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Inferno dantesco em filme de cineasta português

Cena do filme "Cavalo Dinheiro", do diretor Pedro Costa. Cortesia

"Cavalo Dinheiro" incomoda a crítica no Festival de Cinema de Locarno, pois não faz unanimidade. Sem dúvida, o filme da mostra competitiva rodado pelo veterano realizador Pedro Costa exorcisma demônios do passado violento de Portugal, mas também coloca em prisma a atual resignação e pessimismo vivido por um país frente ao abismo. Cento minutos que torturam até o final.


Solidão, o escuro e uma tristeza profunda: esses foram os sentimentos que abateram ontem o cinéfilo na sala de projeção ao assistir “Cavalo Dinheiro”, o recém-estreado filme do diretor português Pedro Costa, um dos 17 a participar do concurso na seleção oficial da 67.ª edição do Festival Internacional de Cinema de Locarno.

No quarto ano consecutivo em que o festival acolhe um filme português numa das suas competições principais, os organizadores escolheram um nome de peso do cinema lusófono. Autor de sete longas-metragens e cinco curtas, Pedro Costa se caracteriza por retratar na sua obra, de uma forma quase documental, o cotidiano de marginais e imigrantes dos bairros populares de Lisboa, especialmente Fontainhas, onde reside e encontra a grande parte dos seus personagens, atores amadores.

Em “Cavalo Dinheiro”, o diretor conta a história de Ventura, um cabo-verdiano envelhecido e doente que, entre momentos de delírio e razão, lembra passagens da sua vida entre as violentas manifestações que seguiram à Revolução dos Cravos, em 1974, o duro cotidiano como operário e imigrante e o desaparecimento da esposa. O enredo não é baseado em uma ficção, mas foi improvisado (escutar áudio abaixo) ao longo da rodagem do filme e também anos de convívio. “Tenho a mesma idade dele, mas levei quarenta anos para descobri-lo. Enquanto eu ocupava fábricas na época da revolução, ele e outros imigrantes se escondiam com medo dos socialistas”, lembra-se Costa.

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Doença que atinge todos

Os cenários escolhidos para “Cavalo Dinheiro” assustam. O personagem Ventura passa de porões escuros e úmidos a quartos e salas de hospitais insalubres, onde alguns vultos parecem caminhar como zumbis, para desaparecer inexplicavelmente em florestas escuras. O enredo, que parece ter sido implodido em fragmentos, permite até passagens quase intermináveis e estáticas como a cena rodada em um elevador. Surge um soldado armado pintado de ouro e estático como uma estátua. Ao fundo, gritos. O horror? Pedro Costa volta à história real do seu amigo e afirma a escolha estética. “É o filme que dita a sua lei e as suas regras: fomos eu e as pessoas que trabalharam nesse filme que pediram isso.”

Os pouco presentes no fórum do Spazio Cinema do festival de Locarno quase não se atreveram a levantar questões. O diretor foi evasivo e muitas delas não chegaram a ser completamente respondidas. Ele parece querer dizer que as imagens bastam. Porém, por que tanta decrepitude e desesperança? “Foram vários hospitais, pois Ventura passou por muitos deles. Uma vez foi um acidente de trabalho: ele caiu de um andaime. Depois foi a diabetes e, finalmente, a internação devido a uma doença ‘espiritual’ que não tem nome, mas que alguns médicos chamam de esquizofrenia ou tristeza”, explica o cineasta, fazendo em tom melancólico referência à própria pessoa. “Acho que todos temos essa doença por vezes, à noite. E Ventura tem essa doença todos os dias.”

Durante a conversa aberta, alguns dos presentes pareciam não esconder uma certa perplexidade com a falta de linearidade no filme. Pedro Costa se justifica ao fazer alusão às influências que torneiam o seu trabalho. “Algumas cenas como a do elevador podem parecer bem entediantes, mas ela foi inspirada em diretores russos como Eisenstein”. É um filme que se passa “num presente eterno”, como descreve, ao longo de uma noite que era “suposta ser estranha, poética, com algo de Baudelaire.”

Costa utiliza os espaços para simbolizar o martírio vivido por Ventura, criando uma angústia que aumenta durante a hora e meia de projeção. “O filme é espécie de colagem de todos os hospitais, subterrâneos e todos os corredores por onde ele andou com enfermeiros e doutores. O resto é a fábrica real onde trabalhou e que hoje está abandonada. E o elevador o leva… para o inferno. É um lado um pouco surrealista para o meu filme, que não posso negar.”

Para o crítico do jornal PúblicoLink externo, “Pedro Costa é o poeta altivo que acompanha Ventura e conduz o espectador por uma viagem sem regresso no comboio fantasma de um Portugal assombrado pela guerra colonial, pela revolução, pela descolonização”. Porém o cineasta ressalta na conversa com o público que o presente é o tempo marcado na película. “O filme está ligado à doença do Ventura. Ele está triste pelo estado em que as coisas estão e eu também”, considera, resumindo o que é hoje seu trabalho. “Prefiro fazer mais isso a comédias. Faço outro tipo de cinema.”

Poucos recursos e a crise

Questionado se o filme não retrata a atual crise vivida por Portugal, o diretor português afirma que, apesar de não tratar diretamente do tema na obra, ela esta intimamente relacionada. “Às vezes é preciso dizer a verdade. No meu país, os amigos, os familiares e o povo do Ventura estão muito mal. Eles estão muito pior do que nós nessa austeridade de Portugal, Grécia e Espanha atinge muito o povo português branco, mas atinge muito mais o povo português preto”, afirma.

O cineasta Pedro Costa durante o debate com o público em Locarno. swissinfo.ch

Se for fácil entender a miséria atual do imigrante cabo-verdiano, mais complicado é compreender no filme de Costa os fantasmas ligados à Revolução dos Cravos? Não teria sido ela um movimento de esquerda que depôs um regime ditatorial? Por que o Ventura tinha medo da revolução? “Eu perguntei e ele me disse que não acreditava naquelas palavras de que o povo seria o dono das fábricas. E ele tinha razão, infelizmente, pois a revolução durou uns dois anos e picos. Eu andava naquela época pelas manifestações acompanhado pelo Glauber Rocha e me lembro de que ele perguntava às pessoas se elas acreditavam na revolução e já via nos olhos delas que estava tudo perdido.”

O pessimismo é hoje uma das marcas de Pedro Costa. “O dinheiro é uma coisa terrível. Havia que queimar o dinheiro primeiro e depois recomeçar tudo”, afirma. Em sua opinião (escutar áudio abaixo), “Cavalo Dinheiro” pode ser visto também como um grito contra as adversidades vividas por Portugal e a resignação das pessoas.

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Para rodar o filme, ele gastou apenas 150 mil euros e teve o apoio de uma equipe de três pessoas. Finalizado duas semanas antes da apresentação em Locarno, “Cavalo Dinheiro” deve ser lançado em Portugal em novembro. 

Biografia

Pedro Costa nasceu em Lisboa em 3 de janeiro de 1959.

Ele estudou na Escola Superior de Teatro e Cinema de Lisboa e iniciou a carreira no cinema como assistente de realização de diversos diretores, dentre os quais João Botelho em “Um Adeus Português” (1985) e Joaquim Leitão no filme “Duma vez por todas” (1987).

Seu primeiro longa-metragem, “O Sangue”, foi rodado em 1989 e exibido no Festival de Veneza. A história da separação de dois irmãos após o desaparecimento do pai aborda uma temática que se tornará uma constante na carreira do cineasta, a vida das classes marginalizadas e de imigrantes.

Costa filmou “Casa de Lava” em 1994 na ilha vulcânica de Fogo em Cabo Verde, um filme que foi selecionado para a mostra “Un Certain Regard” no Festival de Cinema de Cannes.

Após aprender o dialeto crioulo cabo-verdiano e estreitar suas relações com a população local e imigrantes em Portugal, o diretor realizou ao longo dos anos uma trilogia de filmes denominada “Fontainhas”, do nome de um bairro popular em Lisboa: “Ossos” (1997), “No Quarto da Vanda” (2000) e “Juventude em Marcha” (2005).

“No Quarto da Vanda”, filme realizado com câmaras digitais mini-DV, recebeu distinções pela FIPRESCI, a Federação Internacional da Imprensa Cinematográfica, prêmios em três categorias em Locarno e também o Prêmio France Culture para o Cineasta Estrangeiro do Ano, no Festival de Cannes em 2002.

Costa retornou em 2001 com o documentário “Onde jaz o teu sorriso?” sobre o casal francês de diretores de cinema Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, falecidos nos anos 1930.

O longa-metragem “Juventude em Marcha” foi realizado em 2006 e apresentado em Cannes. Três anos depois, Costa apresenta o documentário “Ne Change Rien” sobre a atriz e cantora francesa Jeanne Balibar.


Links:

OPTEC – Sociedade Óptica Técnica Lda. LisboaLink externo


Alguns filmes de Pedro Costa disponíveis no YouTube

OssosLink externo

Ne change rienLink externo


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