Jodorowsky: o último surrealista cativa os jovens em Monte Verità
O escritor, cineasta e mestre do tarô foi convidado de honra da 11ª edição do festival de literatura que acontece todo ano no Monte Verità – lugar onde foi criada, há 120 anos, uma pioneira comunidade alternativa. Ainda assim, não há espaço para o surrealismo na Suíça, afirma Jodorowsky.
O Monte Verità parecia ser o cenário jodorowskyano perfeito para conhecer Alejandro Jodorowsky. O local abrigou, na virada do século 19 para o 20, uma primeira comunidade alternativa de artistas, escritores e pensadores de toda a Europa, reunidos em torno de um credo naturista, vegetariano e pacifista. Essa aura artística sobrevive até hoje nos jardins luxuosos, bangalôs e na edificação principal – uma construção original da Bauhaus, datada de 1929 e recentemente reformada, onde ficam hoje um restaurante e um hotel de luxo.
Esse Monte Verità, contudo, não tem nada a ver com a Suíça que o artista franco-chileno conhece: “É um país bonito, mas – digo correndo o risco de estar errado – os suíços têm um problema com a realidade. Não estou criticando, todo lugar tem seus costumes. A Suíça não é o lugar para viver el amor loco, um delírio artístico ou sonhos. Em suma, não há ambiente para o surrealismo por aqui”.
“O problema dos suíços é que eles carregam o peso da realidade econômica. Para estabelecer qualquer coisa que seja, eles precisam de uma dose de perfeita segurança. Mas a vida não se resume à segurança perfeita. A vida é feita dos riscos que corremos”, completa o artista.
Ao convidar Jodorowsky, os organizadores do Eventi Letterari Monte Verità fizeram uma aposta segura. No último dia do festival, que se encerrou no dia 2 de abril, o artista atraiu um público de várias centenas de pessoas, muito mais do que o esperado. O mais notável neste contexto é que o convidado de idade mais avançada do festival foi aquele que atraiu o público mais jovem, em contraste evidente com os espectadores majoritariamente grisalhos das palestras anteriores.
Fãs atravessam gerações
O fã-clube de Jodorowski tem muitas facetas, assim como o próprio artista. Seus longas ‘extravagantes’ da década de 1970, aclamados pela crítica, tais como o faroeste psicodélico-esotérico-bárbaro O Topo (1970), além de A Montanha Sagrada (1973), tornaram-se cults para espectadores de filmes de arte e adeptos da contracultura.
Sua tentativa fracassada de filmar o clássico de ficção científica Duna acabou se tornando um documentário popular. O design futurista, assinado por Moebius (Jean Giraud, 1938-2012) e H.R. Giger (1940-2014), se transformou em modelo para muitos outros clássicos de ficção científica que vieram a ser lançados a seguir (Guerra nas Estrelas, Alien). E, é claro, se transformou também em uma referência obrigatória para as versões posteriores de Duna no cinema (David Lynch, em 1984; Denis Villeneuve, em 2021).
Como escritor de quadrinhos, Jodorowski redigiu, ao lado de Moebius, uma das mais influentes graphic novels de todos os tempos: a série O Incal, publicada na década de 1980 – entre muitas outras colaborações com artistas ilustres de quadrinhos, a exemplo do italiano Milo Manara.
Depois temos o criador da “psicomagia”, uma prática terapêutica que Jodorowski descreve como “o caminho da cura, usando o poder dos sonhos, do teatro, da poesia e do xamanismo”. Um elemento muito apreciado pelo surrealismo e por seus discípulos, o inconsciente desempenha um papel vital em todas as atividades, palavras e obras de Jodorowsky.
Mas o que levou a maior parte de seu público à montanha sagrada das artes este ano foi seu trabalho de restauração do Tarô de Marselha, supostamente o primeiro jogo de cartas de tarô de todos, ao lado do best-seller O Caminho do Tarô, uma introdução ao oráculo de cartas, escrito em parceria com Marianne Costa e publicado pela primeira vez em 2004.
A conta de Instagram de Jodorowsky tem 317 mil seguidores – nada mal para um influencer de 94 anos. Na fila para pegar autógrafos, logo após sua palestra no Monte Verità, o público adepto do tarô e da psicomagia superava impiedosamente aquele composto por cinéfilos e fãs de quadrinhos.
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O artista de “Alien” e o filme que fracassou
Semáforos, a realidade e os suíços
“Comecei a ensinar tarô na Suíça”, disse Jodorowsky antes de sua palestra. “Alguém me pediu para apresentar o tarô para um grupo e desde então nunca mais parei”.
O artista acabou se desculpando por sua dificuldade para escutar quando pediram repetidamente para que ele contasse mais detalhes: quando e onde ocorreram essas apresentações públicas de tarô? Jodorowsky simplesmente ignorou essas perguntas e deixou que seus pensamentos continuassem fluindo em uma mistura de francês e espanhol, enquanto se divertia ao compartilhar suas impressões sobre a Suíça.
“A primeira vez que estive aqui, estava vindo de Nápoles, onde ninguém respeita os semáforos, enquanto na Suíça os motoristas param no sinal vermelho até quando não vem absolutamente nenhum outro carro em sentido contrário. Para mim, isso significa que os suíços não aceitam a realidade, pois ela é perigosa demais para eles, de modo que preferem seguir o Estado de Direito”.
Suas impressões remetem aos clichês usuais relacionados à Suíça. Os precursores do Surrealismo podem ter começado a chutar as portas do establishment e a épater les bourgeois (chocar ou surpreender a burguesia, como os primeiros modernistas gostavam de dizer) em Zurique, mais precisamente os dadaístas que tomaram de assalto o Cabaret Voltaire em 1916.
No entanto, como lembra Jodorowsky, praticamente todos os artistas e poetas reunidos ali eram estrangeiros (alemães, franceses, austríacos, romenos etc) procurando refúgio na Suíça neutra durante a Primeira Guerra Mundial.
O inconsciente, coletivamente
Pelo menos um suíço memorável contava com o apreço dos surrealistas e conta também com o de Jodorowsky: Carl Gustav Jung, um dos fundadores da psicologia moderna.
“Eu amava Jung, da mesma forma que amava Freud”, diz o artista. “Ambos deram um passo crucial rumo ao inconsciente, esse ‘depravado’. Para Freud, o inconsciente está em sua mente; para Jung, o inconsciente é coletivo. Jung abriu as portas da espiritualidade na psicologia e, ao longo de sua trajetória, avançou dando um passo importante atrás do outro, mas não conseguiu dar o passo definitivo”, observa o artista.
E qual seria esse passo…? “Jung encontrou a base da sincronicidade, uma repetição que ocorre sem que saibamos o porquê. No entanto, ele não pôde desenvolver mais sua ideia de sincronicidade, pois se considerava um cientista. Sendo assim, se você é um artista, você não pode ser guiado por Jung”.
Tarot e sincronicidade
Esse cientificismo maldirecionado, de acordo com Jodorowsky, também afeta o estudo que Jung fez sobre o tarô. “Tarô não é ciência. O tarô é tudo o que Jung não se atreveu a ousar. Quando ele entrou em contato com o tarô, ele relutou. Como se estivesse diante de um sinal vermelho”.
“Só há um tarô, o Tarô de Marselha”, acentua o artista. “Os outros são apenas imitações, eles não têm o conteúdo simbólico, místico e mágico do tarô original, que é anônimo”, acrescenta.
Jodorowsky refere-se à infinidade de jogos de tarô criados por diferentes artistas e místicos usando seus próprios designs, como as versões populares de Aleister Crowley ou o Rider Tarot (de Arthur E. Waite e Pamela C. Smith). “As coisas místicas precisam ser anônimas. Assim que assumem o nome de alguém, tornam-se outra coisa”, reflete o artista.
Mesmo assim, foi por um golpe de sincronicidade que Jodorowsky embarcou na busca pelo desenho original do Tarô de Marselha. Certo dia, do nada, um jovem desleixado bateu à sua porta, justamente quando Jodorowsky estava estudando o tarô. “E disse: vim ver você, porque não posso falar com mais ninguém, só com você”. O jovem contou que, após a morte do pai, havia se trancado em casa e ficado só assistindo à TV. “Ele relatou que apareci três vezes na sua frente e conversei com ele. Ele tinha que falar comigo, porque era o filho da família que havia publicado o tarô original em Marselha ao longo dos séculos”.
A partir desse momento, a conversa com Jodorowski se desviou para seu contentamento em brincar com o anagrama simbólico de seu nome – ojo de oro, ou olho de ouro, que é o espírito, o inconsciente – e sua interpretação da tentativa do alquimista de transformar chumbo em ouro.
“Seu ego consciente é o chumbo. Você precisa revê-lo, de forma que ele perca suas ilusões e enganos e se expanda, até que o ouro apareça. Você é um olho de ouro cercado por sensualidades e, se expandir bem sua sensualidade, encontrará seu ojo de oro”, diz ele.
Em público, Jodorowsky não falou sobre o passado, nem sobre arte. Ele continuou compartilhando suas “lições de vida”, acentuando como ainda gosta de correr riscos e instando seus seguidores a fazer o mesmo. Mas, de acordo com os princípios da psicomagia, cada pessoa precisa encontrar seu próprio caminho. Mesmo que a escolha seja a de não correr nenhum risco, como é o caso dos suíços.
“Não posso julgar os suíços por suas maneiras, pois, no fim, pode acontecer que, se atravessarem no sinal vermelho, acabem batendo em um carro que vem em alta velocidade”, diz ele.
Entre as conversas sobre literatura, a Orquestra Chuchchepati executa o Concerto Bumblebee Flight II, uma instalação para 8-32 palestrantes, insetos e orquestra.
Adaptação: Soraia Vilela
EVENTI LETTERARI MONTE VERITÀ
O lema do evento literário deste ano, “Of Trees and War” (De Árvores e Guerra), pretendeu abordar as duas questões mais desafiadoras do momento, fazendo uma referência ao contexto histórico que levou à criação da comunidade de artistas Monte Verità no ano de 1900.
A crise climática e a guerra pairaram sobre a maioria das conversas e debates, bem como a história. Elaborar o passado é cada vez mais uma urgência para escritores mais jovens, a exemplo do franco-argelino Kaouther Adimi e da poeta russa, exilada em Berlim, Marija Stepanova. No entanto, Jodorowsky, o convidado em idade mais avançada, praticamente não mencionou o passado nem suas conquistas anteriores, insistindo em se manter atualizado com relação ao presente através de suas “lições de vida”.
Considerando a abrangência relativamente restrita do festival, o número de sensações literárias presentes em Ascona foi notadamente excepcional. O antropólogo australiano (e médico de formação) Michael Taussig, da mesma forma que Jodorowsky, mal aparenta a idade que tem: 83 anos. Referência conhecida em seu campo, Taussig falou sobre seu estilo literário, que deve menos às regras acadêmicas que aos escritores beatnik das décadas de 1950 e 1960.
Enquanto isso, jovens renomados da literatura, como Giuliano da Empoli e Kim de l’Horizon (de Berna), ambos amplamente premiados na Suíça e em outros países da Europa, levaram o festival para além da aridez da atual política de guerra e da “Kremlinologia” (da Empoli). Ao mesmpo tempo, l’Horizon contestou os pressupostos de gênero não apenas por meio de seu estilo andrógino, mas também de sua postura crítica em relação às inclinações racistas do artista estoniano Elisàr von Kupffer (1872-1932), cuja pintura circular de 26 metros, de uma pioneira fantasia idílica gay, é exibida em um pavilhão no Monte Verità.
Concebida pelo crítico de literatura de Zurique Stefan Zweifel e presidida pelo duo de diretores operacionais e institucionais do Festival de Cinema de Locarno (Raphaël Brunschwig e Marco Solari), a 11ª edição do Eventi Letterari conseguiu colocar o cantão de Ticino no calendário literário da Suíça com um recorte marcadamente internacional.
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