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A Suíça dos Cabral de Melo: pedras, aspirinas e muito frio

Cabral lê uma revista em casa de amigo
João Cabral de Melo Neto lendo novidades na casa de um amigo em Genebra, quando ainda era um mero poeta e diplomata. Logo depois de deixar a Suíça, viraria 'imortal', membro da Academia Brasileira de Letras. Fanor Cumplido, Arquivo da família

O poeta e diplomata brasileiro João Cabral de Melo Neto viveu com a família em Genebra e Berna de 1964 a 1967. Que reminiscências ficaram desse período? Inez Cabral, filha do escritor, publica agora um livro que recupera memórias da infância até à vida adulta

Quando lemos a obra de João Cabral de Melo Neto (1920-1999), autor de, entre outros, “Morte e Vida Severina”, tropeçamos com frequência nas paisagens que marcaram o poeta e diplomata brasileiro, como a secura do sertão pernambucano e o bailado urbano de Sevilha. Cabral viveu com a família em Genebra e Berna de 1964 a 1967 – antes de virar “imortal” membro da Academia Brasileira de Letras, em 1968 – mas praticamente não há referências ao país na sua obra. Que memórias ficaram do período suíço da família Cabral de Melo?

“O meu pai achava a Suíça maravilhosa por causa da paisagem alpina. Para qualquer lugar que você olhe, a pedra reina imperiosa, enchendo todo o horizonte. Mas a verdade é que a Suíça quase não aparece na poesia dele”, explica Inez Cabral, que publicou este ano no Brasil o livro de memórias “O Que Vem ao Caso” (Alfaguara). A obra revisita experiências da filha de João Cabral, nascida em 1948 em Barcelona, da infância até à idade adulta.

retrato de Ines Cabral
Inez Cabral Chico Cerchiaro

“O Que Vem ao Caso” não é um texto sobre João Cabral. Não encontramos ali o poeta, pois o que vem ao caso é mesmo Inez, o seu olhar para o passado e as suas vivências ao lado da família em diversos países (a Suíça é apenas um deles, há também capítulos relativos à estada em França, na Espanha e no Brasil). “Eu falei do meu pai no livro em relação a mim – isto não é uma biografia dele”, esclarece em entrevista à SwissInfo.

A imagem do poeta oferecida aos leitores de “O Que Vem ao Caso” é a mais humana e doméstica possível: um pai “ranzinza”, que lê os quadrinhos de Asterix no banheiro, odeia acordar cedo e evita pegar no volante. Um pai que considerava a filha “indomável”, por nunca aceitar um não. Um pai que a incentivou a escrever e que, por ter sido diplomata, ofereceu à família uma vida nômade com experiências intensas. “Hoje olho para trás e percebo que tive muita sorte por ter vivido em diferentes lugares”, diz Inez.

O frio incómodo de Genebra

Em 1964, ano em que o Brasil testemunhou um Golpe de Estado e o início de uma ditadura militar que duraria mais de duas décadas, João Cabral foi nomeado conselheiro para a delegação do Brasil junto à Organização das Nações Unidas (ONU), na Suíça. Mudou-se de Sevilha para Genebra com Stella, com quem estava casado desde 1946, e os quatro filhos. Inez Cabral conta na antologia poética “A Literatura Como Turismo” (Alfaguara, 2016) que João Cabral sofreu muito com o frio suíço.

“O frio incomodou demais o pernambucano. Portanto, o termostato de casa ficava regulado para trinta graus, pois, segundo ele, sua casa era território brasileiro e no Brasil faz calor. Então, usávamos roupas de verão dentro de casa e, ao sair, tínhamos que nos vestir com casacos, meias, luvas etc. Não sei como não morremos de pneumonia, com essas mudanças de temperatura. Nessa época nasceu meu irmão caçula: João para o mundo e Joãozinho para nós”, escreve Inez na antologia, organizada pela própria, que combina poesia do pai e memórias da filha.

Foi em Genebra que, pela primeira vez, os pais de Inez (ou melhor, a mãe, que era “quem mandava em casa”) matricularam a filha numa escola laica. “Esta foi a parte mais legal de Genebra para mim, até então eu estudava sempre em escola religiosa”, diz Inez. Tratava-se da escola internacional Ecolint, onde estudam os filhos de muitos diplomatas ou funcionários de organizações internacionais. Inez morava com a família na Estrada de Malagnou e ia a pé até à Ecolint, que ainda hoje mantém um polo em funcionamento no número 62 da Estrada de Chêne. O temperamento insubordinado de Inez acabou por levá-la à expulsão: a adolescente matava quase todas as aulas de espanhol porque a professora não dominava a língua que ensinava (e ainda convenceu os demais estudantes a fazerem o mesmo).

A seguir, Inez foi matriculada no colégio religioso Marie-Thérèse, instituição que funciona desde 1905 no número 24 da Avenida Eugène-Lance (mas que, em 2001, passou a se chamar Institut Internacional Lancy). “Adorei esse colégio teresiano”, conta Inez, que, sempre desafiadora, chegou a acender um cigarro em plena aula e que, por isso, acabou com a cabeça enfiada debaixo de uma torneira de água gelada.

O feitio destemido trazia castigos mas às vezes também dava frutos. Certa vez, num espetáculo de Françoise Hardy em Genebra, Inez Cabral conseguiu convencer os seguranças de que era amiga da cantora francesa. Foi até ao  camarim e ganhou um autógrafo seguido de um beijo na bochecha da celebridade. Ficou dias sem lavar a mão esquerda para preservar o “troféu” e mostrá-lo às amigas “medrosas”.

Além do frio, havia outra coisa que incomodava João Cabral em Genebra: o trabalho na ONU. Por isso, o diplomata pediu transferência para a embaixada em Berna. “Honestamente, sabe o que eu acho? Ele foi ser diplomata para escrever. A ONU tomava mais tempo dele do que a escrita. Ele foi ser diplomata porque tinha muitos filhos [para sustentar] e queria escrever. Era um cara extremamente honesto e jamais faria menos que o trabalho exigisse”, explica Inez. Acresce que o embaixador brasileiro com quem João Cabral trabalhava era aparentemente “insuportável” (assim como a embaixatriz, garante Inez, lembrando que a senhora não admitia que um diplomata subalterno utilizasse nos eventos velas  maiores do que as dela). “Havia uma etiqueta até para tamanho de vela, pode uma coisa dessas?”, indaga Inez.

Em 1966, João Cabral mudou-se com a família para Berna, onde trabalharia até o ano seguinte como ministro-conselheiro, e publica, numa edição de autor, “A Educação pela Pedra”, um livro que reafirma a “pedra” como elemento fundamental da poesia cabralina.

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​​​​​​​Berna, cidade de pedras douradas

Inez, já acostumada a partidas e chegadas, deixa Genebra sem grande custo. No livro “O Que Vem ao Caso”, a escritora descreve a cidade como “fria, antipática e tão pretensiosa como o jato d’água que é a sua marca e a maior atração turística local”. Berna, por sua vez, deixou pai e filha fascinados. João Cabral encantou-se com o charme medieval e a tranquilidade. Inez ficou boquiaberta com a beleza da cidade de “pedras douradas, com milhões de carrilhões que tocam na hora certa, cada um na sua vez; parece um concerto de sinos”.

A família Cabral de Melo instala-se numa casa à beira do rio Aare, na Rua Kollerweg, perto do famoso fosso dos ursos (que homenageia os animais que terão dado o nome à cidade de Berna). O novo lar era um espaço de encontro mas também uma espécie de refúgio onde Cabral se escondia sempre que lhe endereçavam convites para eventos formais. Como explica Inez na antologia poética: “Essa casa tornou-se o centro de encontros dos brasileiros que trabalhavam em Genebra e que acorriam a Berna nos fins de semana. Como a vida social diplomática em Berna era muito ativa, ele aprimorou um sistema que lhe permitia fugir de suas festas, jantares e coquetéis. Quando recebia um convite para um evento sem lugar marcado, o aceitava mas não comparecia, porque, segundo ele, ninguém o conhecia e não dariam por sua falta. Mas quando se tratava de jantares ou almoços com lugar marcado, declinava o convite, inventando compromissos. Agia assim porque se declinasse todos, se tornaria antipático ante o corpo diplomático local. Essa era a vida social do diplomata João Cabral.”

Nem toda a família Cabral morou na casa junto ao rio Aare: Inez acredita que a mãe “desistiu” de tê-la por perto e, por isso, matriculou-a num colégio interno nas redondezas de Friburgo (provavelmente o Institut Saint Dominique, em Pensier, que viria a ser encerrado em 1976). É em Pensier que Inez fez uma amiga para a vida, uma suíça com quem até hoje mantém contacto via Whatsapp e cuja mãe, “maravilhosa”, defendia-a das freiras à porta do colégio e acolhia-a em casa durante os fins de semana.

Saudades de Berna

Onde jamais reencontrar

a submissa ambiência suíça

onde outra vez reencontrar

a insuíça voz insubmissa?

Poema de João Cabral de Melo Neto publicado no livro “Museu de Tudo” (1975)

Quando chegaram as férias de Natal, Inez viajou de Pensier a Berna levando na bagagem exemplares das histórias em quadrinhos de “Asterix e Obelix” que haviam sido lançados há pouco tempo e comprados na estação ferroviária. Inez leu e ficou fã, depois emprestou ao irmão e à mãe, que também adoraram. A primeira reação do pai foi rotular aquilo de “subliteratura e perda de tempo” mas, passados alguns dias, Inez encontrou João Cabral saindo do banheiro com “Asterix” na mão. Confrontado com a contradição, o pai respondeu: “A pesquisa histórica é muito bem-feita”. A partir deste momento, é o próprio poeta quem passou a comprar os novos números de “Asterix e Obelix”. E havia até briga na casa para saber quem ia ler primeiro.

Em 1967, a família Cabral de Melo despede-se de Berna e segue em direção a Barcelona. Todos viajam de carro até à Catalunha, exceto João Cabral e o filho caçula, que são obrigados a pegar um avião em Genebra porque o menino passou mal na viagem de carro.

Zurique e as aspirinas

João Cabral tinha dores de cabeça frequentes desde os 17 anos. Durante o período em que viveu na Suíça, aproveitou para ir a um centro médico em Zurique especializado no tratamento da enxaqueca (o Migräne Chirurgie Zentrum), com o objetivo de encontrar uma solução para o seu problema. O médico que o atendeu mostrou-lhe uma paciente e disse: “A sua sorte é que se trata com aspirina. Esta paciente está aqui porque sua dor só responde positivamente à morfina. Depois de tomar outros tipos de medicamentos durante anos, seu organismo habituou-se a eles”.

João Cabral fez os exames clínicos necessários para descobrir a causa da cefaleia mas não foi identificada nenhuma explicação física para a dor crónica que sentia. O médico de Zurique sugeriu então um tratamento experimental: cortar um nervo localizado na região da sobrancelha esquerda. O poeta aceitou mas pediu para fazer a cirurgia sem anestesia – e o médico anuiu. Terá sido a maior dor que sentiu em toda a vida e, ao que tudo indica, em vão: a zona afetada da testa ficou insensível anos a fio mas as dores de cabeça lancinantes nunca passaram. Foi em Zurique que João Cabral perdeu a esperança de um dia ser curado. Impotente, o médico recomendou: “Viva com ela [a cefaleia]. E não deixe de tomar as aspirinas”.

Esta experiência impressionou João Cabral de uma tal maneira que o levou a escrever Num monumento à aspirina, um elogio aos cristais de ácido acetilsalicílico, minúsculas pedras que proporcionavam alívio intermitente. Mais tarde, Inez incluiria este poema na brevíssima secção dedicada à Suíça da antologia “A Literatura Como Turismo”. Também lá está o poema Saudades de Berna. E é tudo o que há a respeito da Suíça.

Capa do livro O que vem ao caso
Divulgação

A investigadora Denise Schittine, que estudou a vida e a obra de João Cabral para escrever o livro “Ler e escrever no escuro – A literatura através da cegueira” (Paz & Terra, 2016), sublinha como Cabral “arriscou um vocabulário poético inteiramente novo”, introduzindo palavras como aspirina, gasolina e telégrafo “num terreno até então envolvido pelo perfume romântico”. Cabral afastava-se do sentimentalismo e chegou a ter discussões com o músico e poeta Vinicius de Moraes precisamente porque tinham visões poéticas distintas. As letras de Vinicius faziam o elogio do amor enquanto Cabral escrevia sobre aspirinas, cabras e diarreia. Denise Schittine evoca o encontro de Vinicius e Cabral num bar em Genebra (narrado no ensaio biográfico “O Homem sem Alma”, de José Castello), em que o músico pega o violão para mostrar as suas composições mais recentes. Cabral irrita-se e diz: “Me desculpe, Vinicius, mas porque todas as tuas músicas falam de coração? Será que você não tem outra víscera para cantar?” O músico não perdeu a pose e respondeu: “Pois é, João, você continua o mesmo nordestino seco. Mas, um dia, ainda hei de colocar música num desses seus poemas de cabra.” A promessa de Vinicius nunca seria cumprida.

Depois da Suíça

Após mudar-se da Suíça para a Espanha em 1967, João Cabral continuou as suas andanças pelo mundo, com paragens no Paraguai, no Senegal, no Equador e em Honduras. A partir de 1969, Inez já não acompanhou mais a família – decidiu seguir em direção ao Rio de Janeiro, cidade onde construiu o seu próprio núcleo familiar (deu à luz a Dandara e Sereno) e onde vive até hoje. Em 1986, João Cabral teve um ano de “mudanças bruscas”: faleceu a primeira mulher, Stella, casou-se com a poeta Marly de Oliveira, e gradativamente perdeu a visão. Em 1990, João Cabral aposentou-se como embaixador. Viveu no Rio de Janeiro até à sua morte, no dia 9 de outubro de 1999, sempre com a certeza de que, como lembra Inez, caso não tivesse sido diplomata a literatura cabralina “teria sido completamente diferente”.

 

Num monumento à aspirina

 

Claramente: o mais prático dos sóis,

o sol de um comprimido de aspirina:

de emprego fácil, portátil e barato,

compacto de sol na lápide sucinta.

Principalmente porque, sol artificial,

que nada limita a funcionar de dia,

que a noite não expulsa, cada noite,

sol imune às leis de meteorologia,

a toda hora em que se necessita dele

levanta e vem (sempre num claro dia):

acende, para secar a aniagem da alma,

quará-la, em linhos de um meio-dia.


Convergem: a aparência e os efeitos

da lente do comprimido de aspirina:

o acabamento esmerado desse cristal,

polido a esmeril e repolido a lima,

prefigura o clima onde ele faz viver

e o cartesiano de tudo nesse clima.

De outro lado, porque lente interna,

de uso interno, por detrás da retina,

não serve exclusivamente para o olho

a lente, ou o comprimido de aspirina:

ela reenfoca, para o corpo inteiro,

o borroso de ao redor, e o reafina.


Poema publicado em 1966 no livro “A Educação pela Pedra”

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