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Jack Kerouac, o pintor, quem diria? Foi parar no Ticino

Kerouac painting at the Sciolli residence
"The Slouch Hat" (O Chapéu Desleixado; óleo e carvão sobre papel, c.1960) encontra-se pendurado na parede de uma vila do século XVI em Pura, cantão do Ticino, rodeado de várias obras de arte de propriedade dos irmãos Sciolli. O quadro evoca o público da famosa Cedar Tavern em Nova Iorque, ponto de encontro de poetas como Allen Ginsberg e Bob Dylan nos anos 1960. Eduardo Simantob/SWI

É um fato pouco conhecido que o escritor americano Jack Kerouac, um dos "padrinhos" da contracultura dos anos 1960, era também um pintor cujas obras estão agora nas mãos de dois colecionadores suíços.

Arminio Sciolli vislumbrou pela primeira vez um lote de quadros de Jack Kerouac numa feira de livros em Milão, há 15 anos, e perguntou se alguma das peças estava à venda. Sim, foi-lhe dito, mas elas já estavam reservadas para o ator americano Johnny Depp.

Swiss photographer Robert Frank s NY telephone number scribbled on a paper.
A história em um guardanapo: a importância deste pequeno pedaço de papel não é o desenho, mas o número de telefone rabiscado do fotógrafo suíço Robert Frank. Frank dirigiu (com Alfred Leslie) o filme experimental “Pull my Daisy” (1959), adaptado do terceiro ato de uma peça teatral de Kerouac chamada “Beat Generation” e nunca encenada. Kerouac escreveria também a introdução ao primeiro livro de fotografia de Frank, “Os Americanos”, que o levou à fama internacional. Eduardo Simantob/SWI

Entretanto, com a crise financeira de 2008, Depp desistiu de seu plano de comprar as peças. Junto com seu irmão Paolo, Arminio, advogado, galerista e colecionador de arte sediado no cantão suíço do Ticino, ofereceu-se para comprar toda a coleção de cerca de 100 quadros e desenhos, mais algumas memorabilia – roupas, tênis, uma caixa de lápis de cera, e um gravador que registrou as conversas que Kerouac usou em livros como Visions of Cody.

Parte da coleção foi mostrada numa grande exposição no Centro Pompidou, em Paris, comemorando a geração Beat em 2016. Três anos mais tarde, a coleção de Kerouac teve uma exposição individual completa em Milão com um livro-catálogo que finalmente trouxe à luz um lado muito pouco conhecido de um dos escritores americanos mais influentes do século XX.

A ascensão de Kerouac ao panteão das letras americanas e à aclamação mundial só veio depois que ele e seus companheiros “beatniks” rasgaram as convenções e o decoro do mundo literário. Durante a maior parte de sua vida, Kerouac foi uma figura marginal, desprezada pela maior parte do establishment literário. Truman Capote proferiu talvez o comentário mais famoso sobre o livro “On the Road” de Kerouac (1957): ” Isso não é escrita, é datilografia”. Kerouac respondeu com uma pintura não muito lisonjeira de Capote.

Truman Capote, 1959
“Truman Capote”, 1959. A resposta de Kerouac ao autor então mais bem sucedido da época, que chamou o livro “On the Road” (Pé na Estrada) de Kerouac um mero exercício de datilografia. Eduardo Simantob/SWI

Quanto aos seus desenhos e pinturas, o valor deles não pode ser medido apenas por sua estética. Os curadores italianos Sandrina Bandera, Alessandro Castiglioni e Emma Zanella observam em sua introdução ao catálogo da exposição que “as obras não devem ser abordadas usando os métodos tradicionais de um crítico de arte […] Afinal, Kerouac sentia a necessidade de transmitir suas idéias e sentimentos através de uma série de ferramentas e visões, considerando a expressão artística em sua totalidade”.

Na verdade, as peças da coleção de Kerouac são difíceis de avaliar individualmente. Elas vão de pinturas a óleo sobre tela a esboços desenhados sobre guardanapos, influenciados pelo surrealismo e pelo expressionismo abstrato que estavam na moda no cenário artístico nova-iorquino dos anos 50.

Os temas variam de retratos de amigos e amantes a reflexões sobre religião – os traumas do catolicismo e uma suposta redenção através da meditação budista, e o aperfeiçoamento de sua persona que ele chamava de “santo tolo” (ou santo louco – “holy fool”, em inglês). Kerouac também pintava da mesma maneira que escrevia – num movimento espontâneo, num transe, sem estudos ou planos.

Drawing by J. Kerouac
Meditação sem título de um auto-denominado “santo louco”. Eduardo Simantob/SWI

Ele até fez uma espécie de manifesto pessoal manuscrito para sua pintura, datado de 1959. “Só usar pincel espontaneamente, isto é, sem desenhar, sem longa pausa ou demora, sem apagar… empilhar tudo”, escreveu ele, acrescentando: “Pare quando quiser ‘melhorar’ – isso já indica que a obra está pronta”.

Complementos visuais da palavra escrita

Além de seus escritos e de sua história de vida, o tesouro artístico de Kerouac tornou-se um terceiro eixo para a compreensão da profundidade de suas buscas existenciais e de sua produção literária. Seus livros eram basicamente romans à clef – romances sobre acontecimentos da vida real apresentados como ficção – nos quais ele tentava narrar a energia e as ansiedades de um punhado de poetas vagabundos à deriva na América pós-Segunda Guerra Mundial.

Kerouac formava então uma espécie de “Santíssima Trindade” da chamada geração Beat, com o escritor William S. Burroughs e o poeta Allen Ginsberg.

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Sem título, sem data. Na coleção de Kerouac há três cenas análogas da crucificação, parte de uma série maior de temas religiosos, e todas as três compartilham o detalhe do enforcamento de Judas. Eduardo Simantob/SWI

Havia muito mais (e não necessariamente menos talentosos) artistas e poetas em torno deles, mas essas três personalidades muito distintas reunidas resumiam as questões sociais (racismo, homossexualidade, ambientalismo, etc.), os estilos literários provocadores e livres, e os tipos distintos de buscas existenciais que os beatniks dirigiam para horror dos valores puritanos americanos – e para o êxtase de uma jovem geração prestes a implodir esses mesmos valores nos movimentos contraculturais dos anos 60.

Nascido em Lowell, Massachusetts, em 1922, de uma família franco-canadense, Jean-Louis Lebris de Kerouac só começou a aprender inglês (o francês era a principal língua falada em casa) aos seis anos de idade. No entanto, Kerouac era, pelo menos entre os principais expoentes do movimento beat, o mais influenciado por temas, história, cultura e geografia dos Estados Unidos.

“Kerouac buscava uma América de Walt Whitman [poeta americano do século XIX] , uma América que não existia mais, mesmo nos tempos de suas primeiras viagens”, disse William S. Burroughs a este escritor em uma entrevista em 1994.

Pictures displayed on a table
A Santíssima Trindade beatnik: de cima, no sentido horário, Allen Ginsberg no metrô de Paris; Kerouac com um cigarro na boca durante uma recepção em Milão, 1966; William S. Burroughs em seu quarto no “Beat Hotel” em Paris, nos anos 1960. Eduardo Simantob/SWI

Contudo, por mais que sua atenção fosse atraída para uma certa ideia da América, suas influências eram bastante amplas e globais.

Sob a inspiração de Burroughs, os poetas Beat, Ginsberg e Kerouac em particular, inspiraram-se em miríades de fontes, especialmente os “poetas malditos” franceses como Baudelaire, Verlaine, Rimbaud; modernistas europeus (Kafka, Céline, Joyce, Ezra Pound – este último, um americano, que viveu e trabalhou principalmente na Europa), psicologia (Carl G. Jung, Sigmund Freud, Wilhelm Reich); revistas populares; e por último, mas não menos importante, a cultura afro-americana e latina, que era então anátema à “cultura americana”.

Mais tarde eles viriam explorar a cultura oriental e temas árabes em suas expedições para países como Colômbia, Marrocos e Índia, assim como para os reinos mais distantes da psique através das drogas, de todos os tipos, e da sexualidade de todas as cores. Ao contrário de Burroughs e Ginsberg, Kerouac era heterossexual, mas apoiava as posturas públicas, desavergonhadamente gays, de seus amigos.

Woman (Joan Rawshanks) in blue with black hat, undated.
“Mulher (Joan Rawshanks) de azul com chapéu preto”, sem data. Em “Visions of Cody”, escrito em 1951-52, mas só publicado na íntegra em 1972, “Joan Rawshanks in the Fog” é um dos capítulos mais líricos do livro. A personagem foi baseada na atriz Joan Crawford, que Kerouac viu um dia em San Francisco durante a rodagem do filme “Sudden Fear”. Eduardo Simantob/SWI

Os poetas beats expuseram explicitamente sua homossexualidade, numa tentativa deliberada de chocar, mas também de normalizar as atitudes em relação aos homossexuais ainda antes do surgimento dos movimentos de emancipação gay do final dos anos sessenta.

Projetos na manga

As viagens de Kerouac narradas em “On the Road” aconteceram em 1947-48, e o manuscrito, um rolo de 36 metros de papel de telex, foi escrito praticamente sem parar durante uma jornada de três semanas à base de anfetaminas.

O pergaminho se tornou uma obra de arte emblemática, exposta em vários museus do mundo inteiro, e a peça central de um projeto de exposição concebido pelo diretor de teatro e artista visual americano Robert Wilson, que se inspirou na descoberta das pinturas de Kerouac.

O projeto, que inclui canções originais compostas por Tom Waits, outro fã de longa data de Kerouac, busca encontrar um espaço apropriado. ” Precisamos de pelo menos uma sala de 40 metros de comprimento”, diz Paolo Sciolli. “Mesmo os grandes museus não podem oferecer tanto espaço”.

Os quadros de Kerouac também inspiraram outro artista famoso representado por Il Rivellino, a galeria de arte dos irmãos Sciolli, localizada em Locarno. O diretor de cinema e artista multimídia Peter Greenaway também esboçou trabalhos baseados na vida, desenhos e escritos de Kerouac, que estão pendurados nas paredes da vila de Arminio Sciolli, em um pequeno vilarejo no Ticino. 

Arminio e Paolo Sciolli com Robert Wilson (ao centro)
Robert Wilson (ao centro) com os irmãos Arminio (à esquerda) e Paolo Sciolli durante uma visita à casa dos galeristas em Pura, Ticino, para ver as pinturas de Kerouac e elaborar o projeto de uma exposição (13 de outubro de 2021). Il Rivellino, Locarno

Esses ambientes pitorescos e plácidos em nada evocam os tempos e lugares vibrantes vividos por Kerouac. Mas os irmãos Sciolli mantêm a esperança de que o burburinho global em torno do escritor – que nunca cessou depois de sua morte bastante prematura em 1969, com 47 anos de idade – não se dissipe.

Um impulso mais recente à memória de Kerouac veio em 2016, quando duas obras inéditas, datadas de 1951-52 e escritas em francês (La nuit est ma femme – A noite é minha esposa; e Sur le chemin, para não ser confundido com o título francês de On the Road, ‘Sur la Route’), foram publicadas no idioma original e traduzidas para o inglês.

Peter Greenaway s illustration
Ilustração de Peter Greenaway inspirada em Jack Kerouac. Eduardo Simantob/SWI

Os Irmãos gostariam de ver a coleção viajar pelo mundo, e divulgar melhor esse lado virtualmente desconhecido da produção artística de Kerouac.

Enquanto nenhuma proposta concreta transforma os planos da exposição em realidade, Paolo Sciolli comenta as ofertas que continua recebendo. “As pessoas muitas vezes me pedem para vender um ou outro quadro, separadamente, mas tenho medo de dispersar a coleção”, diz ele.

Também é difícil estimar o valor monetário dos quadros de Kerouac. Paolo Sciolli, porém, revela que a coleção está segurada em alguns milhões de dólares, mas está ciente de que corre o risco de perder parte de seu valor se as obras forem vendidas individualmente. Em suas mãos, a coleção continua completa. 

Editado por Mark Livingston.

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