Israel, diáspora e Gaza: festival de cinema suíço expõe as fraturas da identidade judaica
Michel Rappaport, diretor do Festival de Cinema Judaico Yesh!, em Zurique, conversa com a SWI swissinfo.ch sobre os desafios de montar a programação do festival deste ano e sobre a reflexão feita pela diáspora judaica após os ataques terroristas de 7 de outubro de 2023.
Há dezenas de festivais de cinema judaicos ao redor do mundo, de Hong Kong ao Canadá. Somente nos Estados Unidos, existem pelo menos 20 desses festivais. Eles vão de pequenos eventos comunitários até empreendimentos profissionais, como os festivais de Toronto, Londres e Nova York.
A multiplicidade de festivais de cinema judaicos reflete a diversidade das identidades e perspectivas judaicas, que muitas vezes estão em conflito: seculares e religiosas, sionistas e antissionistas, tradicionalistas e reformistas, Israel e a diáspora, e muitas outras nuances.
“Esse aspecto multicultural do judaísmo é realmente fascinante, mas ele também o torna extremamente complexo”, diz Michel Rappaport, diretor do Festival de Cinema Judaico Yesh!Link externo, em Zurique.
Em hebraico, a palavra “yesh” tem muitos significados, mas geralmente está relacionada à existência ou presença de algo. No caso do festival, representa os 34 filmes exibidos na maior cidade da Suíça, de 7 a 14 de novembro. O evento também contou com sessões de perguntas e respostas com os diretores e com um debate sobre o polêmico documentário Israelism, de Erin Axelman (EUA). Em suma, houve muitas oportunidades para refletir sobre a eterna questão do que significa ser judeu.
Especialmente para não judeus
O Yesh!, que comemora sua 10ª edição este ano, nasceu a partir de um cineclube da comunidade judaica de Zurique. Para Rappaport, o mais importante – e o motivo pelo qual esse arquiteto dedica quase metade de seu tempo ao evento – é fazer do festival uma plataforma para discussões abertas que unam pessoas, judias e não judias, através do cinema. “Se o festival fosse apenas para judeus, eu não o faria”, afirma.
Ao longo dos últimos dez anos, o festival amadureceu profissionalmente e lotou os cinemas locais. Rappaport atribui parte de seu sucesso ao fato de ter melhorado seu perfil, exibindo filmes mais “progressistas” que não são necessariamente apreciados por todos. “Isso não significa que eles expressem a nossa opinião. Algumas pessoas acham que é uma provocação, mas tudo o que queremos provocar é uma discussão séria”, diz ele.
A programação deste ano apresentou uma mistura de documentários e filmes de 14 países diferentes, incluindo o documentário No Other Land, que recebeu o prêmio de melhor documentário no último Festival Internacional de Cinema de BerlimLink externo (Berlinale), em fevereiro. Seus diretores – o palestino Basel Adra e o israelense Yuval Abraham – enfrentaram reações violentas, inclusive ameaças de morte, após fazerem um discurso defendendo a coexistência pacífica. Alguns políticos israelenses e alemães disseram que o discurso era antissemita. Mas isso não desanimou Rappaport.
Ataques de 7 de outubro
“Tornou-se uma espécie de tradição incluir filmes palestinos no Yesh!, porque é um tema importante para nós, judeus, e para o mundo inteiro – ainda mais agora, depois do que aconteceu no ano passado, em 7 de outubro”, destaca Rappaport.
E assim chegamos ao assunto inevitável: os ataques terroristas cometidos pelo Hamas em 7 de outubro de 2023, a ameaça do Irã e a reação de Israel, que se expandiu de Gaza para o Líbano, a Síria e o Irã, aproximando-se de uma guerra regional. Os judeus e judias que vivem fora de Israel não têm como escapar dos debates sobre o conflito e isso não pôde ser evitado durante a elaboração da programação, disse o diretor do festival.
Rappaport lembra que apenas metade da programação do festival é composta por filmes israelenses, e somente um deles foi feito após 7 de outubro – o documentário Supernova sobre a rave no deserto que foi invadida pelo Hamas. “Um filme demora pelo menos três anos para ser feito. Todos os outros [filmes] estavam sendo produzidos antes de 7 de outubro”, explica. “Seria possível dizer que estão desatualizados, mas eles ainda são muito contemporâneos. Talvez tenham se tornado ainda mais relevantes por causa do que aconteceu”.
Foi lamentável, para dizer o mínimo, que muitas das vítimas do Hamas fossem pessoas que se identificavam com o chamado “campo da paz” – uma força política cada vez menor em Israel. A cena cinematográfica israelense também é uma das poucas áreas em que os progressistas ainda predominam. Mas isso não tem garantido muita simpatia no exterior.
Em setembro, 300 cineastasLink externo publicaram uma carta aberta exigindo o boicote de dois filmes israelenses na programação do Festival de Cinema de Veneza. Um deles é Why War, dirigido por Amos Gitaï, que é crítico de Israel e provavelmente é o cineasta israelense mais importante da atualidade.
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Uma voz suíça grita o desespero da esquerda israelense em Berlim
O dilema da diáspora
Os acontecimentos em Israel e no Oriente Médio tiveram um impacto profundo sobre Rappaport. Ele acredita que a extrema direita israelense sequestrou a identidade judaica com sua mistura explosiva de nacionalismo e religião. “É realmente uma pena que tenhamos que nos distanciar de partes de Israel, quando, na verdade, não queremos isso. Mas é preciso fazê-lo mais cedo ou mais tarde”, diz o diretor do festival.
Rappaport admite, no entanto, que talvez seja injusto criticar a sociedade israelense estando fora do país. É preciso ter empatia por ambos os lados.
“Não tenho que conviver com a ameaça, meus filhos não precisam se alistar no exército”, diz ele. “Não sei como reagiria”.
“Mas, por outro lado, a distância também pode ajudar. A diáspora talvez possa ajudar os israelenses dizendo: ‘Vejam bem, deem um passo para trás e observem o que estão fazendo’. Acho que é essencial refletir e ter uma perspectiva de coexistência. Não culpo apenas os israelenses, mas muitas coisas deram errado nos últimos 75 anos”.
Ele confessa que muitas vezes se sente atônito: “Há aproximadamente 30 anos, os israelenses parecem estar cegos. Eles desfrutaram de uma economia perfeita, do boom do setor de tecnologia… mas, debaixo de seus narizes, a Ocupação ocupou Israel. Eu sempre temi que algo acontecesse algum dia, pois a situação não poderia continuar daquele jeito para sempre. E isso aconteceu, infelizmente, há um ano”, reflete.
Se unir?
No final deste mês, Genebra sediará o 13º Rencontres Cinématographiques Palestine, Filmer c’est Exister (27 de novembro a 1º de dezembro), um festival dedicado a filmes palestinos. Houve outro festival do tipo em Zurique, para o qual Rappaport também foi convidado, mas o Yesh! e esses eventos são separados.
Rappaport diz que, obviamente, seria bom se houvesse um festival judaico-palestino na Suíça, mas essa ainda é uma realidade distante.
“Eu queria exibir um filme palestino no Yesh!, mas os produtores árabes disseram aos distribuidores que não nos dariam o filme”, explica ele. “Alguns palestinos também estão sendo pressionados a não entrarem em contato com judeus para buscar cooperação ou até mesmo paz”.
A busca de Rappaport por vínculos com o outro lado requer, em primeiro lugar, uma conscientização sobre a situação difícil dos palestinos e imaginação para visualizar como a coexistência entre as duas comunidades seria possível. “Há muitas armas e nenhuma visão positiva sobre um futuro pacífico”, lamenta ele. No que diz respeito à visão, por enquanto, temos apenas os filmes.
Edited by Simon Bradley
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Festival Yesh! de cinema explora as diversas identidades judaicas, e inclui palestinos
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