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Os tesouros enterrados do cinema suíço

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Michel Soutter (à esquerda) e o ator Jean-Louis Trintignant durante as filmagens de “Repérages” em Bex, 1976. Essa foto foi tirada por Monique Jacot, uma das mais importantes fotógrafas suíças do século passado, que faleceu recentemente, em 6 de agosto de 2024. KEYSTONE/Fotostiftung Schweiz/Monique Jacot

O Festival de Cinema de LocarnoLink externo também foi uma oportunidade para redescobrir joias do cinema suíço. Pierre Jendrysiak, crítico de cinema e professor de estudos cinematográficos na Universidade de Lille, comenta sobre dois desses tesouros suíços.

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Se o cinema suíço é um tesouro, ele é um tesouro enterrado. Com muita frequência, ele permanece escondido, esquecido e subestimado, e até mesmo seus maiores cineastas – Alain Tanner, em particular – são muitas vezes desconhecidos pelos cinéfilos.

Foi por isso que a Cinemateca Suíça, grande colaboradora do Festival de Locarno, ofereceu este ano a oportunidade de redescobrir dois clássicos suíços restaurados digitalmente. As obras foram apresentadas na seção “História(s) do Cinema” do festival: Repérages (1977), do Michel Soutter, um dos membros do famoso “Grupo 5”, que reuniu alguns dos maiores cineastas suíços da década de 1960; e L’Allégement (1983), o primeiro longa-metragem de Marcel Schüpbach, um cineasta singular que fez apenas três longas-metragens entre 1983 e 1995.

Essa programação dupla, intitulada “O Cinema Suíço Redescoberto”, foi uma oportunidade para descobrir ou redescobrir dois filmes que carregam consigo um estranho charme antiquado.

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Em “Repérages”, Jean-Louis Trintignant interpreta um diretor que tenta reconquistar sua ex-esposa (Delphine Seyrig) adaptando Chekhov para a tela. Collection Cinémathèque. All rights reserved.

Charme literário

Esse charme antiquado vem, em primeiro lugar, de uma certa influência literária, que se manifesta de maneiras muito diferentes em cada um dos filmes. Repérages se baseia de duas formas diferentes na peça As Três Irmãs, do escritor russo Tchekhov. De início, o filme conta a história de um cineasta que está adaptando a peça do autor russo, mas, à medida que o diretor começa a trabalhar (primeiro na busca de locações, depois nos ensaios), a história do filme em si se funde com o enredo tchekhoviano.

L’Allégement, por sua vez, é uma adaptação de uma história de Jean-Pierre Monnier. O filme, produzido pela RTS e coescrito por Yves Yersin, também membro do Grupo 5, conta, de forma confusa e poética, duas histórias de amor que se passam em áreas remotas do cantão do Jura. Embora estejam separadas no tempo, as histórias são conectadas por complexos laços históricos e familiares.

De um lado, portanto, temos uma influência dramática e teatral, e, de outro, uma influência romanesca. De um lado, em Repérages, vemos o teatro se tornar uma metáfora para o cinema e um lugar para expor as relações humanas, especialmente as amorosas – ao ver o filme, logo percebemos que o cineasta, Victor (Jean-Louis Trintignant), está produzindo a adaptação para poder trabalhar com sua ex-namorada Julie (Delphine Seyrig).

De outro lado, em L’Allégement, vemos um mundo verdadeiramente poético, onde as declarações de amor mais líricas (“Você não pode saber nada sobre mim, no fundo de seus olhos há o meu próprio reflexo”) são sussurradas às margens de córregos e escritas em lindos cadernos.

Cena de “Repérage”.
Cena de “Repérage”. Collection Cinémathèque. All rights reserved.

Repérages é uma amostra muito eloquente do cinema dos anos 70 e ilustra maravilhosamente tanto os becos sem saída quanto as surpresas sublimes abertas pelas várias novas ondas europeias.

O filme de Michel Soutter é quase primo de um filme de outro cineasta pouco conhecido que foi redescoberto recentemente: trata-se de Guy Gilles e seu estranho filme sobre gângsteres ociosos, Le Jardin qui bascule (1975). Certamente, é a presença da atriz Delphine Seyrig que nos faz relacionar ambos os filmes, mas também não podemos deixar de notar a semelhança no mundo fechado no qual a história se passa – uma casa, um jardim, um texto.

Embora Repérages seja um dos poucos filmes que Soutter fez com um orçamento razoável, sua beleza se encontra justamente em seus detalhes mais modestos. É de se perguntar se não há um toque de ironia por parte de Soutter na cena em que Victor expulsa um rico casal burguês de sua casa para começar os ensaios do seu filme.

L’Allègement, por sua vez, não está tão diretamente enraizado em sua época, mas sua relação com a história do cinema parece ainda mais nostálgica ou, pelo menos, retrospectiva: com seu preto e branco sepulcral (muito bem destacado pela excelente restauração digital da Cinemateca Suíça), sua rigidez estética e seu ritmo marcado, ele evoca a própria concepção de cinema europeu moderno.

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Cena de “L’Allégement”, de Marcel Schüpbach (1983). Collection Cinémathèque. All rights reserved.

Fora de seu tempo

Embora L’Allègement tenha sido feito no início dos anos 80, ele poderia muito bem ter sido produzido nos anos 50, 60 ou 70. Ele está fora de seu tempo, flutuante, rígido (com uma rigidez que evoca sobretudo, mas sem jamais alcançar, o cinema de Robert Bresson; com uma qualidade literária no discurso que também evoca os filmes de Alain Resnais ou Alain Robbe-Grillet).

L’Allègement de Marcel Schüpbach é, justamente, um filme que não faz nada além de tentar reduzir, de tentar se livrar de tudo o que é supérfluo, retendo apenas os picos grandiosos de suas histórias de amor, gestos isolados, imagens que são rapidamente escondidas (um dos gestos recorrentes do filme é soltar ou virar os quadros).

O que mais diferencia os dois filmes, no entanto, são seus respectivos tons. L’Allègement é um filme sombrio e triste, sem senso de humor, cheio de ressentimento e arrependimento, enquanto Repérages é um filme que consegue ser, ao mesmo tempo, leve e trágico, com uma série de mudanças de tom que são particularmente surpreendentes.

A melhor delas é a aparição de um “ator de teatro, cinema e televisão” interpretado por Roger Jendly, que também interpretou o inesquecível fazendeiro-etólogo no longa-metragem Jonas qui aura 25 ans en l’an 2000, de Alain Tanner, também exibido na seção História(s) do Cinema. Em Repérages, o personagem de Jendly visita Victor e suas três atrizes e se oferece para interpretar o papel de Tchebutykin.

Diante da hesitação do diretor, ele se oferece para encenar a morte de Tchekhov, o que faz de forma tão maravilhosa que acaba realmente morrendo diante das atrizes e do diretor. Essa cena, que vai do cômico ao absurdo, passando pelo constrangimento e por uma certa tragédia, é impensável em L’Allègement, um filme unívoco, frio, onírico, porém assustador; poético, porém elegíaco. Em poucas palavras, L’Allègement é filme envolvido em um certo romantismo sombrio, ao passo que Repérages é iluminado pelo que poderia ser chamado de romantismo branco.

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A atriz suíça Anne-Marie Blanc e o diretor Marcel Schüpbach apresentam o filme “L’Allegement” em 17 de janeiro de 1984 em Zurique. Keystone/Str

É necessário admitir que a poesia desses dois filmes anda de mãos dadas com um certo kitsch. Esses filmes redescobertos se assemelham a cápsulas do tempo, ou até mesmo pastiches de uma certa concepção de cinema europeu da sua época, um cinema quase obsoleto.

Basicamente, o que nos foi apresentado em Locarno é um cinema secundário: dois nomes de um “lado B” do cinema moderno (pode-se acrescentar: europeu, de língua francesa). Mas esse é exatamente o objetivo de uma programação como essa.

Sem superestimar sua importância, podemos dizer que a programação nos permite identificar algumas estrelas no mapa celeste do cinema – não aquelas que brilham mais, mas, ainda assim, estrelas que pertencem a uma certa constelação da história do cinema. Esperamos descobrir mais filmes, provavelmente tão surpreendentes quanto esses, na próxima edição do Festival de Cinema de Locarno.

Adaptação: Clarice Dominguez

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