Morte à beira do lago: Os últimos dias de Jean-Marie Straub na Suíça
Pouco depois de Alain Tanner e Jean-Luc Godard, dois grandes mestres do “cinema radical”, Jean-Marie Straub também morreu às margens do Lago de Genebra. O crítico de cinema Christopher Small descreve o crepúsculo suíço de Straub e lança luz sobre o seu compromisso com “as pessoas que resistem”.
Em novembro de 2022, na cidade suíça de Rolle, o cineasta radical Jean-Marie Straub, conhecido por sua longa colaboração artística com sua esposa Danièle Huillet (1936-2006), morria alguns meses antes de seu 90º aniversário.
No obituário publicado pelo jornal francês Le Monde, Straub foi descrito como “marxista, rebelde, intransigente, contestador, tempestuoso e ardente”. O jornal também lembrou que, com Danièle Huillet, ele criou uma das obras mais unificadas, poéticas e desafiadoramente herméticas da história do cinema.
Barbara Ulrich, companheira e colaboradora de Straub, lembra como, durante seus últimos dias de vida, deitado em sua cama, ele contemplava o panorama outonal das montanhas francesas do outro lado do Lago de Genebra.
“Um cinema permanente”, disse Ulrich quando conversei com ela em abril, no Festival Internacional de Curtas-Metragens de Oberhausen, onde estava sendo realizada uma homenagem à obra do cineasta.
Enquanto a noite envolvia o lago na escuridão pela última vez, Straub observava as cores escurecidas da paisagem, ouvindo o início do segundo movimento do Quarteto de Cordas nº 12 de Beethoven. “Estou doente”, disse ele a Ulrich no dia em que faleceu, pegando a sua mão, aparentemente surpreso, como se estivesse se dando conta de sua doença pela primeira vez.
Europeus em exílio
Nem Straub nem Huillet eram suíços. Huillet nasceu em Paris, em 1º de maio de 1936, e Straub nasceu em Metz, três anos antes. Um lugar que era francês na época do seu nascimento, foi alemão durante a guerra e voltou a ser francês no Dia da Vitória (8 de maio de 1945).
O seguinte detalhe biográfico mostra um pouco do caráter pan-europeu de seus filmes: embora poucos trabalhos dos Straubs – como o casal era conhecido – possam realmente ser chamados de adaptações, todos foram baseados em textos já existentes, quase todos de autores europeus.
Ao contrário das adaptações tradicionais para a tela, nas quais o material original é alterado ou abreviado para se adequar a uma narrativa cinematográfica, as obras dos Straubs se esforçavam para transpor os textos originais para outro meio com o máximo de cuidado e vigor possível, deixando espaço para as palavras respirarem, sem gaiolas nem adornos.
Huillet e Straub se conheceram em 1954, em Paris; ela tinha 18 anos e ele, 21. Em 1958, eles fugiram da França para a República Federal da Alemanha depois de ele ter se recusado a participar da repressão do exército francês contra a Argélia. Após viverem por mais de uma década no exílio em Munique, os Straubs se mudaram para a Itália, onde continuaram a produzir filmes até a morte de Danièle.
Quando ela faleceu de câncer em outubro de 2006, Straub retornou com Ulrich para Paris, onde, ao longo dos anos seguintes, ele produziu uma série de curtas-metragens e vídeos, além de continuar trabalhando na cidade toscana de Buti. Suas viagens da Toscana para Paris passavam pela Suíça, onde Ulrich, que é suíça, tinha um apartamento.
Com o passar dos anos, suas estadias em Rolle se tornaram cada vez mais longas e, em 2015, eles haviam se mudado permanentemente para o município, já que a saúde de Straub limitava a possibilidade de viagens longas. Quatro dos últimos seis filmes produzidos por ele e Ulrich foram filmados às margens do Lago de Genebra.
A conexão suíça
“A Suíça não era uma ‘terra incognita’”, diz Ulrich à SWI swissinfo.ch. “Na década de 1960, quando fizeram seus primeiros filmes em Munique, eles foram a Genebra para fazer a legendagem. Naquela época, eles também conheciam [o crítico de cinema e curador suíço] Freddy Buache. Ele sempre comprava cópias e exibia os filmes.”
A obra conjunta de Straub e Huillet, produzida ao longo de quase 45 anos, foi marcada por relações de trabalho íntimas e intensas. A amizade dos dois com Buache, que os apoiava obstinadamente e foi por muito tempo diretor da Cinémathèque Suisse (a cinemateca nacional), teve um grande impacto em Frédéric Maire, diretor do Festival de Cinema de Locarno entre 2005 e 2009 e atual diretor da Cinémathèque. Em 2017, Straub recebeu um Pardo d’Onore no festival.
Buache exibiu os dois primeiros filmes de Straub-Huillet, Machorka-Muff (1963) e Not Reconciled (1965), na escola secundária que Maire frequentava. Ele confessou ter entendido pouco ao assistir aos filmes, mas a experiência o deixou fascinado: o cinema seria agora o principal trabalho de sua vida.
Os últimos filmes de Straub não trataram o Lago Genebra como mero pano de fundo: ele era um local específico cuja história precisava ser investigada. O crítico francês Serge Daney disse que os filmes de Straub-Huillet são todos sobre “pessoas que resistiram”. Um filme como Gens du lac (2018), o quinquagésimo filme com o nome de Straub, não é exceção.
Adaptado do romance da autora suíça Janine Massard, o filme mostra dois pescadores – um pai e um filho – que, durante a Segunda Guerra Mundial, transportavam alimentos e remédios à noite através do lago para a França ocupada, trazendo judeus e combatentes da resistência antifascista na viagem de volta.
Várias figuras da resistência como essas não foram homenageadas nem reconhecidas até depois de suas mortes, parte de uma história suíça sombria e complicada, permeada de anticomunismo. No filme de Straub, vemos uma história não apenas de heroísmo e resistência, mas também das calamidades, das mortes e da violência inscrita nessa paisagem plácida e aquosa.
O marxista católico
Aquele mesmo quarteto de cordas de Beethoven foi tocado novamente no funeral de Straub na Igreja Católica Saint Joseph, em Rolle, no dia 25 de novembro.
O fato de a despedida de Straub ocorrer numa igreja católica me pareceu de alguma forma surpreendente; afinal, ele foi um marxista combativo durante toda a sua vida adulta.
Quando estive em Oberhausen, perguntei a Ulrich sobre essa contradição e ela corrigiu meu equívoco. O primeiro caso de amor ideológico de Jean-Marie Straub, antes do comunismo, havia sido com o catolicismo – ele havia frequentado uma escola de ensino médio jesuíta em Metz – e, portanto, isso nunca o havia abandonado completamente.
Ulrich conta que Straub havia dito que, enquanto ideologias, ambas eram dedicadas a criar algum tipo de “admirável mundo novo”. “E nenhuma delas funciona.”
Morte à beira do lago
A morte de Straub ocorreu poucos meses após duas outras mortes, também na Suíça, que foram consideradas dramaticamente graves para os cinéfilos do mundo todo: Alain Tanner, de 92 anos, que faleceu em 11 de setembro de 2022, em Genebra, e Jean-Luc Godard, de 91 anos, que morreu de suicídio assistido dois dias depois de Tanner, também na cidade de Rolle.
Esses três representantes das tradições cinematográficas radicais do século XX não apenas se foram, mas se foram num curto espaço de tempo e com uma proximidade geográfica impressionante. Tanner, Straub e Godard morreram a menos de meia hora de carro um do outro, ao longo da margem do mesmo lago, no espaço de alguns meses.
Ulrich insiste que a conexão com Rolle foi casual, mas que, naturalmente, ela e Straub consideraram um bônus o fato de “esses dois monumentos muito diferentes (Godard e Straub)” estarem ali juntos. “Eles não eram homens de conversa fiada”, ela insistiu. “Dialogavam apenas indiretamente, através de filmes e gestos.”
Em 1967, Godard havia doado uma quantia significativa para que Straub e Huillet fizessem seu primeiro longa-metragem, Chronicle of Anna Magdalena Bach (1968). Além disso, sempre usou sua fama para defender publicamente os filmes do casal. Ele insistia, mesmo recentemente: “acho que eles não gostam de muitos dos meus filmes, mas eu gosto de todos os deles”.
Uma memória para restaurar
Durante muito tempo, os filmes de Straub e Huillet não estiveram disponíveis em DVD ou vídeo. Como mostram as correspondências trocadas ao longo de décadas com vários distribuidores, museus de cinema e festivais, Huillet era meticulosa e enérgica ao insistir nas melhores condições de exibição possíveis.
Depois de sua morte, e com o aprimoramento das tecnologias de transferência digital, o trabalho deles ficou cada vez mais disponível para ser assistido em casa. Ulrich, que era parceira de Straub na produtora Belva-Film, começou o trabalho obstinado de preservar e distribuir novamente suas obras, o que culminou num importante projeto de restauração de quase todos os filmes. “Um empreendimento insano, já que começamos do zero”, disse ela.
Uma retrospectiva dessas novas versões digitais das obras foi exibida durante a pandemia na plataforma de streaming de filmes de arte MUBILink externo. A retrospectiva também fez uma turnê internacional nos últimos dois anos, reavivando o interesse no trabalho de cineastas há muito tempo considerados marginais, difíceis, e fora até mesmo do mainstream do cinema de arte. Atualmente, os negativos originais estão armazenados em segurança na França e na Suíça.
Em suas próprias palavras: Straub e Huillet em conversa, filmados pelo diretor português Pedro Costa. Esse trecho faz parte do curta-metragem 6 Bagatelas, feito com cenas não utilizadas na versão final de seu documentário sobre os Straubs: Onde jaz o teu sorriso?
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