Milão abre o centenário de Jean Tinguely, o mestre da engenhoca
Uma grande exposição no Hangar Bicocca em Milão abre os festejos do centenário de nascimento de Jean Tinguely (1925-1991). A seleção de 40 esculturas, produzidas entre as décadas de 1950 e 1990, confirmam sua fama de pioneiro da arte cinética.
Jean Tinguely ainda engatinhava em Frieburg, onde nasceu, quando o antigo galpão do Hangar Bicocca reinava soberano na arte de transformar o ferro fundido em peças para as locomotivas, aviões e material bélico para o esforço de guerra de Mussolini. A fundição funcionou ao longo do século passado, de 1903 a 1986, quando foi convertida em espaço cultural.
A exposição em Milão Link externorepresenta o fechamento de um círculo na trajetória internacional de Jean Tinguely. Aqui, em 1954, o ainda jovem artista participou de uma mostra a convite de Bruno Munari (1907-1998), um dos criadores da arte programada e cinética – a obra “Triciclo” (1954), apresentada na ocasião, faz parte da retrospectiva.
Vivia-se então o começo do “boom” econômico do pós-Guerra, nascia a sociedade de consumo. O lixo derivado da produção industrial aguardava por alguém para ressuscitá-lo e reconvertê-lo.
Jean Tinguely enxergava no ferro velho e abandonado a matéria-prima para suas esculturas cinéticas. Para ele, “a máquina é, antes de tudo, o instrumento que me permite ser poético”. Trens, carros, motocicletas, bicicletas, brinquedos, eletrodomésticos ganhavam as ruas, as casas e conquistavam crianças, jovens e adultos daquela época como grandes novidades. Engrenagens embutidas e escondidas, embaladas em capas, caixas e coberturas bem desenhadas – e tudo isso acabaria no lixo, mais cedo ou mais tarde.
Diversão e jogo
Jean Tinguely observava, explorava e por fim descarnificava as linhas de montagem. Ele alongou a vida útil dos objetos e lhes concedeu uma divertida inutilidade, desta vez desmontados e esculpidos, verticalizados ou horinzontalizados, sem nenhuma idenficação ao propósito original. Destroços de máquinas agrícolas, britadeiras, perfuradeiras, tampas de panela e mandíbulas de tubarão, entre muitos outros itens, tornaram-se possuídos por novas almas e disfunções.
O artista subverteu o projeto industrial, arranjando novas funções quase sempre inúteis e, por isso mesmo, com significados cômicos ou trágicos, sempre provocatórios. Assim, já sendo um dos pioneiros da arte cinética, ele seria uma das figuras de referência do movimento Nouveau Rèalisme que predicava o uso de material reciclado.
Eram ainda raros os artistas que pensavam em reciclar lixo. Um deles, o americano Richard Stankewicz (1922-1986), inspirou Tinguely com suas obras estáticas feitas de metais reutilizados. Tinguely defrontou-se com seu trabalho em 1948, e essa foi a centelha que acendeu a imaginação do artista, que já tinha feito uma pequena obra a motor pendurada no teto. Em homenagem a Stankewicz, Tinguely construiu e destruiu sua célebre “Homage to New York”, no jardim do MoMA, em 1960.
“Com certeza, o elemento efêmero de surpresa fazia parte do sistema de maquinários construídos por Tinguely. Não havia muito planejamento, era tudo montado no momento. E ele se divertia muito quando tudo isso não funcionava. Este elemento de improvisação e de ruptura das obras para ele era um reflexo da ‘vida verdadeira’ que temos que aceitar. Quanto mais explodiam e se autodestruíam, se alcançava o máximo da verdade”, explica Lucia Pesapane, co-curadora da retrospectiva, à SWI swissinfo.ch durante a abertura da exposição.
Segredos na montagem
A complexidade das engenhocas de Tinguely, antes mesmo de atiçar interpretações, desafiam os montadores. Pesapane, conta que, durante a montagem, “descobrimos uma característica a mais do artista – nada pode ser deixado ao acaso”.
“O transporte, a montagem e a desmontagem das obras de Tinguely são um trabalho monumental pensado e realizado nos mínimos detalhes por parte do próprio artista e, quase sempre, sem um manual de instruções”, diz Pesapane. Ela lembra que os anos 1960 não eram como hoje – a lógica de mercado ainda não imperava no circuito da arte. “Tinguely aceitava tranquilamente que as obras fossem destruídas e não se preocupava tanto com a conservação e preservação delas. E isto agrega um coeficiente de dificuldade na realização desta mostra. que vai do começo da carreira at€ o fim de sua vida, no começo dos anos 1990”, diz ela.
Metade das obras veio do museu TinguelyLink externo, em Basileia, e a outra de museus da Alemanha, França, Holanda e coleções privadas. Pesapane conta que a preparação da exposição durou quase dois anos. Cada obra tem a sua caixa, mas as obras monumentais chegam a contar dez, quinze caixas. “A complexidade logística acrescenta um fascínio a mais ao vê-las aqui”, diz ela.
Infância adulta
Inércia e movimento dialogam nesta realidade fantástica construída com muita intuição e pouca improvisação. As obras do artista suíço são permeadas de curiosidade e criatividade que remetem ao mundo infantil. Por um lado, elas são lúdicas, em sua essência e fio condutor. Por outro, as esculturas refletem sobre o mundo que acelerava em todos os campos da vida. Ao final, o aspecto do jogo sobressai-se à engenharia das engrenagens.
“A questão lúdica é central no seu trabalho”, diz o diretor do Museu Tinguely, Roland Wetzel. “Ele cresceu num ambiente familiar católico e Basel é protestante. Acho que esta condição deu a ele uma perspectiva diferenciada para olhar o mundo.”
“Se você a respeita, se você se coloca em jogo com a máquina, então, talvez, vai poder dar vida a uma máquina brincalhona – e como brincalhona quero dizer livre”, teorizava Jean Tinguely.
O espaço da mostra é proporcional à grandeza intelectual e imensidão artística de Jean Tinguely: cinco mil metros quadrados estão ocupados por suas esculturas, além de uma sala adjacente que projeta a perfomance La Vittoria, realizada em Milão em 1970: um enorme pênis ejaculando fogos de artifício, bem ao lado da catedral do Duomo, celebrando a morte do Novo Realismo.
O público passeia por meio das obras expostas sem uma linha do tempo ou qualquer continuidade. Elas celebram a lentidão em oposição ao frenesi atual. A descontrução de um carro de fórmula 1 é a apoteose do caos orgânico (Pit Stop, 1984). Jean Tinguely remontou as peças do bólido de corrida Renault RE 40 de maneira desordenada, contrastando-o com uma filmagem do mesmo carro “voando” pelo autódromo de Monza e sendo consertado no boxe. Logo ao lado, girando em espiral vertical, a escultura Schreckskarrett – Viva Ferrari (1985), em homenagem à escuderia italiana.
Acompanhamento médico
Em outras obras, o visitante participa ativamente, apertando um botão com os pés, acendendo a engrenagem e dando vida à escultura, como na mesa Machinenbar (1960-85). Já a Méta-Matic No.10 (1959) estava fora de ação, em pane, sendo tratada pelo “médico” das obras, Jean-Marc Gaillard, conservador do acervo do Museu Tinguely.
“Meus instrumentos de cura são simples: chave de parafuso, alicate…você precisa conectar suas mãos à mente passando pelo coração para amar essas obras e ouví-las. Normalmente, eu chego pela manhã bem cedo, sento ou caminho pelos espaços e dou ‘bom dia’ para as obras. E fico ali, escutando-as, para sentir quando algo não está como deveria estar”, comenta ele durante a pausa de um pequeno conserto na escultura cinética Rotozaza No 2 (1987).
Gaillard tem um ouvido musical e vive entre os gritos e sussurros destas criaturas. “Algumas vezes elas pegam um resfriado, como a gente mesmo. Então eu as retiro da exposição”, diz ele, após recomendar repouso à Méta-Matic No 10.
Quando não está restaurando obras de Tinguely, Gaillard vasculha por elementos sósias e partes gêmeas mundo afora. “Eu uso apenas materiais antigos para substituir, eventualmente, alguma peça. Preciso sempre ter algo igual ao original. Esqueletos de animais, rodas de madeira. Meu maior problema é garantir um estoque para o futuro, para os próximo 40 anos”, conclui o “médico”.
A vida e a obra de Tinguely estavam profundamente entrelaçadas em seu relacionamento com a artista Niki de St. Phalle. Mais detalhes sobre a dupla de artistas você encontra aqui (com vídeo):
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A arte de Niki de Saint Phalle continua maior do que um grande show em Zurique
Edição: Eduardo Simantob
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