Kosovo e a Suíça: um relacionamento intenso
Durante muito tempo, as pessoas originárias do Kosovo não tinham visibilidade na Suíça. Nos anos 1990, a imagem dos kosovares era com frequência usada em clichês racistas. Hoje, fala-se até mesmo do Kosovo como "o 27° cantão suíço". Saiba mais sobre a interseção entre esses dois países.
Há quem descreva o Kosovo como o 27° cantão suíçoLink externo, visto que 15% de toda a população kosovar do mundo vive na Suíça. O mais tardar depois do papel decisivo do governo da Suíça no processo de independência do jovem Estado do Kosovo, em janeiro de 2008, as relações entre os dois países se estreitaram.
O início de tudo remete aos anos 1960, com a aquisição de mão de obra, por parte da Suíça, na antiga Iugoslávia. Entre 1965 e meados dos anos 1970, a cada ano migravam de 300 a 1.800 trabalhadores das regiões mais pobres da então Iugoslávia para a Suíça, muitos deles do Kosovo: na região que depois se tornaria independente, consta que a agência estatal do trabalho já enviava as pessoas diretamente para a Suíça. Essas pessoas trabalhavam, em sua maioria, em propriedades rurais. Era comum que o pai trouxesse depois o filho ou o sobrinho. Fala-se de verdadeiras “árvores genealógicas na mediação do trabalho”.
Os trabalhadores de então não pretendiam levar suas famílias para a Suíça. Os homens kosovares estavam acostumados a procurar trabalho no exterior – algo que ocorria desde os tempos do Império Otomano. O que se chama de “gurbet” aparece até hoje nas letras de canções amargas: “Aman, Aman, a Alemanha e você, Suíça solitária, me enganaram na juventude, de que me serve toda essa riqueza.”
O salário era destinado à grande família no Kosovo, para onde o trabalhador pretendia um dia retornar. Na condição de “Gastarbeiter” (trabalhadores convidados), os kosovares vivam na Suíça pulando de uma permissão de trabalho à outra. Era comum que passassem anos sem voltar ao país de origem ou até nunca chegassem a retornar. Na Suíça, viviam com modéstia, retraídos em suas vidas espartanas, quase invisíveis. O Kosovo permaneceu na Suíça, durante muito tempo, como nada além de uma descrição de paisagem.
Kosovo aparece no mapa
Em 1981, ocorreu uma revolta estudantil no Kosovo – primeiro, contra a péssima qualidade da comida oferecida nos refeitórios; a seguir, para que o Kosovo se tornasse uma república autônoma, oriunda do Estado multiétnico da Iugoslávia, independente da Sérvia.
No mesmo ano, 300 manifestantes foram às ruas em Zurique em prol de uma “República do Kosovo”. Eles denunciavam a brutalidade com a qual o Estado iugoslavo estava agindo contra a minoria kosovar. “Lá onde moro ninguém me conhece como albanês, prestamos muita atenção nisso”, afirmou na época um ativista em entrevista a um semanário suíço de esquerda. O jornal noticiava as represálias que os manifestantes temiam – de prisão até tortura ou morte.
Em outros países da Europa, o conflito do Kosovo com o restante da Iugoslávia foi visto por muito tempo como uma guinada para o stalinismo da vizinha Albânia – que era como a situação era apresentada pela liderança iugoslava. A questão poderia ter sido colocada de uma forma que os suíços pudessem entender. Em 1984, o participante de um comício foi citado por um jornal suíço: “Comparando com a Suíça, nós só queremos ter nosso próprio cantão”.
Nos anos 1980, o número de requerentes de asilo provenientes do Kosovo aumentou continuamente na Suíça. Esses dados nunca foram registrados com precisão, pois os kosovares apareciam nas estatísticas como iugoslavos. De início, eram os ativistas que queriam deixar o país. Já no fim dos anos 1980, os kosovares começaram a buscar suas famílias para viver na Suíça, mesmo que isso não tivesse sido planejado de início.
A situação parecia desesperadora demais para que retornassem tão cedo: no fim dos anos 1980, Slobodan Milošević, o último presidente da Iugoslávia antes da guerra civil, declarou o Kosovo como campo de batalha decisivo no processo de construção da nação sérvia e retirou da região o direito à administração autônoma, do qual ela desfrutava desde 1974. Foi declarado estado de exceção e estabelecida uma sociedade de duas classes.
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“Governar o Kosovo não seria fácil hoje”
A mídia kosovar foi alinhada, as escolas passaram a dar aulas de acordo com os currículos sérvios e a língua albanesa foi marginalizada. Aos kosovares foi dificultado o acesso ao sistema de saúde e eles foram afastados da economia e da administração do Estado, o que, em um país socialista, significava desemprego e pobreza imediatos e contínuos.
Quem quisesse continuar trabalhando, teria que assinar uma declaração de lealdade ao Estado sérvio – quase ninguém foi capaz de fazer isso. As manifestações em massa contra essa política de apartheid foram brutalmente reprimidas.
UÇK de uniforme suíço
A população kosovar fundou suas próprias escolas, seus canais de televisão, seu sistema de saúde. Assim foi surgindo uma sociedade paralela completa, intensamente mantida com recursos dos kosovares da diáspora através de transferências para uma conta anônima na Suíça. Em 1991, foi proclamado – unilateralmente – pela primeira vez o “Estado do Kosovo”. Isso, contudo, não ecoou internacionalmente.
Depois da Guerra da Iugoslávia, o Acordo de Dayton pôs um fim, em 1995, ao conflito na Bósnia-Herzegóvina. A questão do Kosovo não foi, contudo, considerada. O desvinculamento da Sérvia parecia uma perspectiva distante. Durante muito tempo, a luta por um Kosovo livre foi travada pacificamente pelo “Lidhja demokratike e Kosoves” (LDK) de Ibrahim Rugova.
No entanto, com o passar do tempo, os kosovares começaram a não se sentir mais representados pela linha pacífica do LDK, visto que a opressão sérvia e a sociedade de duas classes continuavam inabaláveis. Em meados dos anos 1990, era fundada, em um ambiente tendencialmente rural e resultante da ira da população, o Ushtria Çlirimtare e Kosovës (UÇK), uma espécie de exército da libertação. Ao mesmo tempo, foi criado o fundo de coleta “A pátria chama”, com o qual os kosovares da diáspora reuniam recursos, entre outros, para material de guerra – também na Suíça. Consta que o UÇK chegou até mesmo a usar uniformes do Exército suíço, comprados em depósitos de material bélico.
Em 1998, o conflito com a Sérvia escalou definitivamente. No primeiro semestre de 1999, tropas sérvias expulsaram boa parte dos kosovares. No conflito que perdurou de 1998 a 1999, morreram 13 mil pessoas – 10 mil kosovares e 3 mil sérvios ou membros de outros grupos étnicos. Dos 860 mil refugiados, 670 mil encontraram abrigo nas vizinhas Albânia e Macedônia. E mais de 43 mil entraram com um requerimento de asilo na Suíça. A Alemanha, com seu território dez vezes maior que o suíço, acolheu 53 mil requerentes de asilo do Kosovo. A maioria dos requerentes de asilo de 1999 retornaram ao Kosovo depois da intervenção militar da Otan, que bombardeou a Sérvia entre março e junho daquele ano.
Dialeto suíço em Pristina
Nos anos 1990, os kosovares fugiram para a Suíça, que se encontrava em recessão, tentando dizer adeus à ordem da Guerra Fria. Na busca por uma “imagem do inimigo”, o Partido Popular Suíço (SVP – direita nacionalista) foi quem mais se beneficiou. Antes disso, em 1998, um cartaz em Zurique já havia causado alvoroço: nele, o partido se manifestava contra uma rede de contatos para os albaneses do Kosovo, uma medida para conectar a crescente comunidade de refugiados.
Nos anos 1990, foi encerrada definitivamente a invisibilidade dos kosovares no país – eles foram incluídos na retórica política e receberam acusações de serem traficantes de drogas e pistoleiros. A imagem da diáspora kosovar na Suíça melhorou nos últimos 20 anos: a seleção suíça de futebol não teria vencido nenhuma eliminatória sem jogadores kosovares como Xherdan Shaquiri ou Granit Xhaka. Hoje, todos os partidos tentam inserir em seus quadros os kosovares que têm cidadania suíça.
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Partidos políticos tentam atrair a diáspora de Kosovo nas eleições
De acordo com o Departamento Federal de Estatísticas (BfS, na sigla em alemão), 285 mil pessoas que vivem na Suíça falam albanês dentro de casa – boa parte deste contingente vem do Kosovo. Por outro lado, no verão em Pristina, ouve-se muito alemão suíço nas ruas, quando os “Schatzis”, como são chamados os kosovares da diáspora que vivem na Suíça de língua alemã, visitam seu outro país.
Edição: Mark Livingston
Adaptação: Soraia Vilela
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