O castelo que continua a fazer história
Castelgrande é uma jóia arquitetônica medieval encravada numa colina em Bellinzona, capital do cantão do Ticino, na Suíça italiana.
Hoje, a sua muralha e um par de torres imponentes recortam a entrada do vale do Gotardo. Mas nem sempre foi assim e ele já esteve caindo aos pedaços.
O antigo castelo estaria com os dias contados senão fosse a restauração realizada durante os anos 80 e 90. A execução completa da obra terminou na virada do milênio e o seu valor foi reconhecido pelo mundo inteiro.
Castelgrande foi aclamado pela Unesco como Patrimônio Cultural da Humanidade, pouco tempo depois do fim do trabalho. A aventura de resgatar o esplendor das ruínas da velha fortaleza, com os valores culturais dos dias de hoje, se transformou num livro apresentado no Centro Cultural Suíço, em Milão, Itália.
“A História de uma Restauração”, da editora Skira, Il Divenire di um Restauro (título oficial) conta como ocorreu a maior e a mais longa batalha vivida dentro e fora do castelo: a batalha pela sua reconstrução, em meio a uma nuvem de polêmicas.
Livro registra a odisséia do castelo
O livro traz depoimentos e análises de 4 historiadores, 5 arquitetos, além de um apêndice com vinte depoimentos e comentários contrários e favoráveis ao projeto.
Mapas, esboços, croquis, pinturas e fotografias a cores e em preto e branco cobrem um arco de tempo entre 1874 e 2005. Elas ilustram a odisséia de Castelgrande.
“Foi realmente uma aventura. Depois do fim dos trabalhos que duraram quase vinte anos, os recursos acabaram e até a vontade de falar também, depois de um período tão difícil. Então achamos melhor esperar para retomar o projeto. O motivo do livro é documentar, explicar detalhadamente as razões de todas as escolhas e opções de trabalho em cada parte do castelo”, explica Verio Pino, curador do volume junto com a mulher, Angela Pini-Legobbe.
O livro foi elaborado para um grande público, ele serve de apoio para os visitantes e de material de pesquisa aos historiadores e restauradores.
As 230 imagens – quase uma por página – ajudam ao leitor compreender melhor as soluções e as intervenções arquitetônicas.
Ele pode comparar o antes com o depois, passado e presente, e assim, construir uma consciência crítica em torno do projeto e do seu valor social.
“Nos demos conta que a distância de dez anos do fim dos trabalhos favoreceu ao surgimento de uma grande variedade de opiniões, leituras e sensibilidades que enriquecem a discussão. Sabemos que a restauração é um tema controverso”, conta Verio Pino a swissinfo.
O livro dá voz ao conflito entre o conservadorismo e a inovação. Muitos críticos eram rigorosamente contrários a alguns aspectos do projeto como, por exemplo, as novas funções sociais que surgiriam com o “novo” castelo. Mas a publicação é, principalmente, uma fiel descrição de todas as etapas e motivações da restauração. O arquiteto Aurélio Galfetti sorri ao lembrar-se das polêmicas em torno do seu projeto original.
Museu e gastronomia
Sim, fui muito incisivo na questão da paisagem. Consegui colher todos os componentes do território, mas acho que fui contido, não tive a coragem ou a possibilidade de acrescentar uma fachada nova contemporânea. Nesta linguagem, eu fui mais modesto”, admite ele.
Mas dentro da sua humildade cabe toda a grandiosidade de um projeto que transformou o castelo no principal parque da cidade. Para o professor Jacques Gubler mais do que um parque Bellinzona ganhou uma praça pública.
“Temos uma estrutura nova, que nada tem a ver com a do período medieval. Museu, gastronomia…”explica o historiador. A função social do castelo cobre e substitui como uma nova camada de tinta as antigas e diferentes finalidades. Nos últimos cinco séculos Castelgrande foi uma fortaleza, um quartel e, até mesmo uma prisão.
Símbolo de poder de uma época, o castelo faz parte do cenário dos Alpes como o guardião do Passo do Gottardo. “Ele foi construído para satisfazer as necessidades de um tempo, mas as exigências iniciais podem continuar, mudar ou desaparecer”, explica o professor Jean-François Bergier, presidente honorário da Associação Internacional de Historia Econômica.
Em muitos casos isso não ocorre, como no das igrejas. Mas em muitos outros, quando o vazio cultural passa a ocupar os prédios e os monumentos históricos, uma atualização, uma recriação é mais do que necessária.
Castelgrande começou a ser criado, à luz da arqueologia moderna, no período neolítico, seis mil anos atrás. A restauração trouxe para a superfície a pré-história do castelo. Durante as escavações de 1984 e 1985, os operários encontraram vestígios da presença humana que se perdem na noite dos tempos.
Projeto é muito atual
“Lembro-me com muito prazer, porque foi um momento muito importante, de grande liberdade sobre o tema da restauração e que não sei se hoje seria possível. 27 anos depois da criação do projeto constato que ele é ainda muito atual. A sua realização foi muito mais fácil do que a de uma restauração burocrática pois tivemos o apoio de um mecenas…. As dificuldades maiores não foram no projeto mas na sua execução. Todos aprovaram o projeto, era pegar ou largar. Nós o tínhamos numa das mãos e o dinheiro na outra, depois muitos tentaram modificá-lo. O meu esforço maior foi manter o projeto original”, conta ele a swissinfo.
Aurélio Galfetti, por exemplo, gostaria de ter instalado um elevador numa torre moderna, de aço, vizinha àquela original. No seu lugar nasceu um dentro da rocha, nos pés da colina.
O arquiteto preferiu dar maior peso na relação e na integração do castelo com o tecido urbano de Bellinzona. A valorização do aspecto paisagístico preponderou sobre o artístico. A primeira operação foi a limpeza do terreno ao redor do castelo .
“Com a nudez da rocha alguma coisa de novo se introduziu na vista do local. A rocha deixou de ser isolada e ‘entrou’ na cidade”, afirmou o historiador Jacques Gubler, professor da Academia de Arquitetura de Mendrisio.
Aurélio Galfetti criou ainda um vinhedo com a movimentação de terra. “Se bebe um ótimo merlot”, confidencia Jacques Gubler. O arquiteto suíço admira a sua obra com um olhar crítico. “
Seis mil anos
Ao contrário dos dois outros castelos de Bellinzona, Montebello e Sasso Corbaro, projetados por engenheiros militares lombardos, Castelgrande sempre ficou à deriva dos acontecimentos. Ele nunca teve uma planta original. Ao longo do tempo, o castelo vinha sempre sofrendo uma permanente metamorfose urbanística. A restauração nada mais é do que uma natural continuação desta arquitetura fluida.
“Por seis milênios se construiu neste lugar que sempre se transformou. Eu nada mais fiz do que continuar este processo, só que não quis levar adiante o original e assim adaptar este lugar às exigências de hoje, como os séculos se adaptaram às exigências sucessivas no tempo”, explica Aurélio Galfetti.
Atualmente, Castelgrande é a principal porta de entrada do turismo cultural de Bellinzona. Visitantes do mundo inteiro admiram o velho castelo “vestido” de novo. Eles passeiam pelos terraços e visitam as salas onde uma vez caminharam, dormiram e lutaram romanos, bizantinos, longobardos.
E para o futuro Aurélio Galfetti faz uma previsão a despeito do seu trabalho de restauração: “tenho certeza de que o livro irá viver mais do que o castelo. O livro dura milênios e o castelo se transforma”. É como se as ruínas passassem e as páginas ficassem.
swissinfo, Guilherme Aquino, Milão
Castelgrande começou a ser construído há 6 mil anos.
A restauração durou quase 20 anos e custou 20 milhões de francos suíços.
Hoje custaria cerca de 50 milhões e levaria 5 a 6 anos, segundo o arquiteto Aurélio Galfetti, autor do projeto de restauração.
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