O quadrinista que conta a história da pandemia
O cartunista Patrick Chappatte trafega entre as diferentes dimensões do desenho para recriar, com sua nova reportagemLink externo ilustrada, a experiência humana da pandemia, da segunda onda do Covid-19 e das convulsões que o vírus já causou local e globalmente.
Além de seu renome na imprensa mundial, o cartunista suíço Patrick Chappatte (53) também publica reportagens no formato de histórias em quadrinhos desde os anos 1990. Ele é um dos pioneiros deste novo gênero jornalístico já plenamente reconhecido nos dias de hoje.
No mês passado, Chappatte recebeu o prêmio anual da Fundação por GenebraLink externo. Ele preside a Fundação dos Cartonistas pela Liberdade, uma reorganização da associação Desenhando quadrinhos pela PazLink externo, da qual foi um dos fundadores em 2010 juntamente com Kofi Annan, o ex-Secretário Geral da ONU.
swissinfo.ch: Você vivenciou a primeira fase da pandemia tanto como cronista quanto como paciente de Covid-19. Como esta intensa experiência foi inserida em sua reportagem desenhada?
Patrick Chappatte: Este livro visa refletir as escalas macro e micro da pandemia, indo até o micróbio que me infectou. Eu tentei encenar estes diferentes níveis: a experiência íntima do narrador cujo zelo o levou ao ponto de contrair a doença para contar a história (sorriso), mas também a experiência coletiva, particularmente no hospital de Genebra. Em todo o mundo, esta experiência tem sido local e universal. Eu também ilustro isso nesta reportagem.
A combinação de todos estes níveis reflete o aspecto sem precedentes desta experiência coletiva e íntima que foi a primeira fase da pandemia.
swissinfo.ch: E ao nível pessoal?
P.C.: No início de março, comecei a trabalhar nesta história em quadrinhos durante os 10 dias que fiquei de quarentena devido a uma febre que somente no final de junho vim a saber que era de fato Covid-19.
É fácil esquecer o que aconteceu desde o início do ano. Tudo era tão inédito, tão rápido e traumático. Nossos governantes instituíram medidas mais ou menos estritas de contenção, nos fazendo lembrar dos relatos da Idade Média.
Nesta sociedade hipertecnológica, respondeu-se a um flagelo ancestral quase apenas com medidas também ancestrais: isolamento e lavar as mãos! Percebi rapidamente que esta história tinha que ser contada com uma crônica que integrasse a simultaneidade do local e do global.
Quando confrontados com o coronavírus, também fizemos vodu. Diante do medo, todos se agarram ao que podem e reagem com a negação do fato, com pânico, ou seguindo esta ou aquela figura como se fosse um padre ou um guru, etc. Esta foi a primeira onda, mas já com todos os ingredientes desta crise que ainda continua.
swissinfo.ch: No início da pandemia na Suíça, o governo foi seguido de forma esmagadora, desfrutando da confiança dos cidadãos. Hoje, esta união sagrada parece estar esgotada, no momento que estamos entrando em uma amedrontadora segunda onda. Não sabemos simplesmente tirar as devidas lições da história?
P.C.: No início, as autoridades nos disseram que as máscaras não eram tão importantes, porque não havia nenhuma. O mesmo vale para os testes. Espero que não tenhamos que passar por isso novamente.
Dito isto, o vírus está se movendo muito mais rápido do que nós. No início, todos se surpreenderam. Eu me infectei num momento em que o vírus parecia distante, mas já estava circulando nos restaurantes cidade desde o início de março.
E desta ele vez nos pegou de novo, e com rapidez. Esta nova onda de contaminação era esperada, mas para mais tarde. O tempo é crucial dada a taxa exponencial de infecção.
Mas, como mencionei em minha reportagem, Didier Pittet, o médico-chefe do Hospital Universitário de Genebra (HUG) estava perfeitamente ciente, em meados de abril, que o outono seria complicado, tanto do ponto de vista político como do ponto de vista da saúde.
swissinfo.ch: Até mesmo os hospitais parecem agora terem sido apanhados desprevenidos, sem nenhuma estratégia de ação montada.
Mas esta não é bem a mesma situação. Coletivamente, há um grau de desânimo. Descrevi neste livro a inocência antes da chegada do vírus e o tumulto causado pela primeira onda. Não vou fazer o volume 2 porque não é realmente engraçado o que está acontecendo.
Coletivamente, já passamos por algumas coisas extremamente difíceis em nossas vidas. Humanamente, os hospitais e as unidades de terapia intensiva ainda não se recuperaram da primeira onda. É com essa responsabilidade e essa desordem que a segunda onda está chegando. Os dispositivos estão prontos. Mas os hospitais não vão liberar novamente muito de seu espaço para os pacientes de Covid-19 pois o primeiro plano de contingência congelou o sistema hospitalar. Desta vez, os hospitais podem ter de fazer a triagem dos pacientes; uma provação que ainda não vimos na Suíça.
Essa é uma lição que já foi aprendida. Não é possível estar em alerta máximo por meses ou mesmo anos, já que o Covid parece ter chegado para ficar no longo prazo. Isso é o que é deprimente para muitos de nós, eu acho.
swissinfo.ch: Seu novo título desenvolve a narrativa jornalística com desenhos em quadrinhos sendo que, no final de cada capítulo, você inclui os desenhos que produziu para a imprensa ao longo desta primeira onda. Por que tal inovação ao tratar deste tema?
Isso me ajudou enquanto narrador. Sou cartunista de imprensa e faço reportagens em quadrinhos desde 1995. Em termos gráficos, utilizo dois estilos diferentes. Para a reportagem em quadrinhos, meu desenho visa uma representação realista das cenas, sem o cinismo escandaloso do dos cartuns da imprensa.
Com este livro, tive a oportunidade de reunir as duas abordagens, que se reforçam mutuamente. As caricaturas na imprensa me permitiram fazer um gancho para a gestão calamitosa do Covid por Donald Trump, por exemplo, ou para o impacto social mais amplo da pandemia. As caricaturas também introduzem uma bem-vinda dose de humor em uma história que se desenrola longamente em unidades de terapia intensiva.
O desenho como forma de contar histórias também me permitiu retratar estes lugares entre a vida e a morte, evitando a armadilha do voyeurismo ao manter uma certa distância de imagens muito cruas, o que permite ao leitor sentir empatia.
swissinfo.ch: Isto levanta a questão da imagem, da representação e da caricatura que mais uma vez inflama o debate. O que você pensa sobre isso?
P.C.: Aqui estamos falando de duas coisas diferentes, quase opostas uma à outra. No debate sobre as caricaturas de Maomé, sua representação torna-se o único ponto em torno do qual gira todo o debate sobre a liberdade de expressão, a questão da blasfêmia e as relações entre culturas.
É por isso que eu estou removendo esta figura da equação. Acho que este tipo de ponto de fixação não leva a nada de interessante. Temos andado em círculos desde 2006 e é bastante chocante. Prefiro contornar isso para que poder continuar a fazer e defender meu trabalho como cartunista na imprensa.
swissinfo.ch: Como você vê sua profissão e seu futuro?
P.C.: A reportagem no formato de história em quadrinhos tornou-se um gênero desde o meu início nos anos 90 e do trabalho pioneiro de Joe Sacco. Para os quadrinhos, esse formato é um mundo infinito de histórias que refletem a realidade. E para o jornalismo, ele traz uma nova perspectiva, diferente do audiovisual e da palavra escrita.
Nós estamos ao mesmo tempo no mundo das imagens, como fotografia e vídeo, mas trata-se de uma imagem purificada, não voyeurística, onde o desenho tem até mesmo uma parte infantil. A imagem desenhada torna possível reconstruir situações horríveis, como as crianças mortas que vi em um hospital em Gaza, e torná-las acessíveis ao leitor, sem o medo e o constrangimento que uma foto ou um filme pode causar.
Quanto às charges na imprensa, que são um comentário sobre eventos atuais, elas estão sob a mesma e crescente pressão que sofrem todos os jornalistas do mundo, seja ela vinda das autoridades ou de grupos assassinos, incluindo a máfia.
A isto se somam as pressões moralizadoras transmitidas pelas redes sociais, uma expressão de uma época que se tornou muito sensível. As caricaturas jornalísticas estão sujeitas a todas essas pressões. Sua prática se torna uma luta tão amarga quanto necessária para a defesa do humor, este espaço vital para se evitar as divisões.
>> Testemunho de Chappatte no documentário “Quadrinhos vão à Guerra” (original: La BD s’en va-t’en guerre) de Mark Daniels (2009):
Adaptação: DvSperling
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