Mulheres artistas redefinem o surrealismo em mostra no Reino Unido
A exposição “The Traumatic Surreal” (O surreal traumático), aberta no Reino Unido, traz um novo olhar sobre o surrealismo por ocasião de seu centenário. Com um enfoque exclusivo sobre as obras de mulheres artistas da Suíça, Alemanha e Áustria no pós-guerra, a mostra destaca uma vertente feminista – e negligenciada – da evolução do movimento.
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Para marcar o centenário da publicação do “Manifesto Surrealista” (1924), de André Breton, as principais instituições de arte do mundo vêm revisitando esse movimento. Entre elas, estão a Tate Modern, de Londres, e o Metropolitan, de Nova York, com a mostra “Surrealismo para além das fronteirasLink externo”, de 2022; e a imponente retrospectiva “100 Anos de SurrealismoLink externo” no Centro Georges Pompidou, em Paris (aberta até 13 de janeiro). Agora, no modesto Instituto Henry MooreLink externo, em Leeds, no Reino Unido, uma seleção curatorial ousada reposiciona o movimento sob uma luz genuinamente nova e revigorante.
Abstendo-se de selecionar os nomes de artistas homens ligados ao Surrealismo, como Max Ernst, Salvador Dalí e René Magritte, as curadoras Clare O’Dowd e Patricia Allmer optaram por incluir apenas artistas mulheres que trabalhavam com escultura, especificamente de países de língua alemã, e em um período posterior – da década de 1960 até os dias de hoje.
Essa seleção de nomes pretende revelar como as mulheres artistas se voltaram para o Surrealismo, a fim de examinar a herança do fascismo e do Holocausto, expandindo e ampliando assim os legados do próprio Surrealismo.
Como definido por Breton, o Surrealismo é “baseado na crença em uma realidade superior” de associações, sonhos e jogos de pensamento. O movimento rompe com o binarismo estabelecido, para libertar a mente do racionalismo, da lógica e da filosofia cartesiana – os ápices da ideologia burguesa ocidental.
A rejeição do Surrealismo de estruturas e hierarquias tradicionais, incluindo casamento, filhos e família, combinada com sua busca de reimaginar a sociedade, atraía especialmente as artistas mulheres.
Superando o trauma
Na esteira dessa “redescoberta”, a mostra “O surreal traumático” traz uma das investigações mais convincentes e focadas na fase final do Surrealismo. A exposição é inspirada no livro homônimo de Patricia Allmer.
A exposição concentra-se no conceito freudiano do trauma, procurando destacar as formas encontradas pelas artistas para lidar com as consequências intergeracionais do nazismo e com seu impacto sobre as mulheres jovens, que atingiam a maioridade sob as restrições do mote “Kinder, Küche, Kirche” (crianças, cozinha, Igreja – slogan tradicional e conservador que existiu na sociedade alemã e que equivale em certa medida ao “recatada e do lar”).
Para a curadora Allmer, essas artistas trabalham contra formas forçadas de feminilidade e podem ser lidas como um “protesto feminista primordial contra o fascismo”.
“O surreal traumático” resgata o percurso de três gerações de mulheres, começando com a artista suíça Meret Oppenheim (nascida em 1913), a única entre as mulheres apresentadas na exposição que trabalhou com o grupo surrealista original de Ernst e Breton.
A alemã Ursula Schultze-Bluhm (também conhecida simplesmente como Ursula), nascida em 1921, teve uma carreira que floresceu após a Segunda Guerra Mundial. O mesmo ocorreu com a artista suíça Eva Wipf, nascida no Brasil em 1929. A geração intermediária é representada pelas austríacas Renate Bertlmann e Birgit Jürgenssen, ambas nascidas em Viena durante a Guerra (em 1942 e 1943, respectivamente).
As artistas multimídia Bady Minck (Luxemburgo) e Pipilotti Rist (Suíça), ambas nascidas em 1962 e ainda ativas, representam a terceira geração.
As obras dialogam entre si por meio de dois temas interligados. Um deles é a indefinição entre animais e humanos por meio do uso extensivo de peles em várias obras de arte. O outro é a questão do aprisionamento, que perpassa todas as preocupações estéticas das artistas – gaiolas, fios e bordas afiadas e salientes até nos mínimos detalhes..
A (re)descoberta de Eva Wipf
A trajetória de Eva Wipf é particularmente interessante: embora tenha produzido muito durante grande parte de sua vida, é uma artista relativamente pouco celebrada. Suas criações vão de pinturas em painéis a assemblages de objetos de vanguarda, compondo um dos destaques da exposição.
“Há muitas mulheres artistas incríveis, que nunca tiveram a oportunidade de realmente se destacar, e Wipf é definitivamente uma delas”, diz O’Dowd. A obra de Wipf nunca havia sido exposta anteriormente no Reino Unido.
Suas assemblages são compostas por objetos encontrados em mercados de pulgas e por sucata industrial descartada. O trabalho dessa filha de missionários traz geralmente uma iconografia religiosa, que reflete sobre uma crise de conhecimento e sistemas de crença em um mundo pós-Holocausto. O trabalho mais antigo apresentado na mostra fica logo na entrada da exposição: “Shrine III”, de Wipf.
Wipf torna literal o emaranhado de objetos domésticos, ao mesmo tempo em que os imbui de uma qualidade divina. Ela transforma os objetos cotidianos em santuários iconoclastas, que oferecem uma visão conflitante de esperança e ambivalência. Nas obras exibidas, há um equilíbrio entre uma crença etérea no milagroso e cenas distópicas de protesto.
De Meret a Eva
Wipf, que viveu sozinha durante a maior parte de sua vida adulta, manteve um diário que detalhava tanto uma ambição intensa como artista quanto uma insegurança permeada pela violência. Em julho de 1978, seu último registro no diário traz uma citação do filósofo chinês Lao Tzu: “Aquele que conhece os outros é sábio; aquele que conhece a si mesmo é iluminado”.
O’Dowd explica que “Wipf foi diretamente influenciada pelo Surrealismo e especialmente por Meret Oppenheim – as duas se correspondiam ocasionalmente. Queríamos mostrar a influência de diferentes gerações de mulheres”, completa.
A exposição apresenta duas obras de Oppenheim – “Eichhörnchen” [Esquilos, 1969] e “Word Wrapped in Poisonous Letters (Becomes Transparent)” [Palavra envolta em letras venenosas (torna-se transparente, 1970], ambas produzidas enquanto ela vivia na Suíça após um hiato ou “crise” de 18 anos. Allmer explica como o último trabalho de Oppenheim aborda secretamente o Holocausto e a própria identidade judaica de Oppenheim, depois de sua fuga da Alemanha para a Suíça com a família.
“Word Wrapped” é uma construção mínima de arame, que apresenta as pontas de uma suástica dobrada em uma caixa tridimensional vazia – um esboço de um nada estetizado que, no entanto, mantém uma restrição formal. A sombra dos fios cai cautelosamente sobre uma superfície branca, que carrega essa marca instável e assombrada.
>> Para saber mais sobre Meret Oppenheim, leia o artigo da SWI swissinfo sobre a última retrospectiva da artista – com imagens de arquivo da televisão suíça das décadas de 1950 e 1960:
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Quem tem medo de Meret Oppenheim?
Portador da tocha
Pulando para 2017, “Abra minha clareira” (2000-2017) é composto por uma série de nove filmes de um minuto, resultantes de uma câmera posicionada do lado de fora da janela de um apartamento localizado em um prédio alto. A câmera captura a artista Pipilotti Rist pressionando seu rosto contra a superfície do vidro.
O efeito é, evidentemente, grotesco, sensual e surreal – o rosa-choque de seus lábios se transforma em um respingo amorfo esmagado, seu cabelo fica preso entre seu corpo e a janela como uma erva daninha. Rist olha diretamente para a câmera, consciente de sua própria performance e se mantendo crítica frente à maneira como o cinema deformou, capturou, fetichizou e distorceu a ideia de feminilidade.
Embora o próprio Surrealismo tenha frequentemente enquadrado as mulheres em uma visão absolutista do sensual e do não racional, essa tradição foi reapropriada aqui de maneira lúdica e autorreflexiva, apontando para o potencial radical de dissidência do movimento.
Como os direitos das mulheres encontram-se ameaçados em todo o mundo, concomitantemente à ascensão da extrema direita na Europa e em outros países, “O surreal traumático” se coloca como uma investigação oportuna e pertinente do potencial da sucata cotidiana como uma bricolagem que visa a resistência.
A mostra “O surreal traumático” pode ser vista no Instituto Henry Moore, em Leeds, até o dia 16 de março de 2025. A exposição paralela “Territórios proibidos: 100 anos de paisagens surreaisLink externo” pode ser visitada no Museu Hepworth Wakefield até o dia 21 de abril.
Edição: Reto Gysi von Wartburg e Eduardo Simantob/gw
Adaptação: Soraia Vilela
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