Quem culpar pelo clima? Como a forma de lidar com catástrofes mudou
A forma como a Suíça lidou com os desastres naturais no século 19 consolidou sua posição. Tempestades e deslizamentos de terra não eram mais vistos como sinais de um Deus castigador, mas como problemas a serem enfrentados em conjunto. A questão da culpa e da responsabilidade se tornou um tabu em nome do suposto bem comum, uma atitude que ainda hoje molda os debates.
O clima, desde sempre um ineficaz tema de conversas, já há muito tempo também se tornou uma questão política. Em tempos de mudança climática, não é mais possível distinguir estritamente entre atividade humana e tempestades e desastres naturais. Nós influenciamos o clima com nosso estilo de vida. Algumas pessoas, como o meteorologista Jörg Kachelmann, veem as tempestades das últimas semanas como apenas o “início da miséria”.
Outros acham isso um exagero e falam de “histeria climática”, ou pedem mais serenidade. Entre eles está Franz Steinegger, o ex-presidente do Partido Liberal (FDP, na sigla em alemão), que tem muita experiência como gerente de crises no cantão de Uri, e que por isso é apelidado de “Franz das Catástrofes”. Perguntado se as pessoas na cidade reagem de forma diferente da população rural a desastres ambientais, ele disse em uma entrevista com o jornal “Tages-Anzeiger”:
“No campo, as pessoas reagem com mais calma. Todas as pessoas no campo já experimentaram algo assim antes. E as pessoas estão mais dispostas a aceitar tal evento como a vontade de Deus”.
Catástrofes como punição de Deus
O que parece ser a sabedoria secular de uma capela fria e devocional nos Alpes é, em última análise, uma visão bastante recente. Até algumas centenas de anos atrás, as catástrofes não eram algo que se pudesse simplesmente aceitar “calmamente”. Assim como os pais criavam seus filhos com a vara, Deus mostrava às pessoas o caminho com “sinais miraculosos aterrorizantes”. Catástrofes como as sete pragas bíblicas e o Dilúvio eram suas mensagens.
Enquanto a população rural colocava manteiga e leite no peitoril da janela para apaziguar a Deus, os teólogos ponderavam como lidar com os “sermões por atos” de Deus. Eles estavam em uma situação difícil já que nem todos que morreram no grande terremoto de Lisboa em 1755, por exemplo, eram pecadores; entre eles estavam também crianças e pessoas tementes a Deus.
Uma resposta era afirmar que Deus também castiga aqueles que não combateram os pecadores. O historiador ambientalista suíço Christian Pfister escreve que “A comunidade era coletivamente responsável pelos pecados de seus membros. Isto facilitava desviar a culpa de qualquer corresponsável e redistribui-la entre todos”. Em certo sentido, isto também tornou a culpa mais difusa, menos premente.
Crescendo com a catástrofe
Foi uma grande conquista não mais ver os inexplicáveis desastres naturais como retribuição pelos pecados dos indivíduos porque quando essa explicação não era suficiente, as pessoas acabavam reagindo aos verões de seca com a imolação de mulheres supostamente feiticeiras. Somente através da redistribuição da culpa é que as catástrofes poderiam ser reinterpretadas como eventos em torno dos quais a coletividade poderia se consolidar.
O sentimento de pertencer juntos raramente é tão grande quanto após terríveis eventos como guerras e catástrofes que podem ser atribuídas a forças externas. Os políticos ainda estão cientes disso hoje, e basta uma expressão facial errada em uma área de desastre para que a carreira de uma pessoa seja severamente abalada.
Deslizes de terra, tempestades e enchentes também foram importantes para a ascensão da Suíça como nação, justamente por causa de seu poder de agregar as pessoas. Quando o deslizamento de terra em Arth-Goldau em 1806 matou mais de 400 pessoas e devastou uma vila inteira, o socorro em caso de catástrofe foi proclamado pela primeira vez como um elemento unificador para a nação.
Andreas Merian, nomeado por Napoleão como governador do cantão de Schwyz, viu a ajuda mútua como uma força comum:
“Todo suíço se torna um promotor do bem comum através de sua doação. Sua participação no bem comum, assim como depois, a gratidão dos socorridos, contribui para o sentimento nacional, para a unidade federal, e para o genuíno amor fraterno”.
Merian tentou transformar o sentimento de culpa religiosa em solidariedade republicana, e com sucesso. Doações e manifestações de simpatia chegaram a Arth-Goldau de todos os cantões e, pela primeira vez na história, a ajuda concertada de todos foi dirigida para um só cantão.
Monumentos nacionais da proteção contra enchentes
Os desastres ajudaram o Estado suíço a encontrar seu papel. No século 19, o alívio de desastres passou cada vez mais de organismos privados organizando doações para as mãos da Confederação. Em 1834, quando a Confederação estava muito dividida, as enchentes devastaram grandes partes da Suíça. Na ocasião, o chamado “Tagsatzung”, órgão central da Confederação, coordenou a coleta (privada) de doações. A Comissão entrou em negociações com os cantões quanto ao uso mais eficaz do dinheiro.
Isto foi além da caridade, mas seguiu a razão de estado. Embora as doações fossem feitas por compaixão pelos indivíduos, depois de 1834 no cantão dos Grisões, por exemplo, o dinheiro era usado principalmente para a proteção contra enchentes, a fim de evitar futuras catástrofes. Assim, o dinheiro fluiu principalmente para os empreiteiros locais, enquanto os diretamente afetados receberam pouca ajuda e muitas vezes caíram em profunda pobreza, apesar das doações. Em outras palavras, a ajuda ao desenvolvimento foi fornecida nas áreas afetadas em vez da ajuda direta.
A correção do curso de rios e as barragens construídas depois de 1834 também foram vistas como monumentos à unidade nacional. Em 1869, por exemplo, o Conselho Federal (Poder Executivo) comentou sobre o cantão do Valais, que não tinha sido convencido pelo programa de infraestrutura e tinha distribuído as doações a indivíduos em 1834, que ali a “solidariedade nacional não estava incorporada em nenhum monumento de construção que teria sido capaz de salvar o país de catástrofes semelhantes”.
Em 1868, outro desastre atingiu a Suíça. As fortes chuvas levaram a 51 mortes e enormes danos. Enquanto a proteção contra enchentes ainda estava em mãos cantonais em 1834, o Conselho Federal tomou então as rédeas com o governo. A captação de recursos nacionais também foi liderada pelo Estado. Ele arrecadou 3,6 milhões de francos e mais de três toneladas de alimentos. O lema “Um por todos, todos por um” tornou-se o lema nacional não-oficial. Além disso, foram tomadas disposições legais para a preparação para desastres que ainda hoje são importantes.
O tabu da busca das causas
Os sinais inexplicáveis de Deus poderiam ser reinterpretados como algo que poderia ser suportado em conjunto somente através de uma cultura de preocupação compartilhada. Ao mesmo tempo, porém, foi feito um pacto para falar menos sobre as causas e mais sobre ajuda, infraestruturas e gestão de crises.
Um exemplo flagrante disto foi o deslizamento de terras em Elm em 1881. A valiosa pedra de ardósia é encontrada nos Alpes de Glarus, sendo que em Elm ela é minerada comercialmente desde 1868. Mas tendo em vista que os políticos municipais responsáveis eram bastante inexperientes, o manejo da pedreira foi negligente. Elementos de sustentação foram dinamitados, mudanças na montanha foram ignoradas e quem alertou sobre os perigos foi ridicularizado como alarmista. Muitos empregos e muito dinheiro dependiam da ardósia extraída. Mesmo quando grandes partes dos Alpes acima da pedreira desmoronaram e a água a invadiu, não houve ação. No final, a ardósia matou 141 pessoas.
Mas, no final, nenhum dos responsáveis teve que arcar com as consequências. Uma razão pela qual isto não aconteceu foi que a imprensa não quis colocar em risco a campanha de arrecadação de fundos com indignação pública, pois a ajuda era extremamente necessária para os habitantes de Elm. Eles pediram que as pessoas se abstivessem de “resmungos mesquinhos” em vista da tragédia. O povo de Elm tinha que parecer inocente, esmagado pelas “forças cegas da natureza”, como pessoas da montanha derrotadas na luta contra uma natureza inevitável. Isto foi possível devido à visão fundamentalmente transformada dos desastres naturais. Eles não eram mais sinais para os pecadores, mas algo cujas causas não deviam ser questionadas, era simplesmente uma questão de aceitar o curso dos acontecimentos, já que os caminhos de Deus são inescrutáveis. Esta atitude deixou atônito o professor de geologia Albert Heim, que teve que escrever um parecer especializado sobre o deslizamento de terra:
“As pessoas se defendem contra o medo e evitam falar sobre isso. Os temerosos são ridicularizados. Rejeitamos a percepção e o significado dos presságios e nos lançamos em uma negação do perigo. A atitude obtusa se infiltra em toda a população. Os fanáticos por essa “tática da avestruz” se permitem a maior dissimulação da verdade. Eles podem contar com o fato de que as pessoas são muito mais propensas a acreditar no agradável do que no que se teme”.
Adaptação: DvSperling
Literatura: Christian Pfister (ed.): Am Tag danach. Zur Bewältigung von Naturkatastrophen in der Schweiz 1500 – 2000. Berna 2002.
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