfeita com a experiência e prometia até recomendar aos amigos. Com o sucesso e a intensa cobertura na imprensa – reportagens em canais de TV da Áustria, Alemanha e Suíça, além de dezenas de artigos publicados em jornais internacionais – os irmãos Riklin conseguiram colocar Sevelen na boca de todos. “Nunca imaginava que fôssemos nos tornar tão famosos, tendo investido tão pouco”, alegra-se a secretária comunal Claire Angehrn.
Os eleitores de Sevelen aprovaram há uma semana mais crédito para a realização do projeto do centro cultural com o Hotel Zero Estrelas. Com o forte eco na imprensa, a comuna já tem mais um argumento para concretizar a idéia do funcionamento de um hotel no bunker como projeto-piloto de um ano. Até mesmo a Associação Suíça de Hotéis se interessou e convidou os dois irmãos a se inscreverem. Eles negaram. “Essa é uma forma deles limitarem a nossa idéia, pois trabalham com categorias clássicas. O que fazemos aqui é política, uma proposta para contrapor aos excessos do capitalismo. Eles querem é fazer negócio”, conclui Patrik.
swissinfo, Alexander Thoele
A Suíça dispõe de aproximadamente 300 mil bunkers e outros abrigos fortificados para serem utilizados pelos 7,5 milhões de habitantes em caso de ataque nuclear.
Cada cidadão tem direito a um lugar, correspondente a aproximadamente 1,20 metro quadrado.
Lucerna chegou a transformar o túnel de uma rodovia em abrigo antiatômico, capaz de abrigar até 20 mil pessoas. O espaço foi desativado e hoje pode ser visitado como museu.
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