Coleção de obras de arte de Zurique é investigada por supostas conexões com regime nazista
Relatório questiona a origem de coleção de pinturas impressionistas e modernistas exibidas no museu de belas artes de Zurique. “Há uma ligação historicamente muito clara entre a perseguição de colecionadores judeus pelos nazistas e a coleção Bührle”, disse Raphael Gross ao SWI swissinfo.ch. "Esta coleção está particularmente contaminada”.
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Presidente do Museu Histórico Alemão em Berlim, Gross é o responsável por um relatório que indica que a coleção de arte Bührle tem um passado contaminado pela ligação com o regime nazista. A investigação feita pelo museu alemão concluiu que a pesquisa de procedência apresentada anteriormente pela Fundação detentora das obras não havia sido conduzida de maneira adequada.
Um escândalo explodiu em 2021 quando o museu Kunsthaus inaugurou uma nova extensão de galerias, em parte para exibir obras primas de artistas como Van Gogh, Cézanne e Monet. O que gerou indignação foi o fato de que a nova área do museu, projetada por David Chipperfield e que custou CHF 206 milhões (US$ 230 milhões), começou a abrigar obras emprestadas pela fundação EG Bührle Collection.
As obras cedidas integram a coleção formada por Emil Georg Bührle, um industrial suíço que se tornou o homem mais rico do país vendendo canhões antiaéreos à Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial. Bührle também é conhecido por ter lucrado com o trabalho escravo nos campos de concentração nazistas e por ter comprado obras de arte roubadas de judeus pelo regime de Adolf Hitler.
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Quando as obras da coleção privada começaram a ser exibidas no museu, historiadores e pesquisadores levantaram dúvidas sobre as origens de algumas das peças e acusaram a fundação criada por Bührle de esconder a procedência das obras. Alguns estudiosos até disseram que o museu nunca deveria ter aceitado o empréstimo, dadas as origens da riqueza de Bührle.
Em resposta a indignação dos críticos, o cantão e a cidade de Zurique, juntamente com os curadores do museu Kunsthaus, pediram a Raphael Gross que fizesse um relatório avaliando a pesquisa de procedência das obras entregue pela Fundação Bührle.
Apresentado no final de junho, Link externoo relatórioLink externo de Gross concluiu que a pesquisa entregue pela Fundação Bührle era incompleta – “muitas vezes era tão superficial que indicadores decisivos foram ignorados”, descreve. Segundo o relatório, é urgente pesquisar mais a fundo a origem da coleção de Bührle.
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Omissões inconvenientes
A investigação sobre a origem – que traça o histórico de propriedade de uma obra de arte – é essencial para determinar, por exemplo, se uma pintura foi roubada de um colecionador judeu ou vendida como resultado da perseguição nazista e, portanto, estaria sujeita a restituição segundo prerrogativas internacionais.
O relatório conduzido por Gross concluiu que, das 205 pinturas emprestadas até 2034 ao Kunsthaus, 133 obras pertenciam a judeus em algum momento antes de 1945. A conclusão difere do levantamento entregue pela Fundação anteriormente, que não listou muitas dessas obras que tiveram proprietários judeus.
“Esta coleção está particularmente contaminada, numa escala que é possivelmente única na Suíça”, disse Gross em entrevista à SWI swissinfo.ch. “Há uma ligação historicamente muito clara entre a perseguição de colecionadores judeus pelos nazistas e a coleção Bührle.”
“Sabemos através de outras pesquisas históricas que Bührle lucrou indiretamente com o trabalho escravo nos campos de concentração alemães que produziam armas sob licença, e sabemos que depois de 1945 ele tinha mulheres suíças trabalhando para ele em condições de quase trabalho escravo. Portanto, há um problema ético com a origem de seu dinheiro”, disse Gross.
“Além disso, ele usou o dinheiro que ganhou nesses termos para construir sua coleção. Ele começou a colecionar em 1936, quando a perseguição aos judeus na Alemanha estava bem encaminhada e o mercado havia mudado com colecionadores judeus vendendo suas obras por conta da pressão da perseguição”.
Em 2022, a administração da cidade e do cantão de Zurique assinaram um novo Link externocontrato de financiamentoLink externo com o conselho de administração do Kunsthaus, que estabelece que o museu deve fazer pesquisas sobre a origem das peças exibidas e retirar da exposição quaisquer pinturas que tenham sido roubadas de judeus ou vendidas como resultado de perseguição.
Posturas morais e éticas erradas
O relatório de Gross indica que os curadores do museu de Zurique devem criar uma comissão independente para avaliar obras individuais com base em uma nova pesquisa de procedência conduzida pela Kunsthaus, para determinar quais pinturas devem seguir expostas. Tal comissão, disse ele, aliviaria o fardo da gestão do museu.
O documento também questiona a presença do nome de Bührle na descrição da coleção, argumentando que a menção “dignifica seu nome e, portanto, toda a sua coleção. No contexto dos resultados deste relatório, surge a pergunta: uma instituição pública pode resolver isto com a sua postura moral e ética?”.
A cidade e o cantão de Zurique, junto com os curadores do Kunsthaus, declararam em um comunicado reconhecerem que “uma parte considerável das obras da Coleção Bührle eram de propriedade judaica antes da Segunda Guerra Mundial”.
Seguindo a linha defendida pelo relatório de Gross, a comissão do museu declarou ser seu dever “tomar as medidas apropriadas o mais rapidamente possível”. “Vamos realizar mais pesquisas sobre a procedência das obras, em primeiro lugar. Isto constituirá a base para uma avaliação das obras de arte perdidas devido à perseguição nazista e a busca por soluções justas.”
No entanto, tanto as autoridades públicas como a comissão do museu salientaram que a decisão de restituir ou não as pinturas aos herdeiros de colecionadores judeus cabe à Fundação Bührle como proprietária da coleção. Eles disseram que a fundação concordou em iniciar discussões sobre o que fazer após as férias de verão. Em resposta ao relatório de Gross, o conselho da fundação disse apenas que “examinará o relatório e comentará sobre ele no devido tempo”.
Mas duas semanas antes de Gross divulgar o seu relatório, a Fundação Bührle anunciou que iria procurar acordos com os herdeiros dos antigos proprietários judeus de cinco pinturas, de Monet, van Gogh, Gauguin, Gustave Courbet e Toulouse-Lautrec.
A fundação declarou que a decisão não se baseou em novas pesquisas, mas sim em novas diretrizes internacionais para o tratamento de obras de arte perdidas devido à perseguição nazista. Aprovadas em março por 25 países, incluindo a Suíça, as novas “ Link externoMelhores Práticas para os Princípios de Washington sobre Arte Confiscada pelos NazistasLink externo” visam esclarecer e reforçar os Princípios de Washington de 1998.
Sobre uma sexta pintura, La Sultane, de Edouard Manet, a fundação disse que buscaria um “acordo simbólico” com os herdeiros do colecionador de arte judeu Max Silberberg, morto em um campo de concentração, embora as circunstâncias da perda não se enquadrem, na opinião da fundação, nos critérios destas Melhores Práticas.
A raposa no galinheiro
Na opinião de Gross, a decisão da fundação de iniciar conversas com herdeiros de algumas dessas obras não respondeu às questões levantadas sobre a pesquisa de origem incompleta apresentada anteriormente. Para ele, o movimento da fundação parece mais “uma resposta à crise para mostrar que estão dispostos a fazer alguma coisa”.
A equipe do museu alemão investigou a fundo quatro outras pinturas da coleção para avaliar a pesquisa de procedência feita pela equipe da Bührle. Eles descobriram, por exemplo, que a pintura Cabeça de uma Camponesa (1885), de Vincent van Gogh, pertencia a um colecionador judeu no período nazista. Já o relatório da Fundação Bührle descreveu a origem da mesma obra como “sem nenhuma indicação de conexões problemáticas”.
Para Gross, a divergência entre as informações apresentadas pela fundação e os achados de sua equipe ressaltam a importância de uma investigação independente sobre a procedência. As diretrizes de boas práticas aprovadas em março apontam que “a investigação da origem, especialmente no que diz respeito a potenciais alegações, idealmente deve ser conduzida por um organismo de investigação independente para evitar possíveis conflitos de interesses”.
A maior parte das pesquisas de origem de obras de arte, porém, “é conduzida pelos proprietários, então essa é a regra, não a exceção”, disse Gross.
“É um grande problema”, disse ele. “É evidente que a investigação deve ser sempre independente, para evitar possíveis conflitos de interesses. Mas no mundo da arte, o que temos são bens valiosos sendo pesquisados por seus donos – o que claramente não é independente.”
Edição: Mark Livingston/fh
(Adaptação: Clarissa Levy)
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